O objeto do presente trabalho é discorrer sucintamente sobre como a interpretação constitucional tópica pode e deve ser empregada com correção quando o objeto em análise são direitos e garantias fundamentais.
Antes de mais nada, convém afirmar que não se tem a pretensão de afirmar que a tópica é uma técnica interpretativa perfeita e acabada e que para direitos e garantias fundamentais ela é o único método adequado a ser adotado quando do exercício de exegese constitucional. Como se verá ao longo do presente, o método é sujeito a críticas e como se está falando de interpretação constitucional, admitindo-se o pluralismo de intérpretes(i) e a pluralidade de sentidos que pode ter a Constituição(ii), não se pretende refutar a possibilidade da aplicação de outros métodos de interpretação constitucional ao mesmo tema.
O método tópico foi desenvolvido na Alemanha em por Theodor Viehweg e Esser. O primeiro trabalho acerca do tema, do primeiro jurista citado, intitulado "Topik und Rechtsphilosophie", foi publicado por volta de 1954(iii).
Trata-se de um método cujas premissas para sua aplicação são as seguintes: o caráter prático da interpretação constitucional (já que o objetivo de qualquer interpretação é deslindar as situações concretas postas); o caráter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei inconstitucional; preferência pela discussão do problema em virtude da abertura de normas constitucionais que coíbem a dedução subsuntiva a partir delas mesmo. (iv)
A tópica é, assim, uma técnica aberta de pensar por problemas, podendo servir de recurso interpretativo das normas jurídicas, estabelecendo uma forma de raciocínio, que procede por questionamentos sucessivos, em torno da relação pergunta resposta. Assim, quando os meios convencionais para a resolução das questões concretas da vida forem insuficientes, v.g., nos casos das lacunas, o Juiz diante da situação sub judice, poderá valer-se dos topoi, isto é de pontos de vista que facilitam e orientam a sua argumentação, à luz daquilo que está inserido nos autos do processo(v)
Os tópicos ou topoi são pontos de vista empregáveis em diversas instâncias, com validade geral, lançados na ponderação de pós e contras das opiniões e podem inferir o que é verdadeiro. (vi)
Não é a interpretação tópica limitada aos empregos dos a priori vinculados a uma interpretação por analogia, que em muito, se assemelha ao método sistemático, sendo esta a lição do constitucionalista espanhol Peréz Luño sobre a questão:
Respecto a los principios de la interpretación constitucional debe advertirse que no reducem a los modo o topoi clásicos de la argumentación analógica, ad absurdum, a contrario, a pari, a fortiori, a maiore ad minus, a minore as maius..., sino que se presentan como criterios relevantes para orientar y dirigir el proceso de selección de los punto de vista que permitem la solución del problema. Tales princípios poseen una significación autónoma para la interpretación constitucional y, entre ellos, se alude a los de: unidad, concordância práctica, efectividad, funcionalidad, fuerza integradora y fuerza normativa de la Constitución; así como el principio in dubio pro libertate en ordem a la interpretación de los derechos fundamentales. (vii)
Pelo exposto, já se adianta a necessidade de se notar a valia do princípio in dubio pro libertate, no que tange à interpretação de direitos fundamentais, sendo o referido princípio um verdadeiro topoi.
O emprego deste método na defesa de direitos e garantias fundamentais pode ser vistos em alguns casos concretos no direito brasileiro. Cita-se, à guisa de exemplificação, que o emprego do topoi "in dubio pro libertate", com correção, ao se tratar do problema do cabimento ou não da prisão civil do devedor inadimplente do contrato em alienação fiduciária em garantia(viii).
A exegese adequada do inciso LXVII, do art. 5º da Constituição Federal de 1988, deve levar, face à latente situação de dúvida, que gera inclusive impasse entre as cortes extraordinárias pátrias, à não incidência da referida medida restritiva do direito fundamental à liberdade(ix).
Por tal método, portanto, objetiva-se adaptar a norma constitucional ao caso concreto, levando a J. J. Gomes Canotilho, referindo-se aos topoi, dizer que os aplicadores do direito, de um modo geral, se servem destes para dar o desfecho à situação concreta que é posta. (x) O fim da interpretação acaba por desprestigiar o sistema constitucional em detrimento de primar pelo amplo processo de argumentação, fruto, obviamente, de sua natureza fragmentária. Diferentemente, não pensa o professor Inocêncio Mártires Coelho: "o caráter prático da interpretação constitucional, assim como a estrutura normativo material aberta, fragmentária ou indeterminada da Constituição, impõem se dê preferência à discussão dos problemas ao invés de se privilegiar o sistema, o que afinal, transformaria a interpretação constitucional num processo aberto de argumentação" (xi)
Por esta deficiência quanto à visão de sistema e pelo excessivo casuísmo, este método é refutado pela doutrina, sendo proveitosa a afirmação de Canotilho: "A concretização constitucional a partir dos topoi merece sérias reticências. Além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas. A interpretação é uma atividade normativamente vinculada, constituindo a constitutio scripta um limite ineliminável que não admite o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade do problema". (xii)
Ilação em igual sentido pode ser feita do comentário de Eros Roberto Grau(xiii) "Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer norma da Constituição impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dela da norma até a Constituição. Uma norma jurídica isolada, destacada, desprendida do sistema jurídico, não expressa significado normativo nenhum". Que dizer então de se ao invés de uma norma isolada, houver um problema concreto? É possível deixar a interpretação Constituição ao belprazer do operador do direito, em toda e qualquer situação de se moldar à situação de fato?
Muito embora este método interpretativo possua esta desvantagem, ele é inequivocamente importante para a análise de direitos e garantias fundamentais e sua interpretação. Ao se vislumbrar um interpretação específica para estes direitos, estar-se-á indubitavelmente se aproximando da interpretação tópica, vez que se trata de um problema particularizado que, em tese, poderia ser resolvido particularmente, muito embora tal procedimento venha a colidir com outros princípios aplicados à interpretação constitucional, como o da unidade e o da sistematicidade.
Há de se ter em mente que os direitos e garantias fundamentais correspondem a uma categoria jurídica especialíssima, particular, pormenorizada. Sua especificidade, seu caráter dirigente(xiv) e a sua peculiaridade de implementação e proteção legitimam o emprego desta técnica que acabaria por não interpretar a Constituição como um todo, mas somente em alguns aspectos, por meio de alguns dispositivos isoladamente, como no já mencionado caso inadimplemento decorrente da alienação fiduciária em garantia e a eventual sujeição à prisão civil, em que mister se faz interpretar detidamente o inciso LXVII, do artigo 5º da atual Constituição.
Como categoria jurídica, os direitos e garantias fundamentais estão acima das regras constitucionais restantes, constituindo-se cláusulas pétreas, havendo quem sustente até mesmo sua supraconstitucionalidade(xv). Por esta razão, considera-se que a aplicação da interpretação tópica em relação aos referidos direitos, sobretudo com o emprego do topoi "in dubio pro libertate", é adequada sendo, por via reflexa, um meio de assegurar a própria organicidade a Constituição, na medida em o método preserva um a priori da Constituição, ou com outra leitura, seus basilares.
Explicitando a afirmação anterior, o que se pretende dizer é que a própria Constituição surge de premissas básicas. Uma delas corresponde aos direitos e garantias fundamentais. Sendo assim, a preservação destes direitos é uma condição prévia para se possuir uma Constituição sistêmica. Se para a manutenção destes direitos for interessante o emprego da interpretação tópica, não se vislumbra problema algum nisto, a despeito do que se diga em contrário.
Em suma, em face da pluralidade de interpretações admissíveis, caberá ao intérprete fazer a escolha adequada, acreditando-se que a primazia dos direitos e garantias fundamentais justifica eventual restrição aos princípios da unidade e da sistematicidade que deve a interpretação constitucional respeitar. Entretanto, esta limitação não é vislumbrada, uma vez que, de modo reflexo, estes princípios acabam, paradoxalmente, sendo preservados, na medida em que está se dando força aos valores de maior valia consagrados na Constituição Federal.
NOTAS
- Desde então, adota-se a visão de Peter Häberle em relação à abertura de do processo de interpretação a todos inseridos na sociedade. Veja-se, a propósito, do referido autor, "Hermenêutica Constitucional A sociedade aberta aos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Trad. bras.: Gilmar Ferreira Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1997. Do original: Die offene gesellschaft der verfassungsinterpreten ein beitrag zur pluralistichen und prozessualen, verfassungsinterpretation.
- O Brasil já possuiu uma única interpretação constitucional admissível obtida quando do pronunciamento da Corte constitucional pátria em representações interpretativas (EC n.º 7/77), vigentes sobre a égide da Constituição anterior. Atualmente, nem mesmo nos pronunciamentos em sede concentrada de constitucionalidade dão uma interpretação constitucional unívoca, já que os objetivos das referidas ações é tão somente inferir se uma determinada lei ou ato normativo é, por meio de interpretação constitucional compatível ou não com a Constituição, sem que isto implique uma única e unívoca leitura do texto constitucional.
- O texto está disponível em português, com o seguinte título: Tópica e Jurisprudência, trad. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília : Departamento de Imprensa Nacional, 1979.
- CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional 6.ed. rev. Coimbra : Almedina, 1993. p. 213.
- BULOS, Uadi Lammêgo, Manual de Interpretação Constitucional São Paulo : Saraiva, 1997, op. cit. p. 28. É o que se depreende também da asserção de Márcia Carvalho in Hermenêutica Constitucional Métodos e princípios específicos de interpretação. Florianópolis. Ed. Obra Jurídica Ltda., 1997 p. 63: "A partir daí discute-se o problema, analisando cada uma das soluções imagináveis e fundamentações para o caso concreto. A conclusão se forma pela avaliação das fundamentações dos prós e contras das distintas soluções, após o que se deve escolher a interpretação mais adequada para o problema. Todos os meios interpretativos podem ser utilizados para a formação dos pontos de vista"
- Neste sentido, veja-se, por todos LARENZ, Karl Metodologia da Ciência do Direito, ver. portuguesa, 3.ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 202.
- LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constituicion, 5ed. Madrid : Editorial Tecnos S/A, 1995, p. 262.
- Sobre a questão do cabimento ou não da prisão civil decorrente do inadimplemento do contrato de alienação fiduciária em garantia, e a correta interpretação constitucional aplicável à situação, confira-se o nosso trabalho, intitulado "Prisão Civil na alienação fiduciária em garantia uma visão constitucional" Curitiba : Juruá 2000.
- O Supremo Tribunal Federal, a nosso ver, de modo inadequado, firmou jurisprudência a partir do HC 72131 RJ no sentido de ser cabível a incidência da prisão civil do devedor inadimplente na alienação fiduciária que não restituir o bem, ainda que tal posicionamento não seja unânime entre os ministros daquela Corte . O Superior Tribunal de Justiça, adotando os fundamentos trazidos há muito pelo, já aposentado, Athos Gusmão Carneiro pacificou o entendimento no sentido de não ser cabível a referida prisão civil.
- CANOTILHO, op. cit. p. 214.
- COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor. 1997 pp. 89- 90.
- CANOTILHO, op. cit. p. 214.
- GRAU, Eros Roberto A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica) 3.ed. São Paulo : Malheiros, 1997, p.176-7.
- Sobre o caráter dirigente dos direitos e garantias fundamentais, veja-se, CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimpressão Coimbra : Coimbra Editora, Limitada, 1994.
- Defendendo esta tese, veja-se BACHOF Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais ? Coimbra : Almedina, 1994.