Resumo: O presente artigo trata da violência física contra crianças e adolescentes com o objetivo de esclarecer que, embora haja dificuldade de consenso no que diz respeito ao conceito de castigo imoderado bem como quais meios devem ser empregados na educação dos filhos, o ordenamento jurídico brasileiro contempla e veda quaisquer abusos ou maus-tratos em face desses menores. Principalmente após a divulgação do Projeto de Lei nº 7.672/2010, mais conhecido como “Lei da Palmada”, o tema tem sido amplamente discutido. Este artigo não tem a pretensão de exauri-lo, mas de proporcionar ao leitor uma reflexão acerca da prescindível aprovação desta lei, a qual pode significar violenta e insuportável intromissão na família.
Palavras-chave: Castigo imoderado. Educação dos filhos. Lei antipalmada.
INTRODUÇÃO
A educação dos filhos tem sido muito debatida quando se trata de empregar correção física. O equilíbrio ou conceito de moderação na hora de disciplinar é controvertido entre pais, psicólogos, juristas, educadores, e é inegável que esse assunto perpassa o campo do direto, envolvendo outras áreas que contribuem para elucidação do tema.
O Projeto de lei – n. 7.672/2010 provocou acaloradas discussões, sobretudo, pela interpretação de que uma simples palmada pelos pais ensejaria punição. Entre os que defendem a aprovação alegam que a dificuldade em traçar limite quando do emprego da força física tem acarretado abusos, e os filhos que são assim tratados estão mais propensos a desenvolver uma personalidade violenta e agressiva. Os contrários justificam que o Projeto de Lei é uma intromissão na privacidade do lar, interferência indevida que retira a autoridade dos pais que têm o direito-dever de repreender, corrigir e exigir obediência aos filhos. Ademais, diversas gerações foram educadas com o castigo corporal sem que desenvolvessem algum problema psicossocial.
Em que pesem os argumentos prós e contras, fato é que o direito já tutela esse problema. Existem dispositivos legais, como no Código Penal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na própria Constituição Federal, capazes de coibir e punir o suficiente atitudes que firam os direitos das crianças e adolescentes. Aliás, é assegurada proteção integral para esses menores, e em situações conflituosas observa-se o melhor interesse destes.
Dessa forma, demonstraremos que a legislação vigente abarca e pune qualquer forma de abuso, violência ou exploração de menores (mesmo que empregados com intenção de educar), tornando supérflua a edição de mais uma lei para amparar aquilo que já é tutelado. Entretanto, é de se dispensar relevância a este projeto, pois, indubitavelmente, seus objetivos provocaram maior atenção e reflexão sobre o assunto.
1 EDUCAÇÃO DOS FILHOS
Antigamente estava fora de cogitação questionar os pais ou responsáveis sobre o modo de criar sua prole. Se fizessem algo considerado errado era certo que deveriam levar uma “bela surra”. Todavia, os conceitos mudaram e evoluíram ao ponto de haver intervenções na família, principalmente por parte do Estado, visando coibir abusos e maus-tratos aos menores, apesar de estar arraigado na cultura brasileira educar os filhos com castigo físico.
Para a família tem ficado cada vez mais difícil entender qual a melhor maneira de exigir obediência dos filhos, sem extrapolar os limites. E estes limites é que são controvertidos. Se a palmada deve fazer parte ou não da correção dos filhos, temos algumas opiniões.
Arnaldo Madruga, psicólogo, afirma que “a única coisa que as palmadas ensinam é que os adultos se julgam no direito de acabar com o diálogo a qualquer momento” [1]. E prossegue dizendo que os pais usam a superioridade física para demonstrar que é mais fácil o tapa ao diálogo. O pedagogo Antonio Carlos G. Costa é a favor da palmada desde que aplicada com intensidade moderada, e ressalta: "É dever da família e da sociedade proteger as crianças. Se uma criança se coloca em perigo, alguma punição é necessária” [2].
Denise Dias[3], terapeuta infantil, observa que fora atribuído às palavras autoridade e castigo significado incorreto, o que acarreta permissividade pelos pais, uma vez que temem agir “politicamente incorretos” na educação dos filhos. Ainda declara ser favorável à palmada e ao castigo, condicionando sua aplicabilidade a critérios aferidos conforme a infração cometida pela criança, dando-nos o seguinte exemplo: “Se o seu filho joga no chão o brinquedo do irmãozinho e você já lasca um tapa na poupança dele, o que vai fazer quando ele gritar ou xingar você?”
Como visto, não há consenso entre os especialistas, e os juristas também estão longe de dissipar as controvérsias quando se trata do modo de educar os filhos. Mas o que devemos ter em mente é que a liberdade de corrigir, ainda que por meio de castigo físico, não pode ser confundida com o abuso desse direito, que é intolerável.
A Constituição Federal, em seu art. 227,§ 4º afirma que será punido o “abuso” e não, o castigo moderado. Por isso, é preciso que a liberdade de educar dos genitores ou responsáveis seja respeitada. Entretanto, há de respeitar mais ainda a integridade corpórea e psicológica do menor, sendo inadmissível usar deste direito para extravasar sua fúria em detrimento da correção, de modo que deva haver uma equação entre o direito de disciplinar e o direito a não ser violentado em sua integridade.
2 OBJETIVOS DA “LEI DA PALMADA”
O principal objetivo do Projeto de Lei não é punir, mas sim, educar sobre a melhor forma de corrigir os filhos. Foi o que explicou a deputada Teresa Surita, relatora do projeto. A mesma ainda contestou as interpretações distorcidas e afirmou que “o grande problema é desconstruir a ideia de que qualquer um que dê uma palmada vai para o serviço psiquiátrico, está cometendo um crime”. [4]
Com a intenção de mostrar que a violência começa com a palmada, este projeto proíbe castigos físicos em crianças e adolescentes, e visa modificar a Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e Adolescente – ECA) prevendo sanções tanto para aqueles que castigam fisicamente, trata de forma degradante ou cruel os menores de 18 (dezoito) anos – advertência e obrigatoriedade de frequentar programas de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico – como para professores, funcionários, médicos que tomarem conhecimento e não denunciarem – multa de até vinte salários mínimos.
Altera também o Código Civil, art. 1634, VII que dispõe que é da competência dos pais, quanto aos filhos menores: “exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”, onde seria acrescentado “sem o uso de força física, moderada ou imoderada”.
No momento o Projeto de Lei encontra-se em apreciação no Senado, e se aprovado, seguirá para sanção presidencial.
Ocorre que no afã de salvaguardar os direitos de integridade física e psíquica dos menores, pode esta lei, traduzir-se em excesso e tornar-se ineficaz, ou pior, tirar dos pais as rédeas do lar, criando filhos que não conhecem autoridade, nem respeitam limites, tendo que, no futuro, dobrar-se diante do jus puniendi[5], pois, por não terem sido punidos quando deveriam, no momento certo e pelas pessoas certas, provavelmente provarão dos limites impostos pela amarga e desamorosa lei penal, uma vez que os pais sempre (ao menos se espera) punem com amor, enquanto o Estado somente com rigor.[6]
E aqui cabe perguntar. Será que tirando o poder-dever dos pais ou responsáveis de disciplinar fisicamente sua prole é, de fato, o resguardo necessário para afastar as mazelas emocionais de que é acometido o ser humano? Ou abarrotará ainda mais as varas crimes de “monstruosos”, “terríveis” e “grotescos” pais que disciplinaram “feroz” e “violentamente” seus amados[7] filhos com didáticas palmadas? Contudo enfatizamos: o abuso, sim, deve ser punido! Mas já existe lei para isto.
3 LEGISLAÇÃO PERTINENTE
Para prevenir e combater a violência física contra crianças e adolescentes, nosso ordenamento jurídico possui vários dispositivos que contempla, inclusive, a esfera penal.
A Lei Maior assegura:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Constituição Federal, art.227, caput, grifo nosso).
Atentemos para o fato da responsabilidade e do dever de resguardar os menores que não é somente da família, mas da sociedade e do Estado também. Portanto naqueles casos em que o castigo para “fins pedagógicos” na verdade são agressões e maus-tratos, o § 4º do mesmo diploma legal assegura que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.”
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) também reza em seus dispositivos que:
É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. (ECA, art.18, grifo nosso).
Por óbvia conclusão semântica, o dispositivo, à semelhança da Constituição Federal, incumbe governo, sociedade e família de concorrerem pelo pleno desenvolvimento de dignidade e bem-estar da criança e do adolescente. O que não obsta, por evidente, o exercício patriarcal, matriarcal, ou por quem lhes faça às vezes, de correção e disciplina dentro dos limites toleráveis de dignidade e integridade.
Na esfera cível, temos que a mãe ou o pai que castigar imoderadamente o filho perderá o poder familiar (Código Civil, art. 1638, I). E há várias julgados que demonstram a eficácia deste dispositivo em consonância com o ECA. É o que visualizamos neste exemplo:
DIREITO MENORISTA - ECA - PERDA DO PODER FAMILIAR PELOS PAIS BIOLÓGICOS - FILHOS CASTIGADOS IMODERADAMENTE - AFIRMAÇÕES RATIFICADAS PELO SERVIÇO SOCIAL - PROCEDÊNCIA NO PRIMEIRO GRAU - INCONFORMISMO - CUIDADOS MORAIS E MATERIAIS - ALEGAÇÕES INCOMPROVADAS - CASTIGOS IMODERADOS - OCORRÊNCIA - PERDA DO PODER FAMILIAR - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO. ECA.Verificados castigos imoderados perpetrados contra as pessoas dos filhos menores, e constatado pelo Serviço Social Forense que os genitores não protegem moral e economicamente os infantes, impõe-se a perda do poder familiar daqueles sobre estes, conforme art. 1.638, I, do Código Civil. (TJSC - Apelação Cível: AC 379591 SC 2005.037959-1, Relator: Monteiro Rocha, Data de Julgamento: 20/04/2006, Segunda Câmara de Direito Civil)
Condutas que expressam violência contra menores podem, inclusive, ser definidas por crime. O Código Penal não trata de forma específica, mas contempla o crime de maus-tratos e lesão corporal nos quais podem enquadrar pais ou responsáveis por crianças e adolescentes. Neste diapasão, temos por definição legal de maus-tratos:
Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina (CP, art.136, caput. Grifo nosso.)
Neste caso a pena é de detenção ou multa, aumentada de um terço se praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. (CP, art.136, §3º). Destaque-se ainda a objetividade do artigo ao estipular o abuso nos meios de disciplina ou correção. A lesão corporal, por sua vez, é a conduta de “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem” (CP, art. 129, caput) com pena de detenção de três meses a um ano. No parágrafo nono encontramos:
Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade (CP, art. 129, §9º)
Nesta ocorrência, a reprimenda será de três meses a três anos de detenção, o que significa maior reprovação penal por a lesão ser cometida em desfavor de parentes ou nas relações mais íntimas.
Visualizamos, assim, que a ultima ratio[8] também alcança aqueles que têm o dever de proteger, mas preferem ser a principal ameaça. Portanto, resta claro que há legislação que abarca, repita-se, o suficiente, e reprime a correção física exercida de forma a extrapolar os níveis de razoabilidade, ao ponto de se tornar flagrantemente imoderada.
Pertinente fazermos menção ao instituto do exercício regular de direito, previsto no CP, art. 23, o qual pressupõe uma faculdade de agir concedida pelo direito a alguma pessoa, em que a prática de uma ação tipificada como ilícita, deixa de ser, constituindo-se uma das causas de excludente de ilicitude. Exemplo deste instituto é trazido pelo professor Júlio F. Mirabete ao citar a correção dada pelos pais aos filhos (2010, p.175).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A família representa fundamental papel no desenvolvimento da criança e do adolescente, sendo no seio familiar que o indivíduo cultiva e estende suas potencialidades para além dos seus termos. E é justamente neste ambiente que se discute a possibilidade de limitação ao poder disciplinador dos pais.
Percebe-se que há muita controvérsia acerca do Projeto de Lei, bem como se os pais devem ou não fazer uso da correção física (palmadas) quando da educação dos filhos, o que não nos permite abordar de forma cabal e definitiva as considerações aqui levantadas, aliás, não sabemos quando e se isso será possível.
Contudo, é de frisar que a direção educacional dos filhos compete exclusivamente aos pais ou àquele incumbido para este fim, pois se estriba no regular exercício de um direito, somente cogitando a intromissão estatal quando os genitores usam de meios aviltantes no tratamento com seus educandos e excede para além do que a ordem jurídica permite ao exercício do direito.
Como restou demonstrado, o ordenamento jurídico brasileiro já alarga sua faceta repressora a qualquer forma de excesso que possa vir a caracterizar violência, abuso, exploração, crueldade, opressão ou qualquer outro meio atentatório à dignidade do menor. O que torna despicienda a elaboração de mais uma lei.
Por fim, ratificamos que a violência não pode fazer parte do processo de educação e desenvolvimento sadio do indivíduo, devendo ser reprimida pela lei. Por outro lado, pretender que o Estado – diga-se de passagem, tão deficitário e longe de assistir a realidade social – tome a direção dos lares e diga o quê e como a educação deve ser feita ou como não dever ser, é insurgir contra a liberdade familiar e colocar em mãos estranhas o destino para o qual cada um pretende dar a sua prole.
REFERÊNCIAS
BARROS, Ana Cláudia. Terra Magazine. Nova Lei Não vai Punir Pai que dá Palmada. Disponível em: <http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5520206-EI6578,00-Nova+lei+nao+vai+punir+pai+que+da+palmada+garante+deputada.html> Acesso em 16 de nov. de 2012.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei l nº 8069, de 13 de julho de 1990.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.484 de 07 de Dezembro de 1940.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002.
COMO EDUCAR OS FILHOS. Soluções e Estratégias para os pais. Disponível em: <http://comoeducarosfilhos.com.br/como-corrigir-os-filhos-bater-ou-nao-bater/> Acesso em 18 de nov. de 2012.
MIRABETTE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal, v.1: Parte geral, arts. 1º a 120 do CP/ Julio Fabbrini Mirabete, Renato N. Fabbrini –26 Ed. Ver. E Atual. – São Paulo: Atlas, 2010.
Notas
[1] Disponível em: http://www.douradosagora.com.br/noticias/brasil/lei-da-palmada-causa-polemica
[2] Idem.
[3] Denise Dias é terapeuta infantil, autora do recém-lançado Tapa na Bunda – Como Impor Limites e Estabelecer um Relacionamento Sadio com Crianças em Tempos Politicamente Corretos (Ed. Matrix).
[4] Disponível em: < http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,EMI284938-15046,00.html>
[5] Expressão latina que pode ser traduzida literalmente como direito de punir do Estado.
[6] Há uma frase que diz: se os pais não ensinam, futuramente a polícia ensinará.
[7] Parece-nos que o Legislador supõe que Estado ame mais aos filhos do que os próprios pais.
[8] Significa “última razão” ou “último recurso”. É uma expressão com origem no Latim, frequentemente utilizada no Direito. Reconhece que o Direito Penal é a ultima ratio, isto é, é o último recurso ou último instrumento a ser usado pelo Estado.