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A prova para a concessão da justiça gratuita

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15/05/2013 às 16:22
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A mera afirmação de hipossuficiência econômica, isolada de qualquer outro elemento de prova de titularidade do pretenso beneficiário, não é mecanismo suficiente para a ampla concessão do benefício.

Resumo: Este trabalho estrutura uma base para o estudo da prova na concessão da justiça gratuita. Apresenta o tratamento dado pela doutrina sobre o tema em questão, ao mesmo tempo em que traz também jurisprudência e legislação. Orienta sua evolução introduzindo o estudo pelo instituto do acesso à Justiça, passando em seguida à análise da própria justiça gratuita para então adentrar ao cerne do trabalho, tal sejam as críticas e sugestões para a definição de um justo meio de prova para a concessão da justiça gratuita. No decorrer do seu desenvolvimento nota-se a estreita ligação entre os recentes entendimentos jurisprudenciais com a premente necessidade de se pensar sobre a atualidade e eficaz operacionabilidade da Lei da assistência judiciária gratuita. Mencionada Lei é estudada dentre os abusos e prejuízos advindos de sua simplicidade probatória, com o intuito, diga-se, de delimitar sob que cenário deve-se esperar o desenrolar de uma relação de prova mais útil. Esta monografia oferece, ainda, hipóteses de verificar de que forma os beneficiários eventualmente poderiam agir de modo a ensejar a criação de uma prova em favor da boa-fé durante a fase de pré-ajuizamento da ação. E, por fim, importa constar que o fundamental sobre todo o pensar que vise à melhoria da concessão da justiça gratuita é a preservação do acesso do hipossuficiente à Justiça.

Palavra-chave: justiça gratuita – Lei da assistência judiciária – prova


INTRODUÇÃO

A escolha do presente tema tem razão no entendimento de que não há hoje eficácia no método legal de verificação da necessidade de uma pessoa, seja física ou jurídica, pleitear o direito à gratuidade processual (justiça gratuita).

Acredita-se que a mera afirmação de hipossuficiência econômica isolada de qualquer outro elemento de prova de titularidade do pretenso beneficiário não é mecanismo suficiente para a ampla concessão do benefício -- vide a crescente preocupação da doutrina e da jurisprudência sobre a atualização do instituto, conforme este trabalho se propõe a demonstrar.

Some-se a isso o intuito de garantir uma nova sistemática que, além de i) evitar o acesso gratuito ao judiciário por litigantes de má-fé que procuram a “lide sem risco”, uma vez que se condenados os ônus financeiros de sucumbência ficam suspensos por cinco anos e depois prescrevem, a não ser que a parte contrária comprove que o beneficiário possa arcá-los (artigo 12 da Lei da assistência judiciária gratuita), também ii) evite que haja dúvida quanto aos meios permitidos ou possíveis de identificação do litigante hipossuficiente, afastando hipóteses de denegação do direito à justiça gratuita à pessoas que realmente a ele façam jus. 

Dessa forma, com o embasamento na doutrina, legislação e jurisprudência, este estudo tem o objetivo de descrever os elementos caracterizadores da justa concessão da justiça gratuita.

Para tanto, será analisada a noção de acesso à Justiça, custo da justiça, outros obstáculos ao acesso à Justiça e formas de vencê-los, como também o conceito e principais características procedimentais da gratuidade processual, para, enfim, tratar sobre o tema da prova na concessão do benefício da assistência judiciária gratuita.

Importa destacar que o norte da pesquisa é a Lei da assistência judiciária gratuita, pois trata da justiça gratuita e sua forma de concessão, como também, dos aspectos que ensejam a caracterização do beneficiário do instituto.

Assim, a partir desses dois institutos, acesso à Justiça e justiça gratuita, e seus respectivos regramentos, urge demonstrar como eles podem se entrelaçar e até que ponto pode ser considerado justo o atual procedimento probatório de outorga do benefício da gratuidade processual. 

Ainda, o escopo desta pesquisa é demonstrar a relevância e interesse jurídico da questão da prova para a concessão da assistência judiciária gratuita, com a menção, inclusive, de exemplos de como, eventualmente, há a injusta concessão do benefício.

Apresentará, a recente discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a eficácia e a atualidade da Lei da assistência judiciária gratuita, englobadas todas as principais questões inerentes à presente monografia: o reconhecimento do beneficiário, o meio probatório atual, a impugnação do benefício, etc.

A relevância da prova na concessão da gratuidade processual será de suma importância para a pesquisa, de modo que sem essa conscientização, não pode haver uma justiça gratuita de qualidade no Brasil.

Em suma, a prova bastante deve ser parâmetro para a concessão de um benefício que vise o acesso à Justiça de uma parcela da população nacional que enfrenta obstáculos financeiros nesse acesso.

Será demonstrado, por exemplo, que a omissão de mecanismos mais eficazes na outorga do benefício, ou a desproporcional disposição do ônus probatório à parte contrária, geram insegurança jurídica e injustas concessões da gratuidade processual.

Por fim, são enfrentadas sugestões de melhoria na atual perspectiva da justiça gratuita brasileira, tanto na forma de outorga do benefício, quanto, consequentemente, como se verá, na maneira de impugnação dessa concessão.


1. ACESSO À JUSTIÇA

Quando se pensa em acesso à Justiça, a primeira ideia comum é a da entrada, ingresso ao sistema Estatal que provê a Justiça. É esse mesmo o paradigma desta monografia, a ligação entre o acesso à Justiça, como Poder Judiciário, a justiça gratuita e sua coesa e justa operacionalização.

Conforme se verá, a isenção das custas do processo é um direito que é indispensável ao acesso à Justiça. Para a sua consecução, entretanto, é necessária a existência de mecanismos processuais que estabeleçam o modo como esse direito será disponibilizado àqueles que o fazem jus. Isto é, ao direito deve corresponder um procedimento eficaz e justo para o seu acesso.

Nesse aspecto, o direito processual tem importante papel transformador do direito material, isto é, por meio da jurisdição se procura dar efetividade ao direito. Esse é o entendimento de Jônatas Luiz Moreira de Paula, in verbis:

(...) o Direito Processual é para o povo. A sociedade não legisla diretamente no direito processual, senão por meio de seus representantes no parlamento. O Direito Processual é produto da necessidade de aprimoramento da atividade jurisdicional. Suas normas indiscutivelmente regulam os princípios informadores, temperados pela realidade e pelo bom-senso. O caráter transformador que impregna a atividade jurisdicional bem norteia o endereçamento do direito processual: o proveito social. A sociedade é “consumidora” das normas processuais no afã de conferir eficácia forçada dos direitos subjetivos espontaneamente ineficazes. (...) No âmbito da realização da inclusão social, a efetividade da jurisdição é mister para a consecução do fim desejado.[1]

Cândido Rangel Dinamarco, em sua obra “A instrumentalidade do processo”, aponta para essa estreita ligação entre direito material e direito processual, afirmando que somente com uma interpretação inteligente e atualizada da técnica processual, será possível atingir a consciência de que o processo deve ser manejado como mecanismo de distribuição de justiça entre as partes e de amplo acesso às pessoas ao Judiciário.[2]

O autor, ainda, conclama pela necessidade constante de re-análises da legislação processual em vigor para, se necessário, optar por reformas que visem o incremento de velhos instrumentos processuais, nos termos apresentados no parágrafo anterior. Cita a reforma do Código de Processo Civil como exemplo.[3]

Em suma, sobre essa relação o jurista José Roberto dos Santos Bedaque traz uma síntese apropriada aos anseios de Justiça: Menos tecnicismo e mais justiça, é o que se pretende.[4] Ou seja, não basta a previsão do direito material, por melhor que ele seja, mas importa que se estabeleçam instrumentos processuais eficazes para a asseguração do direito criado, em caso de sua não observância espontânea pela sociedade.[5]

É certo, porém, que o instituto do acesso à Justiça não se limita a esse contexto de acesso ao judiciário, mas engloba também a discussão sobre a prestação justa do serviço judicial: conscientização da população sobre seus direitos, sobre a importância e função dos juristas – juízes, promotores, advogados, etc. – e sobre o custo, demora e alcance – beneficiados – de uma lide.

No entanto, nessa monografia, em virtude de que a justiça gratuita se vê inserida no primeiro aspecto, tratar-se-á, somente, repita-se, sobre o acesso ao judiciário.

Nesse sentido, sobre o conceito de acesso à Justiça, a doutrina estrangeira, representada no seguinte trecho por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, expõe que:

A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.[6]

A doutrina nacional, na pessoa de José Cichocki Neto, ensina:

Tem-se por insuprimível a relação de conteúdo e de funcionalidade, entre o acesso à justiça e o processo. Sob o ponto de vista da atividade jurisdicional, não há como referir-se ao acesso à justiça sem se considerar o processo como um instrumento de sua realização. Nessa perspectiva, a expressão “acesso à justiça” engloba um conteúdo de largo espectro: parte da simples compreensão do ingresso do indivíduo em juízo, perpassa por aquela que enfoca o processo como instrumento para a realização dos direitos individuais, e, por fim, aquela mais ampla, relacionada a uma das funções do próprio Estado a quem compete, não apenas garantir a eficiência do ordenamento jurídico; mas, outrossim, proporcionar a realização da justiça aos cidadãos.[7]

Paulo Cesar Santos Bezerra assevera que “(...) para que haja o efetivo acesso à justiça é indispensável que o maior número de pessoas seja admitido a demandar ou a defender-se adequadamente, nos casos de escolha da via judicial, (...)”.[8]

O mesmo autor lembra-se da criação histórica, com a promulgação da Constituição Federativa do Brasil de 1946, do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio da acessibilidade ampla ao Poder Judiciário, como, ao lado da assistência gratuita e da assistência jurídica integral (afirmadas pela Carta Magna, como se verá a diante), importante elemento de acesso à Justiça.[9]

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Sobre o princípio da inafastabilidade ou, ainda, princípio da legalidade, na definição de Alexandre de Moraes:

O princípio da legalidade é basilar na existência do Estado de Direito, determinando a Constituição Federal sua garantia, sempre que houver violação do direito, mediante lesão ou ameaça (art. 5º, XXXV). Dessa forma, será chamado a intervir o Poder Judiciário, que, no exercício da jurisdição, deverá aplicar o direito ao caso concreto. (...) o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade da ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue.[10]

José Cretella Júnior, em ainda nova denominação, diz sobre o princípio da inarredabilidade do controle jurisdicional[11]:

(...) “apreciação” é “revisão”, “controle”, “contraste”, “contrasteamento”. Cabe ao Poder Judiciário, no policiamento da legalidade, apreciar, mediante provocação do interessado, a lesão de direito ocorrida. Ou a ameaça de lesão. Se se tratar de direito líquido e certo, cabe o mandado de segurança. Se a lesão for dirigida à liberdade de locomoção, cabe o habeas corpus.[12]

Sobre esse relevante princípio, por fim, em total consonância com o escopo do estudo sobre mecanismos de acesso amplo e justo à Justiça que esta monografia propõe, em especial sobre a gratuidade processual, Rogério Lauria Tucci relembra que a garantia constitucional da tutela jurisdicional tem igual definição no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948[13] (alías, dispositivo de grande inspiração à nossa Constituição Cidadã):

“Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com eqüidade, por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações, ou para o exame de qualquer acusação contra ela dirigida, em matéria penal.”

Portanto, observa-se a importância da previsão expressa do acesso amplo à Justiça no ordenamento jurídico, assim como, a concomitância de instrumentos que o viabilizem, os quais, sem esgotá-los, serão detalhados a diante, em especial a gratuidade processual.

Outrossim, o acesso à Justiça, entendido como o acesso ao Judiciário, trafega a partir do trâmite de uma demanda judicial em que sejam exigidas custas e despesas processuais, além da possibilidade de condenação em honorários advocatícios decorrentes da sucumbência.

Nesse sentido, a doutrina aponta a justiça gratuita como um mecanismo essencial ao pleno acesso à Justiça do jurisdicionado.

Novamente, Alexandre de Moraes, analisando o artigo 5º, inciso LXXIV[14], da Constituição Federal, ensina que:

Sem assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes não haveria condições de aplicação imparcial e equânime de Justiça. Trata-se, pois, de um direito público subjetivo consagrado a todo aquele que comprovar que sua situação econômica não lhe permite pagar os honorários advocatícios, custas processuais, sem prejuízo para o seu próprio sustento e de sua família[15].

Hélio Márcio Campo, analisando o mesmo inciso, assevera que:

Trata-se do exercício do direito de ação e da plena aplicação do princípio do contraditório e da ampla defesa, consubstanciados nos incisos XXXV e LV, do art. 5º, da Constituição Federal, que, como tais, foram erigidos à categoria de direito e garantia individual.[16]

José Cretella Júnior:

A assistência jurídica deve ser integral, plena. A prestação jurisdicional é ato vinculado. Provada pelo interessado sua condição de necessitado, tem ele o direito de exigir do Estado aquilo que a regra jurídica constitucional lhe assegurou.[17]

Nelson Nery Júnior, de forma incisiva, defende a existência da gratuidade processual como pressuposto basilar do acesso do cidadão à Justiça:

A isenção das custas e honorários ao beneficiário da assistência judiciária (LAJ 3º) não constitui ofensa à isonomia. Haveria vedação do acesso à justiça caso se obrigasse o necessitado a pagar as despesas processuais.[18]

Ainda, já novamente perante a doutrina estrangeira, cabe prestigiar a lição de Mauro Cappelletti:

Na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado é essencial, senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e procedimentos misteriosos para ajuizar uma causa. Os métodos para proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso mesmo, vitais.[19]

Percebe-se, assim, a vital importância da previsão de acesso gratuito àqueles que necessitem da prestação da jurisdição estatal, mas, por razões econômicas, não possuam acesso à demanda a qual exige desde logo o pagamento de encargos financeiros para seu ajuizamento.

No entanto, cabe delimitar a importância, por sua vez, da fixação de um custo ao acesso ao judiciário.

1.1.Custo da Justiça

Por mais que o suporte financeiro do judiciário não recaia totalmente no jurisdicionado, uma vez que o Estado cria primeiro toda a estrutura física da Justiça (prédios, funcionários, material de escritório, etc.), grande parte do financiamento da manutenção e das melhorias dessa estrutura inicial será paga pelos “clientes” da Justiça, os jurisdicionados.

No direito comparado, Mauro Cappelletti e Bryant Garth, observam que:

A resolução formal de litígios, particularmente nos tribunais, é muito dispendiosa na maior parte das sociedades modernas. Se é certo que o Estado paga os salários dos juízes e do pessoal auxiliar e proporciona os prédios e outros recursos necessários aos julgamentos, os litigantes precisam suportar a grande proporção dos demais custos necessários à solução de uma lide, incluindo os honorários advocatícios e algumas custas judiciais.[20]

Dinamarco, também lembra o custo de uma demanda:

Sabido que o processo custa dinheiro, inexistindo um sistema de justiça inteiramente gratuita onde o exercício da jurisdição, serviços auxiliares e defesa constituíssem serviços honorários e portanto fossem livres de qualquer custo para o próprio Estado e para os litigantes, para que os necessitados possam obter a tutela jurisdicional é indispensável que de algum modo esse óbice econômico seja afastado ou reduzido. Daí a busca de meios para suprir as deficiências dos que não têm.[21]

Ato contínuo, importante ponderar que o custo da Justiça tem uma função necessária: ao mesmo tempo em que é utilizado para suportar os custos de operacionalização do judiciário, também serve para inibir causas temerárias.

Assim, o cidadão pensa duas vezes antes de se aventurar em uma causa, em função, como se viu, dos seus altos custos (adiantamento de valores, possível sucumbência, preparos recursais, etc.).

A doutrina, presa a essa fundamental concepção da Justiça, defende que:

(...) prepondera universalmente a onerosidade do processo, para as partes, porque a gratuidade generalizada seria incentivo à litigância irresponsável, a dano desse serviço público que é a jurisdição. Os casos de gratuidade são excepcionais e específicos, estando tipificados em normas estritas.[22]

Dessa forma, caberá analisar a hipótese da assistência judiciária com mais profundidade, para delimitar sua importância e eventuais pontos de melhoria.

1.2.            Outros obstáculos ao acesso à Justiça

Antes de analisar o instituto da justiça gratuita, que não se olvide, contudo, da existência de outros obstáculos ao acesso à Justiça, como, por exemplo, a resistência[23] da população, em regra, ao Poder Judiciário (em vista de sua notória demora[24], má prestígio, em geral, da classe de advogados, etc.).

O estudo desses obstáculos é importante para que se perceba como a melhoria do sistema da assistência judiciária é um mínimo diante do que ainda se pode fazer em termos de acesso à Justiça, conforme se verá no próximo subcapítulo.

Assim, um dos mais comuns obstáculos, aliás, intimamente ligado à justiça gratuita, é o da sensível falta de informação/educação que assola as classes mais humildes, justamente as que mais utilizam o direito à gratuidade processual e os serviços da assistência jurídica, custeada ou não pelo Estado (Defensoria Pública, advogados nomeados pelo Juízo, advogados do convênio do Estado com a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo, assistência jurídica gratuita prestada por faculdades de direito[25], etc.).

Augusto Tavares Rosa Marcacini, intitulando essa falta de informação como uma barreira cultural e ligando, outrossim, essa questão à falta de recursos, como mencionado acima, aduz que:

(...) como a falta de recursos vem, muitas vezes, acompanhada da falta de informação, o acesso à Justiça é obstado até mesmo pelo fato do pobre desconhecer que tenha direitos a pleitear, ou que possa ter sucesso na tarefa de lutar por seus direitos. As barreiras culturais são, na verdade, mais difíceis de serem vencidas do que as barreiras econômicas. Estas podem ser afastadas isentando-se o carente das despesas com o processo e fornecendo-lhe gratuitamente um advogado para patrocinar seus interesses. As barreiras culturais só serão afastadas de fato na medida em que o nível sociocultural da população evoluir.[26]

Mauro Cappelletti, analisando um obstáculo novamente ligado à carência de recursos do litigante, nomeado como recursos financeiros (dentro do item “possibilidades das partes”, que também, no sentido do exposto acima como uma barreira cultural, engloba o obstáculo “aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa”), assevera:

Pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou defender demandas. Em primeiro lugar, elas podem pagar para litigar. Pode, além disso, suportar as delongas do litígio. Cada uma dessas capacidades, em mãos de uma única das partes, pode ser uma arma poderosa; a ameaça de litígio torna-se tanto plausível quanto efetiva. De modo similar, uma das partes pode ser capaz de fazer gastos maiores que a outra e, como resultado, apresentar seus argumentos de maneira mais eficiente. Julgadores passivos, apesar de suas outras e mais admiráveis características, exacerbam claramente esse problema, por deixarem às partes a tarefa de obter e apresentar as provas, desenvolver e discutir a causa.[27]

Mencionado autor cita ainda outro obstáculo ligado às possibilidades das partes, a questão da freqüência dos litigantes em lides judiciais, o que chama de litigantes “eventuais” e litigantes “habituais”.[28]

O autor explica que a utilização constante do Poder Judiciário dá a esse litigante habitual (a quem chama de “litigantes organizacionais” – cita como exemplo as empresas) muitas vantagens em relação àquele que eventualmente (menciona como exemplo as “pessoas comuns”) faz uso do Judiciário, como por exemplo, o acúmulo de experiência judicial, o que traria possibilidade de planejarem os litígios e a possibilidade do desenvolvimento de relações informais com os membros da instância decisória. Essas vantagens dariam mais eficiência aos litigantes habituais.[29]

Como se vê, não são poucos os obstáculos ao acesso à Justiça. Em geral, estão eles ligados à carência de recursos e a falta de informação/instrução dos indivíduos.

Porém, existem, por sua vez, alternativas criadas para possibilitar a melhoria do acesso à Justiça, como o subcapítulo a seguir demonstrará.

1.3.            Alternativas para melhorar o acesso à Justiça

É certo, como visto, que a dificuldade financeira é apenas um de outros obstáculos sócio-culturais ao acesso à Justiça, seja no conceito de acesso ao Judiciário, seja no de acesso à outorga de um justo serviço judicial.

Sobre a importância do enfrentamento dos chamados obstáculos à Justiça, Luiz Guilherme Marinoni defende que:

(...) para se garantir a participação dos cidadãos na sociedade, e desta forma a igualdade, é imprescindível que o exercício da ação não seja obstaculizado, até porque ter direitos e não poder tutelá-los certamente é o mesmo do que não os ter.[30]

Assim, além do instituto da justiça gratuita, objeto de estudo mais aprofundado nessa monografia, já existem outras medidas em que se credita uma melhoria ao acesso à Justiça no Brasil.

Nesse sentido, cabe registrar a advertência de Rogério Lauria Tucci:

Realmente, para ser assegurada a liberdade e, sobretudo, a igualdade das partes faz-se imprescindível que, durante todo o transcorrer do processo, sejam assistidas e/ou representadas por um defensor, dotado de conhecimento técnico especializado, e que, com sua inteligência e domínio dos mecanismos procedimentais, lhe propicie a tutela de seu interesse ou determine o estabelecimento ou o restabelecimento do equilíbrio do contraditório.[31]

Dessa forma, apresenta-se a primeira pertinente medida efetiva para um melhor acesso à Justiça, a Defensoria Pública que, aliás, tem estreita ligação com a justiça gratuita, uma vez que se insere no conceito maior de assistência jurídica integral e gratuita, prevista na Constituição Federal, como será detalhado a diante.

Guilherme Braga Peña de Morais conceitua a Defensoria Pública como:

(...) uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, correspondendo a uma manifestação e instrumento do regime democrático, cabendo-lhe a orientação jurídica integral e gratuita, a postulação e a defesa judicial (em todos os graus de jurisdição) e extrajudicial, de direitos, individuais e coletivos, titularizados por hipossuficientes econômicos. (...) o termo “assistência jurídica” abrange a defesa, em juízo, de interesses e direitos titularizados por hipossuficientes econômicos, a prevenção, o aconselhamento, a consultoria e a informação jurídica, bem como a prática de atos extrajudiciários em favor dos despossuídos.[32]

E continua o autor, tratando da vertente consultiva da Defensoria Pública, verbis:

O aconselhamento, a consultoria e a informação jurídica são estabelecidos no artigo 4º, I, da Lei Complementar nº 80, de 1994, e possuem como objetivo, através dos acordos celebrados entre as partes envolvidas em um conflito de interesse, com a participação do Defensor Público, a quem cabe instruir os litigantes de seus direitos e deveres e das conseqüências da demanda judicial; evitar a propositura de inúmeras ações judiciais, vindo a desafogar os órgãos jurisdicionais, já que tais medidas decorrem, geralmente, do desconhecimento do direito titularizado.[33]

Como se observa, a Defensoria Pública foi instituída (artigo 134, da Carta Magna) para prover a assistência judiciária integral e gratuita para os hipossuficientes. Sua existência é fundamental para assegurar um eficaz patrocínio judicial aos desfavorecidos, pois não bastaria a isenção de custas se a eles também não fosse outorgado um serviço de qualidade e gratuito para a defesa de seus interesses legais. 

Além da Defensoria Pública, como visto, Marcacini cita três importantes diplomas jurídicos que vieram para ampliar o acesso à Justiça ao cidadão: a Lei dos juizados especiais (Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995), relativamente à defesa dos interesses das chamadas “pequenas causas”; a Lei da ação civil pública (Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985), que disciplina a defesa de interesses difusos e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), que estabelece diversos direitos e medidas de proteção ao consumidor.[34]

Sobre a efetividade dessa facilitação ao acesso à Justiça, o mesmo autor, relativamente ao Código Consumeirista, defende que:

(...) temos que a defesa coletiva de interesses do consumidor pode evitar inúmeras causas individuais – por exemplo, ao buscar retirar um produto do mercado, afastar práticas lesivas ou proibir propagandas enganosas, previne-se a ocorrência de futuros conflitos (...).[35]

Sobre os Juizados Especiais, José Renato Nalini, expressa suas boas esperanças para, de forma geral, depositar a expectativa da população, principalmente na classe desprovida de recursos financeiros, em uma melhora da prestação jurisdicional do Poder Judiciário.

O autor defende que a criação dos Juizados veio democratizar o acesso à Justiça, pois institucionalizou uma mentalidade de “tolerância zero” perante qualquer injustiça. E continua, afirmando que enquanto à justiça tradicional (leia-se, a justiça comum), historicamente formal e hermética, é rechaçada pelo povo, os Juizados são procurados com a credibilidade de instituição humana ordenada para a solução eficaz dos problemas judiciais.[36]

Pedro Manoel Abreu comenta sobre a origem, evolução e o êxito dos Juizados Especiais ensinando que seu surgimento veio da experiência prática do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. Este, continua o autor, superou a burocracia, onerosidade e lentidão do sistema judiciário tradicional e, em pouco tempo, teve o apoio maciço da sociedade brasileira, ensejando na criação da Lei dos Juizados, democratizando o Judiciário e indo ao encontro do objetivo maior do acesso à Justiça, o alcance à cidadania plena.[37]

Os Juizados Especiais, ademais, trouxeram importante inovação: o seu acesso, em primeiro grau, é isento de custas e de honorários advocatícios (artigo 54, caput, da Lei nº 9.099/95).

A Lei dos Juizados Especiais, com isso, como apontou a doutrina ora colacionada, quis democratizar o acesso ao judiciário, notadamente àqueles chamados hipossuficientes, como os consumidores e todas aquelas pessoas economicamente e culturalmente vulneráveis.

Com relação à defesa aos interesses difusos, traçando uma interessante relação com a defesa dos direitos individuais, Marinoni ensina que as demandas coletivas superam o custo e a demora das lides individuais, pois em uma hipótese em que o lesado teve um prejuízo pequeno, a demanda individual não compensa, mas se o cidadão estiver, por exemplo, amparado por uma associação de consumidores, aí sim verá seu direito devidamente tutelado, pois a Lei prevê a legitimidade para essa entidade de classe pleitear em Juízo os interesses desse cidadão e de todos os outros por ela tutelados que tiverem seu direito lesado.

O autor ainda assevera que essa proteção legal evita que o lesado aceite inerte a violação de seu direito, o que com certeza acarretaria transtorno individual e, na esfera coletiva, “perigosa insatisfação coletiva”.[38]

O surgimento desses modernos sistemas de proteção às minorias e defesa de interesses coletivos, conjuntamente com a Defensoria Pública, vem ao encontro de uma tendência de facilitação de acesso à Justiça às classes menos favorecidas e, ao mesmo tempo, desvirtua, ao menos na teoria, a pecha negativa sofrida pelo Poder Judiciário.

Fábio Campelo Conrado de Holanda, ao apontar o Judiciário como quase único meio de acesso à Justiça buscado pela maioria das pessoas, reconhece a necessidade do incentivo de “aprimoramento de mecanismos processuais e a implementação de políticas públicas tendentes a resguardar os direitos e a reduzir as desigualdades entre as pessoas (...)”.[39]

Ainda, Marinoni lembra que: “os conflitos civis podem ser eliminados por ato dos próprios envolvidos, quando ocorre a autocomposição (...) ou ainda por via da mediação ou da arbitragem (por um terceiro que não exerce o poder estatal).”[40]

Com efeito, é crescente o incentivo do Estado e da sociedade em geral na opção das chamadas “formas alternativas de resolução de conflitos”, que têm na arbitragem, na mediação e na conciliação suas principais representantes. São alternativas que visam a solução mais rápida e menos custosa dos conflitos. No caso da mediação e da conciliação, um terceiro imparcial ao caso dirige as partes para um acordo que pode, posteriormente, ser homologado em Juízo. Já na arbitragem, em linhas gerais, as partes, em litígios que envolvam direitos disponíveis, optam pela solução do conflito por um árbitro escolhido e custeado por elas. Esse sistema, pelo custo, em regra, superior ao do judiciário, é mais comum entre causas de empresas. A arbitragem é regulada pela Lei nº 9.307/96.

Marinoni diz sobre a conciliação:

A conciliação, realizada fora do processo do Estado e por juízes que não seus agentes, foi inicialmente instituída na forma de “Conselhos de Conciliação e Arbitramento” (Rio Grande do Sul) e de “Juizados de Conciliação” (São Paulo), e objetiva solucionar os conflitos de interesses sem dizer que “A” ou “B” tem razão, mas buscando conferir às partes condições favoráveis para a eliminação do conflito através de atos de sua própria vontade, ou melhor, buscando induzir as próprias partes a resolver seu caso.[41]

Agora sim, verificados alguns outros obstáculos ao acesso à Justiça e algumas alternativas para vencê-los, passa-se ao estudo da justiça gratuita e ao cerne do trabalho, sua forma de concessão, especialmente o que diz respeito à prova para a consecução do benefício.

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Sobre o autor
Piero de Manincor Capestrani

Advogado nas áreas de contencioso cível, trabalhista e família. Formado em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackezie em 2009, onde também completou especialização em Direito Processual Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAPESTRANI, Piero Manincor. A prova para a concessão da justiça gratuita. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3605, 15 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24336. Acesso em: 18 abr. 2024.

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