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O STF, o CNJ e a Resolução nº 175/2013 sobre o casamento civil homossexual

11/06/2013 às 10:47

Resumo:


  • A obra "Juízes Legisladores" de Mauro Cappelletti denuncia o ativismo judicial e cita Lord Devlin sobre os perigos desse caminho.

  • No Brasil, o Poder Judiciário tem sido acusado de "judicialização do poder constituinte originário", ultrapassando limites constitucionais.

  • O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) têm sido criticados por decisões que impactam questões legislativas e morais sem base constitucional sólida.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Resolução n.º 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça apresenta-se, inconstitucionalmente, como um regulamento de substituição de leis ou mesmo como um regulamento de alteração de leis, invadindo, assim, a esfera de competência do Poder Legislativo.

Em sua obra “Juízes Legisladores”[1], o famoso jurista italiano Mauro Cappelletti, denunciando o ativismo judicial dos atuais tempos, apresenta-nos uma citação do jurista inglês Lord Devlin – e aqui a mencionamos a propósito desta “antecipação de consenso legislativo” que impera no Poder Judiciário brasileiro – que é digna de apreciação introdutória no presente ensaio. Diz a citação do jurista inglês:

“É grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desviação só aparente­mente provisória; em realidade, seria ela a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário.” (grifos nossos)

A realidade descrita nesta assertiva é exatamente a mesma que, infelizmente, estamos a viver no nosso país atualmente. Vivemos sob a égide de um processo perigoso de “judicialização do poder constituinte originário”[2]. De fato e de direito, os princípios basilares da democracia moderna, quais sejam, o da Separação de Poderes e dos Freios e Contrapesos (checks and balances), não têm sido respeitados pelo Poder Judiciário nacional, como no caso, agora, do Conselho Nacional de Justiça e a edição da Resolução Nº 175/2013.

Nos últimos tem­pos, o órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, o STF, tem sido provocado – por meio de ADI’s (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) e ADPFs (Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental) – a decidir sobre questões que envolvem o complexo ideário sociocultural da denominada consciência nacional, os seus mores maiorum civitatis, aquilo que a sociedade classifica, em termos comportamentais, como o seu “belo”, o seu “bem” e a sua “verdade”. Mais que isso, o STF tem sido provocado a decidir sobre todas essas questões com implicações de ordem legiferante e mutacional (seja como “legislador” positivo, seja como “legislador” negativo, através da técnica hermenêutica de interpretação conforme) de tal modo que os mais relevantes (e por isso o termo latino mores maiorum) valores morais e padrões éticos de comportamento estabelecidos pela Nação Brasileira na Constituição Federal de 1988 estão sendo objeto de construção e desconstrução “legislativa” por uma corte formada por apenas 11 pessoas do Povo Brasileiro.

Assim, se é certo que a atual Constituição, conforme esta­belece o preâmbulo constitucional, foi formada e sedimentada em de­terminados pilares morais e éticos e “sob a proteção de Deus” – porque esta foi a vontade do legítimo proprietário do Poder Constituinte, a Nação Brasileira – também é certo que, hoje, o STF, de modo equivo­cado e autoritário, ao nosso entender, tem sido levado a desmontar e remontar a estrutura ideológica da consciência nacional que formatou a Constituição Federal de 1988 sem a devida autorização do Povo e da própria Constituição para isso. O recente caso do estabelecimento da união homossexual através do Poder Judiciário[3] e não do Poder Legislativo é um típico exemplo disso.

Evidente que a Nação Brasileira ao estabelecer a Constituição Federal por meio da As­sembleia Nacional Constituinte – expressão maior do seu Poder Constituinte Originário – não autorizou a inovação legislativa – es­pecialmente, em temas de alta complexidade moral e ética – por parte de nenhum Poder ou Órgão da República Federativa do Brasil, a não ser o Poder Legislativo da União que pode fazê-lo – tais inovações e mutações constitucionais e infraconstitucion­ais – por ser o legítimo detentor do chamado Poder Constituinte Derivado.

Este é um simples escorço histórico do que vem acontecendo no nosso país, com o crescente ativismo judicial do STF que, certamente, tem se tornado, até mesmo por pressão de determinados grupos sociais minoritários, uma espécie de “atalho legislativo”. A antítese para esta síntese é: o STF não pode dispor sobre o poder que sobre ele dispõe, qual seja, a super omnia (soberania) do povo, nos termos da Constituição Federal de 1988.

Pois bem. Não bastasse o fato de que a Suprema Corte nacional tem relativizado princípios elementares do Estado Democrático de Direito, agora, em decisão recente, o Conselho Nacional de Justiça, de igual forma, ultrapassa todos os limites da razoabilidade jurídica. Através de uma simples resolução administrativa promove, autoritariamente, alterações de ordem constitucional e infraconstitucional no sistema jurídico brasileiro, de tal modo que, além de trazer sérias implicações de ordem moral à sociedade brasileira, desrespeita, flagrantemente, a liberdade de consciência dos servidores e funcionários dos Cartórios de todo o país, vez que, nos termos do art. 2º da referida resolução “a recusa (...) implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis”.

De fato não há mais limites para o ativismo judicial e para a judicialização do poder constituinte originário no Brasil. A utilização da “técnica de interpretação conforme” utilizada pelo STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, assim como no RESP 1.183.378 do STJ[4], é autoritária, porque inova a ordem constitucional brasileira sem ser pela via correta e democrática, qual seja, o Poder Legislativo. Não havia fundamento constitucional ou legal para o que foi feito, assim como não há no caso agora da Resolução 175 do CNJ. Neste sentido, o grande constitucionalista português J. Canotilho diz “não se aceita a interpretação conforme a Constituição, quando, pelo processo de hermenêutica, se obtiver uma regra nova e distinta daquela objetivada pelo legislador, seja em seu sentido literal ou objetivo”.

Já no caso da união gay julgado em 2011, como não havia previsão constitucional para a institucionalização da mesma, o máximo que o STF po­deria ter feito naquela ocasião era usar a técnica jurídico-constitucional alemã denominada de “apelo ao legislador” (o “Appellentscheidungen”). Esta técnica consiste em o Tribunal exortar ao legítimo representante do Povo – o Poder Legislativo – que, tendo em vista as transformações fácticas da atual realidade histórica, este deve proceder a uma determinada alteração (infra)constitucional. O Tribunal, corretamente, abstém-se, assim, de proferir a declaração de (in)constitucionalidade (ou de descumprimento de preceito fundamental), apenas apelando ao Poder competente e legítimo a procedê-lo, se assim o entender. Isso é altamente democrático. Isso é o que deveria ter feito o STF no julgamento da ADPF 132 e ADI 4277.

Como bem lembrou à época o eminente jurista Lênio Streck, em nenhum país do mundo aprovou-se a união gay via judiciário, porque isso não é matéria de jurisdição e sim de legislação. Neste sentido, sábios foram os “Le sages” do “Conseil constitutionnel de France” que, em julgamento idêntico, em janeiro do mesmo ano de 2011, numa situação jurídica exatamente semelhante a nossa no que diz respeito à união homossexual, simplesmente se limitou a dizer: “selon la loi française, le mariage est l’union d’un homme et d’une femme”. E sentenciou: “Não cabe ao Conselho Constitucional substituir seu parecer pelo do legislador” (Décision n° 2010-92 QPC du 28 janvier 2011). A democracia francesa deu um grande exemplo. Tanto é assim que só agora em 2013, via Poder Legislativo, a união gay foi aprovada, ainda que a representatividade parlamentar não se verifique no plano da correspondência com a opinião da maioria do povo francês. Mas ao menos se respeitou o procedimento correto, a via legislativa, não o atalho ao legislativo, como no caso brasileiro.

A questão atual que envolve o CNJ é ainda mais grave, porque não só se desrespeitou a Constituição Federal e o Código Civil, instituindo-se o casamento civil gay sem a devida sustentação jurídica, como também, inovou-se em relação à decisão do próprio STF que foi, tão-somente, no sentido de equiparar a união gay às uniões estáveis heterossexuais, como nova modalidade de entidade familiar.

Neste sentido, no Acórdão e Voto do Relator, o Ministro Carlos Ayres Britto, está claro que, ao contrário da Constituição de 1967[5] que dava ênfase à constituição da instituição família via casamento civil, na CF de 1988 a ênfase – assim descrita no caput do art. 226 – é na família, podendo esta ser formada por várias modalidades, inclusive, a por pessoas do mesmo sexo, segundo a interpretação dada pelo STF no decisum de 2011. E exatamente neste sentido é que foi dada a interpretação conforme naquele julgamento. Ou seja: até mesmo no equivocado julgamento de 2011 ficou claro que ali se estava a equiparar a união estável gay com a união estável entre homem e mulher, como novos modelos de entidades familiares. Não se estava a assentir na possibilidade do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, já que, neste caso, existem óbices e requisitos legais a serem modificados pelo Poder Legislativo. Neste sentido, por exemplo, foram as divergências, quanto à fundamentação, dos Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski no aludido julgamento.

O Ministro Gilmar, neste diapasão, assentiu[6]:

“É importante retomar o argumento dos limites e possibilidades de utilização, neste caso, da técnica de interpretação conforme à Constituição. É que a nossa legitimação como Corte Constitucional advém do fato de nós aplicarmos a Constituição, e Constituição enquanto norma. E, para isso, não podemos dizer que nós lemos no texto constitucional o que quisermos, há de haver um consenso básico. Por isso que essa questão é bastante sensível, porque, se abrirmos o texto constitucional, no que diz respeito a essa matéria, não vamos ter dúvida ao que se refere o artigo 226, § 3º, multicitado: ‘§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Logo, a expressão literal não deixa dúvida alguma de que nós estamos a falar de ‘união estável entre homem e mulher’. A partir do próprio texto constitucional, portanto, não há dúvida em relação a isso. Por isso, a meu ver, a solução que aponte como fundamento suficiente para o caso apenas uma leitura interpretativa alargada do dispositivo mencionado seria extravagante à atuação desta Corte e em descompasso com a técnica de interpretação conforme à Constituição. É essencial que deixemos devidamente explicitados os fundamentos constitucionais que demonstram por que estamos fazendo esta leitura diante de um texto tão claro como este, em que se diz: a união estável é a união estável entre homem e mulher. E isso é relevante, diante do fato de alguns entenderem, aqui, menos do que um silêncio, um claro silêncio eloquente, no sentido de vedar o reconhecimento almejado. Portanto, parto da premissa de que aqui há outros fundamentos e direitos envolvidos, direitos de perfil fundamental associados ao desenvolvimento da personalidade, que justificam e justificariam a criação de um modelo de proteção jurídica para essas relações existentes, com base no princípio da igualdade, no princípio da liberdade, de autodesenvolvimento e no princípio da não discriminação por razão de opção sexual. Daí decorre, então, um dever de proteção. Mas é preciso mais uma vez dizer isso de forma muito clara, sob pena de cairmos num voluntarismo e numa interpretação ablativa, em que, quando nós quisermos, nós interpretamos o texto constitucional de uma ou outra maneira. Não se pode atribuir esse arbítrio à Corte, sob pena de nos deslegitimarmos.”.

E conclui a divergência:

“Por isso, neste momento, limito-me a reconhecer a existência da união entre pessoas do mesmo sexo, por fundamentos jurídicos próprios e distintos daqueles explicitados pelo Ministro Ayres Britto e, com suporte na teoria do pensamento do possível, determinar a aplicação de um modelo de proteção semelhante – no caso, o que trata da união estável –, naquilo que for cabível, nos termos da fundamentação aqui apresentada, sem me pronunciar sobre outros desdobramentos”.

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Mais ainda, o próprio Ministro Joaquim Barbosa, no seu Voto, destacou que, ao assentir no reconhecimento da união homossexual, não o fazia, com fulcro no art. 226, §3º da Constituição Federal, que fala textualmente da união estável heterossexual e da facilitação desta no casamento civil. Diz o Ministro, in verbis:

“Assim, nessa ordem de idéias, eu concordo com o que foi sustentado da tribuna pelo ilustre professor Luís Roberto Barroso, isto é, creio que o fundamento constitucional para o reconhecimento da união homoafetiva não está no art. 226, § 3º da Constituição, que claramente se destina a regulamentar as uniões entre homem e mulher não submetidas aos rigores formais do casamento civil.”[7]

Destarte, em nenhum momento, o STF se pronunciou no julgamento de 2011, de modo autorizativo, no tocante à admissão, sem a devida mudança legislativa, do sistema material civilista, do Casamento Civil gay. Neste sentido, é de se repudiar veementemente a inovação preconizada pela Resolução Nº 175 do Conselho Nacional de Justiça, proclamada pelo Ministro Joaquim Barbosa.


Sobre o decisum do RESP 1.183.378/RS do STJ (Superior Tribunal de Justiça):

Como fundamento para a edição da Res. 175/2013, o presidente do CNJ usa a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.183.378/RS de 24/10/2011.

O referido RESP foi interposto por duas mulheres que tiveram negado, administrativamente, no Cartório, seu pedido de habilitação de casamento civil. Após ingressarem judicialmente com este pedido, elas tiveram sentença denegatória na primeira instância, sentença esta confirmada pelo egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, motivo pelo qual foi interposto Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça.

No referido decisum do STJ, lavrado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, reforma-se a decisão do TJRS no sentido de admitir a possibilidade do casamento civil gay, inobstante a sistemática atual do Código Civil.

Mas, evidentemente, que esta decisão – completamente esdrúxula e sem amparo constitucional e infraconstitucional ao nosso sentir – se aplica tão-somente às partes envolvidas no processo, não tendo eficácia erga omnes e efeito vinculante, como é o caso das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Como não houve mutação legislativa, não existe, de plano, a institucionalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Há necessidade de processo judicial encaminhado ao Juízo Estadual da Vara da Família competente, para que seja autorizado – se o juiz local assim entender – o pedido de habilitação para o casamento civil.

Assim, também este fundamento usado pelo Conselho Nacional de Justiça para instituir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, inobstante os óbices legais, não se sustenta juridicamente.


Sobre o princípio constitucional da liberdade de consciência e seu corolário, o instituto da Objeção de Consciência.

 Trata-se a Objeção de Consciência da possibilidade jurídica de recusa, por um indivíduo, da prática de um ato que colida frontalmente com suas convicções morais e religiosas, por imperativo categórico de sua consciência. Seria, assim, uma possibilidade de escusa de cumprimento de um dever legal baseada em princípios ou costumes de natureza e ordem religiosa, moral, filosófica e, lato sensu, ideológica. Nas palavras do jusfilósofo John Rawls[8] seria o não-cumprimento de uma injunção legal ou de uma ordem administrativa por razões de justiça e equidade. Tal possibilidade jurídica está assegurada pela nossa Constituição Federal de 1988.

Mais que isso, historicamente, este é um imperativo ético – que depois se tornou jurídico – que sempre foi utilizado, na história das sociedades, por razões fundadas na dignidade da pessoa humana e na liberdade de consciência. Os exemplos, neste sentido, desde os tempos bíblicos, são muitos. Também no chamado mundo da cultura clássica (Grécia e Roma) encontramos laivos do uso deste tipo de objeção, assim como no período medieval – especialmente, com os reformadores protestantes[9] – e na passagem para os tempos modernos, onde este instituto encontrou assento político-constitucional.

Em termos de legislação internacional ou supranacional, na Declaração Universal dos Direito do Homem (DUDH) de 1948, no art. 18, nº 1, está consagrado que “toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, e, como consequência disso, “a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”. No bojo disso, temos como corolário deste dispositivo da DUDH, a objeção de consciência. Também, o nº 2, deste mesmo artigo da Declaração diz, in verbis: “ninguém pode ser objeto de pressões que atentem à sua liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha”.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 alude expressamente à objeção de consciência no art. 143, §1º, quando afirma: “Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar”. Da mesma forma, estabelece em dois outros dispositivos uma espécie de cláusula geral de objeção de consciência, nos seguintes termos:

Art. 5º:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de confissão religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Destarte, nenhum servidor ou funcionário cartorário está obrigado a cumprir a Resolução nº 175/2013 do CNJ não só pelo direito humano fundamental de objeção de consciência que tem, mas também pelo fato de que, como deixamos in claris anteriormente, trata-se de uma resolução inconstitucional e mesmo ilegal.


Sobre o poder regulamentar do CNJ:

O STF já reconheceu em diversas oportunidades o poder regulamentar do Conselho Nacional de Justiça. Neste sentido, por exemplo: no julgamento da ADI 3.367/2005; mais recentemente o MS 27.621, onde o Plenário do Supremo Tribunal Federal considerou válido o ato do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que obrigou todos os juízes do país, com função executiva, a se cadastrarem no sistema Bacen Jud; também o MS 28.611 – que ressaltou os limites da competência do CNJ –; entre outros julgados. Ou seja, não há que se discutir o poder regulamentar do CNJ, quando se trata de regulamentação interna corporis do Poder Judiciário nacional.

Ocorre que, segundo está claramente estabelecido no art. 103-B, §4º da Constituição Federal, que trata da competência do CNJ, não se pode ampliar de tal modo, como se fez na Resolução nº 175/2013 sub examine, o poder regulamentar deste órgão de funções tipicamente administrativa. Neste sentido, está evidente que a própria CF não concedeu ao CNJ competência para, no exercício do seu poder regulamentar, extrapolar a sua função de “controle interno” do Poder Judiciário, imiscuindo-se em regular situações jurídicas que são da competência exclusiva do Poder Legislativo. Da mesma maneira, não é facultado ao CNJ, no exercício do seu poder regulamentar, imiscuir-se, mitigando, direitos individuais de natureza constitucional-fundamental.

Neste sentido, lecionam os publicistas Lenio Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clemerson Merlin Clève, em clássico e insuperável artigo sobre “Os limites constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)”[10]:

“No Estado Democrático de Direito, é inconcebível permitir-se a um órgão administrativo expedir atos (resoluções, decretos, portarias, etc) com força de lei, cujos reflexos possam avançar sobre direitos fundamentais, circunstância que faz com que tais atos sejam ao mesmo tempo legislativos e executivos, isto é, como bem lembra Canotilho, a um só tempo ‘leis e execução de leis’.

(...)

O fato de a EC 45 estabelecer que os Conselhos podem editar atos regulamentares não pode significar que estes tenham carta branca para tais regulamentações. Os Conselhos enfrentam, pois, duas limitações: uma, stricto sensu, pela qual não podem expedir regulamentos com caráter geral e abstrato, em face da reserva de lei; outra, lato sensu, que diz respeito a impossibilidade de ingerência nos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Presente, aqui, a cláusula de proibição de restrição a direitos e garantias fundamentais, que se sustenta na reserva de lei, também garantia constitucional. Em outras palavras, não se concebe – e é nesse sentido a lição do direito alemão – regulamentos de substituição de leis (gesetzvertretende Rechtsverordnungen) e nem regulamentos de alteração das leis (gesetzändernde Rechtsverordnungen). É neste sentido que se fala, com razão, de uma evolução do princípio da reserva legal para o de reserva parlamentar.

(...)

Portanto, as resoluções que podem ser expedidas pelos aludidos Conselhos não podem criar direitos e obrigações e tampouco imiscuir-se (especialmente no que tange à restrições) na esfera dos direitos e garantias individuais ou coletivas. O poder “regulamentador” dos Conselhos esbarra, assim, na impossibilidade de inovar. (...)Qualquer resolução que signifique inovação será, pois, inconstitucional”.

Infelizmente, ao contrario de tudo isso, o que a Resolução n.º 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça fez foi exatamente o que prelecionam os juristas retromencionados. Em especial, apresenta-se, inconstitucionalmente, como um regulamento de substituição de leis (gesetzvertretende Rechtsverordnungen) ou mesmo como um regulamento de alteração de leis (gesetzändernde Rechtsverordnungen), invadindo, assim, sem temor ou cerimônia, a esfera de competência do Poder Legislativo. Mais ainda, avançando sobre o direito fundamental de objeção de consciência dos servidores cartorários de todo o país.

Por todas essas razões fácticas e jurídicas anteriormente explicitadas, entendemos, salvo melhor juízo, que não merece, de fato e de direito, prosperar a Resolução nº 175/2013 do CNJ.


Notas

[1] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. SAFE: Porto Alegre, 1993, p. 93.

[2] SANTANA, Uziel. “STF versus Nação Brasileira: a quem pertence o Poder Constituinte?”. In: Um Cristão do Direito num País torto. Paraíba: Editora da VINACC, 2012, p. 151-178.

[3] ADI n° 4277 e ADPF nº 132, Relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, julgada em maio de 2011, instituindo a união estável homossexual.

[4] Que, num caso específico, suprimiu as exigências do Código Civil para aceitar o “casamento” civil gay.

[5] O Ministro Ricardo Lewandovski em seu Voto bem acentuou que na: “i) Constituição de 1937: “Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. ii) Constituição de 1946: “Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vinculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado. iii) Constituição de 1967: Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. iv) Emenda Constitucional 1/1969: Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos” (grifos meus). A vigente Carta Republicana, todavia, não estabelece essa vinculação com o casamento para definir o conceito de família tal como o faziam as anteriores” [Conf.: STF. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. DJe n.º 198. Divulgação 13/10/2011. Publicação 14/10/2011. Ementário nº 2607-3, p.780-781 (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635)].

[6] STF. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. DJe n.º 198. Divulgação 13/10/2011. Publicação 14/10/2011. Ementário nº 2607-3, p.780-781 (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635)

[7] STF. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. DJe n.º 198. Divulgação 13/10/2011. Publicação 14/10/2011. Ementário nº 2607-3, p.780-781 (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635)

[8] RAWLS, John. A Theory of Justice. Boston: The Belknap Press of Harvard University Press, 1971.

[9] Martinho Lutero, neste sentido, quando resistiu às inquirições e determinações da autoridade eclesiástica – na con­hecida Dieta de Worms (Wormser Reichstag), de 28/01 a 25/05 de 1521 – que lhe pressionava a se retratar do que havia escrito sobre a Igreja Católica, disse a famosa frase: “A não ser que seja persuadido por argumentos suficientes, tirados da Escritura e da razão, não posso e não desejo retratar-me; porque fazer qualquer coisa contra a consciência é arriscado e perigoso” (LUTERO, Martinho apud SCHAFF, Philip. A Liberdade Religiosa. Disponível em: <http://www. baptistlink.com/solascriptura/IgrejasNosSeculos/Schaff28ALiberdadeReligiosa.htm>. Acesso em 20 nov. 2011. p. 3.)

[10] STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang; CLÈVE, Clemerson Merlin.  Ministério Público do Rio Grande do Sul. Disponível em: www.mp.rs.gov.br/areas/atuacaomp/anexos_noticias/cnjmp.doc‎ . Acesso em: 04/06/2013.

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Sobre o autor
Uziel Santana

Professor efetivo da Universidade Federal de Sergipe. Professor visitante da Facultad de Derecho da Universidad de Buenos Aires. Mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Histoire du Droit pela EHESS-Paris.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Uziel. O STF, o CNJ e a Resolução nº 175/2013 sobre o casamento civil homossexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3632, 11 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24663. Acesso em: 28 dez. 2024.

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