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Juízes não são funcionários públicos

01/04/1999 às 00:00

Resumo:


  • Preservar a independência dos magistrados brasileiros é fundamental para manter a integridade do Poder Judiciário e a separação dos poderes.

  • Garantias da Magistratura visam preservar a isenção na aplicação da Justiça e do Direito, não devendo ser confundidas com privilégios individuais.

  • Propostas que acabam com a irredutibilidade dos vencimentos de magistrados vitalícios em inatividade ferem a independência do Judiciário e a separação dos poderes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

No momento em que o Congresso Nacional examina propostas de emenda à Constituição que alteram a situação dos juízes ativos e inativos, é imperioso refletir da importância de preservar garantias de independência dos magistrados brasileiros, sob pena, inclusive, de desfigurar-se todo um Poder do Estado.

É necessário, pois, compreensão da sociedade ante o risco que corre o Judiciário de desfigurar-se como Poder, num atentado oblíquo à Constituição de 1988 e a seus princípios pétreos, como o da separação de poderes.

Se é certo que também os agentes políticos devem servir ao público, a expressão "servidor público" passou a ter conotação restrita em decorrência da CF/88 (antes, cabe recordar, eram funcionários públicos, cujo termo foi tão degenerado que a Assembléia Constituinte simplesmente preferiu alterá-lo) e não engloba, de modo algum, seja os agentes políticos do Poder Legislativo (senadores, deputados e vereadores), seja do Poder Executivo (presidente da República, ministros de Estado, governadores, secretários de Estado, prefeitos e secretários Municipais), seja do Poder Judiciário (juízes em todos os graus), seja, ainda, dos Tribunais de Contas e dos Ministérios Públicos, que envolvem a apologia do Quarto Poder esquecido por Montesquieu.

Não se podem confundir garantias da Magistratura (e não propriamente do magistrado) com privilégios do indivíduo que veste a toga, quando tais garantias são dirigidas a preservar a isenção no ditar a Justiça e o Direito. Garantias estas, inclusive, que devem ser preservadas além da atividade do Juiz, sob pena de termos magistrados que ao final da carreira passem a buscar os meios para que suas condições de vida e de sua família, muitas vezes privada da sua presença diuturna, e se descuide seja com a tutela que caiba proferir, seja mesmo com a isenção que deve possuir.

O resultado pode ser, no futuro, a destruição do Poder Judiciário nacional, que apesar de todas as dificuldades, da falta de magistrados e do acúmulo de demandas, muito serviço para poucas condições, continua a envergar a credibilidade junto à sociedade da isenção de seus integrantes; talvez sucumba a própria tripartição do Poder do Estado, passando o Judiciário a ser mera autoridade judiciária submetida aos desvaneios e vaidades dos detentores do Poder temporário, quando exatamente por isso somos detentores da vitaliciedade - vejam o Judiciário francês, incapaz de responder, como o Judiciário brasileiro, modelado em tal aspecto à semelhança do modelo anglo-saxão, aos desvaneios do Poder Público, notadamente da Administração. No futuro, sem garantias de independência, passando os magistrados à condição de “servidores públicos”, pouco poderão fazer para resguardar garantias dos indivíduos, se as próprias já não as terão.

E falando em vitaliciedade, cabe enaltecer exatamente esta condição, que não é detida seja pelos agentes políticos de caráter temporário dos demais Poderes do Estado, seja dos servidores públicos (tão chamados à semelhança), eis que ser vitalício pressupõe que mesmo a inatividade conserva o sujeito como Juiz, e como tal detentor de todas as garantias deferidas aos ativos que não sejam incompatíveis com o afastamento da função judicante por jubilamento, mas que assim se tornam plenamente compatíveis com a condição de magistrado, que perdura. Ser o magistrado vitalício o coloca na situação de não curvar-se de tempos em tempos a vontades de quem quer que seja para manter-se na atividade judicante; ser livre para julgar conforme apenas sua consciência e a interpretação justa do Direito positivado na Constituição e nas leis com ela conformes.

Por isso, mesmo que se passe a considerar os magistrados equiparados aos servidores públicos, acredito que a argüição de afronta ao artigo 95, III, da CF/88, por combinação com o inciso I do mesmo artigo, surtiria efeito, porque seria triste imaginar que o Supremo Tribunal Federal pretendesse romper a tradição secular republicana e acabasse por destruir o pilar mais firme da Democracia: o Judiciário isento a quaisquer pressões, sejam políticas, sejam econômicas, de quem quer que seja. Mas então, o desgaste será tanto que ficará difícil a qualquer magistrado explicar ao cidadão comum que não era marajá nem gozava de privilégios, mas de garantias destinadas à própria sociedade.

Por isso, é hora de todos (mesmo alguns juízes) conscientizarem-se de que são os magistrados agentes políticos do Estado, com a missão de julgar e declinar interpretações da Lei sobre o Direito aplicável, no tentar enunciar preceitos justos, a cada causa, ainda quando envolva poderosos e fracos, ou o próprio Poder Público. Por isso são os magistrados vitalícios, e por isso têm garantias que não se estendem a outros agentes políticos nem a servidores públicos, que com os juízes não se confundem, tanto assim que os servidores públicos se curvam a ordens, e os demais políticos se curvam às decisões judiciárias, enquanto os magistrados se curvam apenas a suas consciências e aos ditames do Direito estabelecido conforme a Constituição, eis que só a eles deferiu a Carta Magna a atribuição maior de dizer o Direito e a Justiça, só a eles deferiu jurisdição.

Vejam, pois, que as propostas de emendas constitucionais, nos dispositivos que acabam com a irredutibilidade dos vencimentos quando passa o magistrado vitalício à inatividade fere, sobretudo, a separação dos poderes, porque submete magistrados à condição de meros servidores públicos obrigados a obedecer comandos de outros, ferindo, assim, toda a independência com que deve atuar o Judiciário e seus órgãos.

Também por tudo isso repugna a idéia de perseguirem alguns magistrados regalias, reajustes ou concessões quaisquer dadas a servidores públicos em geral, algo que não são — se os vencimentos já não expressam a função especial que desempenham, não é com reivindicações junto aos chefes dos Executivos que se deve acorrer, porque a estes nenhum magistrado se deve curvar.

A magistratura enseja Estatuto próprio (artigo 93 da Constituição) e não sujeito a normas subsidiárias extraídas de estatutos do funcionalismo, quaisquer que sejam.

Não são os juízes servidores públicos, ainda que devam bem servir ao público na função de julgar. São os magistrados agentes políticos do Estado, órgãos do Poder Judiciário, pilares da Democracia, garantias do indivíduo frente ao Poder Público e guardiães da própria legalidade e da harmonia entre os Poderes do Estado.

Diminuir tal condição é menosprezar a história, perigosamente submeter juízes, hoje livres no agir em defesa da Justiça e do Direito, às vontades de algum príncipe de plantão.

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Sobre o autor
Alexandre Nery de Oliveira

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (DF/TO). Pós-Graduado em Teoria da Constituição. Professor de Processo do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Alexandre Nery. Juízes não são funcionários públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 30, 1 abr. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/250. Acesso em: 23 dez. 2024.

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