A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, denegou a ordem do Habeas Corpus nº. 105484, impetrado por um Desembargador que pretendia reintegração ao exercício de funções. Ele se encontra afastado cautelarmente do cargo pelo Superior Tribunal de Justiça em decorrência de inquérito em curso naquela corte. Segundo a Ministra Cármen Lúcia, relatora do processo no Supremo Tribunal Federal, a tentativa de retorno a cargo escapa aos limites de um Habeas Corpus, que tem como objeto apenas a liberdade de locomoção. “Qualquer outra questão referente a cargo precisa ser resolvida pela via própria que, seguramente não é o Habeas Corpus, como temos em nossa jurisprudência. O pedido de reintegração do magistrado, que foi afastado por decisão do STJ, é direito absolutamente estranho à liberdade de locomoção”, argumentou a Ministra.
Correta a decisão acima transcrita, pois, efetivamente, no caso concreto, faltava interesse de agir ao impetrante/paciente, pois inadequada a via escolhida, já que não havia ameaça, sequer remota, à sua liberdade de locomoção (interesse-adequação).
Como se sabe, o habeas corpus é uma garantia constitucional que visa a tutela da liberdade física, da liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque.
Já ensinava Pontes de Miranda, em obra clássica sobre a matéria, tratar-se de uma ação preponderantemente mandamental dirigida “contra quem viola ou ameaça violar a liberdade de ir, ficar e vir.”[1]
Celso Ribeiro Bastos não discrepa: “O habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de se locomover em razão de violência ou coação ilegal.”[2]
Aliás, desde a Reforma Constitucional de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação destinada exclusivamente à tutela da liberdade de locomoção, ao direito de ir, vir e ficar.
A propósito, o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, arquivou o Habeas Corpus nº. 100231, em que se pedia liminar para suspender a proibição imposta pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal ao jornal “O Estado de S. Paulo” de publicar qualquer informação que esteja sob segredo de Justiça no inquérito que investiga um empresário. Ao arquivar o pedido, o Ministro disse considerar “processualmente inviável” o Habeas Corpus impetrado, vez que se trata de matéria “insuscetível de exame em sede de HC”. É que o advogado pediu habeas para que fosse impedida censura a sua “liberdade de locomoção pelos sítios informativos” (sites noticiosos na Internet, entre eles o da Agência Estado, do mesmo grupo do jornal O Estado de S. Paulo).
Segundo o Ministro Celso de Mello, o Habeas Corpus “destina-se unicamente a amparar a imediata liberdade de locomoção física das pessoas, revelando-se estranha a sua específica finalidade jurídico-constitucional qualquer pretensão que vise a desconstituir atos que não se mostrem ofensivos, ainda que potencialmente, ao direito de ir, de vir e de permanecer”. Segundo o Ministro, a ação de HC, “enquanto remédio jurídico-constitucional revestido de finalidade específica, não pode ser utilizada como sucedâneo de outras ações judiciais, notadamente naquelas hipóteses em que o direito-fim (ou direito-escopo, na expressão feliz de Pedro Lessa) não se identifica – tal como neste caso ocorre – com a própria liberdade de locomoção física”.
O ministro citou jurisprudência do STF nesse sentido, incluindo, entre uma série de casos, o julgamento do Habeas Corpus nº. 66937, relatado pelo Ministro Sydney Sanches. Alertou que a ação de Habeas Corpus tem finalidade específica, não podendo, por isso, ser utilizada em substituição a outras ações judiciais, principalmente nas hipóteses em que o direito-fim não tem ligação com a liberdade de locomoção física.
O alerta foi feito na decisão em que o Ministro arquivou o Habeas Corpus nº 109327: “A ação de Habeas Corpus destina-se, unicamente, a amparar a imediata liberdade de locomoção física das pessoas, revelando-se estranha, à sua específica finalidade jurídico-constitucional, qualquer pretensão que vise a desconstituir atos que não se mostrem ofensivos, ainda que potencialmente, ao direito de ir, de vir e de permanecer das pessoas”, afirmou o Ministro.
Celso de Mello ressaltou que o Supremo Tribunal Federal, atento à destinação constitucional do Habeas Corpus, não tem conhecido os Habeas Corpus quando utilizados, como no caso em questão, em situações que não envolvam qualquer ofensa à liberdade de ir e vir. “É que entendimento diverso conduziria, necessariamente, à descaracterização desse instrumento tutelar da liberdade de locomoção. Não se pode desconhecer que, com a cessação da doutrina brasileira do habeas corpus, motivada pela Reforma Constitucional de 1926, restaurou-se, em nosso sistema jurídico, a função clássica desse remédio heróico”, enfatizou. "Vale insistir, bem por isso, na asserção de que o habeas corpus, em sua condição de instrumento de ativação da jurisdição constitucional das liberdades, configura um poderoso meio de cessação do injusto constrangimento ao estado de liberdade de locomoção física das pessoas. Se essa liberdade não se expõe a qualquer tipo de cerceamento, e se o direito de ir, vir ou permanecer sequer se revela ameaçado, nada justifica o emprego do remédio heróico do habeas corpus, por não estar em causa a liberdade de locomoção física".
In casu, é evidente não haver qualquer constrangimento à liberdade física de alguém (direto ou indireto, atual ou iminente). Assim, afigura-se-nos absoluta e induvidosamente incabível o remédio heróico para combater a decisão prolatada pela autoridade apontada como coatora.
A respeito, vejamos o ensinamento de Ada, Scarance e Gomes Filho:
“Assim, deve ser negado o interesse de agir, por falta da adequação, sempre que se pedir o habeas corpus para remediar situações de ilegalidade contra outros direitos, mesmo aqueles que têm na liberdade de locomoção condição de seu exercício. (...) Para tais hipóteses adequado, em tese, o mandado de segurança, previsto na Constituição justamente para a proteção de ‘direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data’.”[3]
A tese é unanimemente adotada pelos nossos Tribunais, bastando conferir, por todos, o julgamento do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº. 69.926-0-DF, DJU 25/11/92, p. 22.073 e no Habeas Corpus n°. 82812 (“O Habeas Corpus é um instrumento processual destinado exclusivamente à proteção ao direito de locomoção.” (2ª. Turma, j. 03/06/2003, Rel. Min. Carlos Velloso, HC).
Em outra oportunidade, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, arquivou o Habeas Corpus nº 92280 impetrado por uma cidadã comum em favor do governador e secretários do Distrito Federal.
Marco Aurélio ressaltou que, conforme salientado pela Procuradoria Geral da República, a impetração visa à alienação de terrenos, embora haja menção ao afastamento do risco de instauração de processo penal. “Algo, portanto, que não diz respeito ao direito de ir e vir”, esclareceu. Segundo ele, “a referência à ameaça indireta ou virtual à liberdade dos pacientes não é de molde a respaldar extravagante iniciativa de cidadã”.[4]
Em outra decisão, o Ministro Joaquim Barbosa negou seguimento ao Habeas Corpus nº. 106809 impetrado pela Associação de Magistrados do Brasil (AMB) contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que determinou o afastamento de uma Desembargadora, então Presidente do Tribunal de Justiça do Tocantins, e a proibiu de entrar nos prédios, fóruns e outras dependências do Judiciário no Estado. O Ministro considerou o pedido “manifestamente incabível”.
Joaquim Barbosa afirma que o Habeas Corpus, conforme previsão constitucional e processual penal, é ação que tem por objeto cerceamento ou ameaça de cerceamento da liberdade de locomoção individual. “No caso dos autos, o pedido se dirige, única e exclusivamente, contra o afastamento da desembargadora do cargo por ela ocupado”, esclarece. O pedido foi formulado no sentido de determinar o retorno da desembargadora a suas funções. O fundamento do relator é de que não há qualquer alegação de ameaça ao direito de ir e vir, “apenas a suposta violação ao livre exercício do cargo” – cabendo à defesa outros meios previstos na Constituição Federal para essa finalidade.
Notas
[1] História e Prática do Habeas Corpus, Vol. I, Campinas, Bookseller, 1999, p. 39.
[2] Comentários à Constituição do Brasil, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 312.
[3] Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 2001, p. 352.
[4] Fonte: STF.