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Da (im)possibilidde de antecipação de tutela nos pleitos possessórios

01/11/2002 às 00:00
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Sumário: 1- Introdução. 2- Algumas considerações sobre a antecipação de tutela. 3- Liminares possessórias. 4- A antecipação de tutela do artigo 273 e as ações possessórias. 5- Conclusões


1- Introdução

Os seres humanos são por natureza arredios à mudança, ao desconhecido. Temos intimamente arraigada a necessidade de segurança e ela se manifesta em todos os campos da nossa vida trazendo a sua ausência inquietação e expectativa que nos tolhem a tranqüilidade.

No direito não é diferente. As mudanças demoram a instalar-se, vindo a concretizar-se muitas vezes décadas após o contexto axiológico que as impulsionou. O processo, por exemplo só colheu os frutos do racionalismo do século XIX quase um século após a implantação desta visão filosófica.

Da mesma forma, a passagem do processo de matriz privatista para um processo de cunho publicístico, em consonância ao novo modelo sócio –jurídico implementado pelo constitucionalismo social só agora, oito décadas após Weimar começa a se descortinar efetivamente.

As novas demandas jurisdicionais trouxeram como corolário o abandono de certos dogmas, erigidos à luz da tradição romano-canônica, que, fusionando a actio e a obligatio romanas ao racionalismo iluminista, fulcrado na busca de verdades universais e emulsionado pela atmosfera do capitalismo então em implantação, propiciaram a construção de uma concepção de jurisdição eminentemente declaratória e infensa a atividades executivas sem a necessária precedência da cognição exauriente e plenária.

Este dogmas trouxeram como conseqüência o fato de que o pensamento de origem romanística raciocine sempre com o modelo do processo de conhecimento e de tutela jurisdicional voltada, sobretudo, a "dizer o direito". O juiz do Estado liberal e do pensamento cientificista, cujo modelo foi enxertado das ciências exatas, deve ser inerte, repudiando a atividade executiva fundada em sumaria cognitio.

Mas obviamente este modelo, cujo cerne repousa em uma visão privatista do processo, tendo por base a análise da ciência processual com a ação ao centro do sistema, não poderia lograr êxito na sociedade de massas da fase pós-industrial. O dano marginal representado pelo tempo de duração do processo, outrora tolerável, passou a ser uma questão capital para o processo moderno, mormente se atentarmos que dogma cognição exauriente-execução atua sempre em prol do réu, já que o estado de litispendência é voltado a cristalizar o status quo fático-jurídico.

Como é o autor que busca a modificação no mundo empírico, é ele sempre prejudicado.

Na onda de amplo revisionismo jurídico que ora vivenciamos, embalada pela consciência de uma verdadeira crise do pensamento ortodoxo que por décadas nos serviu de base ao pensarmos o Direito, vemos hoje uma série de reformas em nosso processo civil.

Um dos mais importantes passos foi dado com a possibilidade de antecipação de tutela, que a rigor, como já apontou a doutrina, é antecipação de alguns dos efeitos da tutela, pelo que teríamos que nos referir a ela como antecipação dos efeitos da tutela ou antecipação parcial da tutela.

A nova dicção do artigo 273 do CPC contempla a possibilidade de ruptura do dogma da cognição exauriente, permitindo que o tempo seja distribuído de acordo com as pretensões do autor e do réu vislumbradas quanto a sua viabilidade, adaptando-se a feição do instrumento à substância.

Como instituto novo, que rompe com uma tradição milenar, a antecipação de tutela trouxe algumas perplexidades que vão sendo paulatinamente absorvidas pela doutrina e pela jurisprudência.

Objetivamos abordar um dos vários pontos passíveis de dúvida na aplicação do já não tão novo instituto, qual seja, a possibilidade de aplicação da antecipação de tutela nos pleitos possessórios. O questionamento encontra arrimo na medida em que já existe uma liminar antecipatória no bojo dos processo possessórios.

A pergunta que pode surgir é a seguinte: havendo previsão de liminar específica na ação possessória estaria afastada a aplicação do expediente genérico da antecipação ex artigo 273? É o que tentaremos descobrir a seguir.


2- Algumas considerações sobre a antecipação de tutela

Para que possamos empreender uma análise de um instituto que rompe com uma sistemática solidamente implantada devemos nos despir da visão desta sistemática a que se vai subverter. Não podemos vislumbrar a antecipação como até agora se tem feito com os institutos processuais, ou seja, como algo eminentemente voltado ao processo de conhecimento.

A antecipação de tutela, como mecanismo de distribuição do tempo no processo, merece ampliação na sua aplicação para que transmita o avanço que representa para todos os quadrantes da tutela jurisdicional.

Devemos ver a tutela jurisdicional pela ótica publicista, significa dizer, como o exercício de uma função estatal, voltada não só a dirimir conflitos particulares, mas a atuar a lei a casos concretos, nos quais o Estado deverá intervir necessariamente como agente imparcial e poderá atuar como parte. Desta forma, a jurisdição é uma atividade voltada a terceiros ( partes), e que pode ter limites tênues coma a atividade administrativa.

A noção de jurisdição embasada na lide não se amolda perfeitamente à atividade executiva, e é fruto da doutrina peninsular. Ora, o processo continental europeu trabalha com dualidade de jurisdições, e por isso a sua feição é a de um instrumento voltado a dirimir lides entre particulares, já que os conflitos de ordem pública ficam afetos á jurisdição administrativa.

Somente rompendo com esta visão, poderemos descortinar as inúmeras possibilidades de aplicação da antecipação, enquanto técnica de sumarização. Vista sob este ângulo, a antecipação tem largo espectro de aplicação, podendo se vislumbrar a sua atuação também frente ao réu e igualmente fora da tutela cognitiva.

No presente momento, todavia, imperioso não olvidar que a antecipação de tutela é um mecanismo eminentemente voltado à proteção do autor frente ao réu. A manutenção dos status quo obra sempre em favor do réu, e passa a ser um importante mecanismo de dissuasão sobre o autor, pois não poucas vezes perspectiva da via crucis do processo funciona como motivo de desistência do direito ou abandono da ação.

A antecipação também se fulcra em juízo de sumaria cognitio, e, por isso, deve o magistrado atuar com redobradas cautelas, impedindo que as antecipações, prodigalizadas aos extremo, se transformem em larga porta para a fraude. Este perigo tanto mais se faz presente quando a liminar apresenta caráter exauriente e ou irreversível.

Destarte, a consolidação de uma situação fática poderá ter como conseqüência a perda do objeto da lide, e como o juiz deve tomar em consideração fato superveniente ( artigo 462 do CPC), e o interesse processual deve estar presente também no momento da sentença, e levando em conta, ainda, que a liminar teria sido justificada pelo réu, é possível que a cognição sumária do provimento liminar condense, na verdade, verdadeiro julgamento de mérito.

Estas considerações preliminares são importantes pois como se verá adiante, a resolução da questão posta perpassa exatamente por aquilatarmos a bem de quem deve atuar a proteção liminar nas ações possessórias.


3- Liminares possessórias

A previsão de liminar nos pleitos possessórios encontra supedaneo nos artigos 924, 926 e 928, todos do CPC. Cuida-se de uma espécie de antecipação de tutela, de natureza objetiva, visto bastar a comprovação de ser a turbação ou o esbulho de " força nova", ou seja intentado a menos de ano e dia.

É interessante observar que a liminar possessória era a única hipótese de antecipação de tutela codificada quanto a processo de natureza cognitiva, caráter que ostentam as ações possessórias, inobstante a topologia legal e a forte carga executiva das sentenças a que dão margem.

Também chama a atenção o fato de tratar-se de uma liminar de feição puramente objetiva, contrastando com a supremacia do ordo judiciorum privatorum do processo cognitivo. O caráter objetivo da liminar representa uma séria dificuldade para a adaptação do instrumento ao substrato, pois as mais diversas conformações fáticas estariam ao abrigo da proteção liminar, independentemente de suas peculiaridades.

Tal fato é um óbice a aplicação instrumental do processo, marcada pela busca incessante de plasticidade, e que repele o engessamento da tutela à critérios inflexíveis. A lição a ser tirada de tal circunstância é o valor da proteção possessória. Este vigor na tutela ao possuidor é fruto, certamente, dos reflexos da visão privatista do direito, pois a posse é base do capitalismo, e o processo vigente foi concebido para este modelo sócio-econômico.

Não se irá proceder um juízo acerca deste fato, ou seja, desta proteção hipertrofiada ter a sua base a visão de um determinado modelo econômico, pois para nossa análise basta a constatação: A proteção possessória avulta em importância dentro do conjunto de valores de nossa sociedade.


4- A antecipação de tutela do artigo 273 e as ações possessórias

O movel de nossa abordagem reside no ato de termos entrado em contato com ação judicial na qual foi lançado parecer do órgão do Ministério Público recomendando o indeferimento de liminar antecipatória ao argumento de sua incompatibilidade com o processo possessório, no bojo do qual já haveria a previsão de liminar específica que afastaria a possibilidade de invocação do artigo 273. Cuidava-se de ação de força velha.

Com a devida venia, não nos parece acertada esta exegese, e para tanto concluir basta invocar uma análise histórica dos institutos. De fato, como visto, a liminar possessória representou uma exceção dentro de um sistema que repelia a possibilidade de atividade executiva sem prévia observância de uma cognição exaurirente e plenária ( sentido vertical e horizontal), atestando a importância da posse para o ordenamento jurídico.

Ao conceber-se o CPC de 1973, a liminar possessória era um dos poucos casos de antecipação de tutela possíveis, havendo de lembrar-se, ainda, da liminar do artigo 804, que antecipa a tutela cautelar, e a liminar do mandado de segurança, prevista em legislação não codificada. As demais ações submetiam-se ao dogma cognição- execução.

O sistema construiu uma válvula de escape a partir das cautelares inominadas, que anomalamente passaram a veicular a tutela liminar das ações cognitivas. Mas a feição do processo cautelar, que por buscar, segundo a doutrina majoritária, simplesmente o resguardo da eficácia de outra demanda, contenta-se coma mera verossimilhança da alegação, tornou a cautelar inominada um perigoso instrumento de esvaziamento do processo ordinário, podendo comprometer o devido processo leal e a ampla defesa.

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A partir desta premissa, surge a antecipação de tutela, submetida a requisitos mais rigorosos, e de cunha não exclusivamente objetivo, de modo que, a o contrário do processo possessório, a liminar antecipatória do artigo 273 do CPC permite moldar o processo ao caso concreto de uma forma mais efetiva.

Ao partir do pressuposto de que a previsão específica de uma liminar antecipatória implicaria afastamento da liminar genérica do artigo 273 do CPC, estamos, a nosso juízo, descurando da finalidade de liminar possessória, que era exatamente deferir uma proteção excepcional e mais intensa à posse.

Esta exegese tem como conseqüência afastar a possibilidade de o autor obter proteção liminar da posse fora do prazo de ano e dia, o que viria a prestigiar o réu turbador ou esbulhador. Ora, o sistema no qual foi concebida a liminar possessória nos demonstra que este instituto tinha por escopo ampliar o direito do possuidor esbulhado ou turbado. Se a previsão da liminar possessória impedir a invocação do artigo 273 do CPC, estaremos produzindo um resultado contrário ao valor da posse em nosso ordenamento, fazendo com que a proteção possessória fique aquém daquela que é hoje outorgada ordinariamente a qualquer autor.

Ademais, note-se que ação possessória de força velha sujeita-se ao rito ordinário, dentro do qual está prevista a antecipação do artigo 273. Logo, a aplicação da disciplina do processo ordinário ( rectius: rito ordinário) não pode ser feita parcialmente, a míngua de dispositivo que assim disponha.

A antecipação de tutela deve somar-se aos mecanismo de proteção da posse, que salvo melhor juízo, ainda é relação do mais subido interesse social. Não há absolutamente incompatibilidade entre a previsão das liminares possessórias específicas e a antecipação de tutela, até porque os seus requisitos são diversos e suas finalidades também [1], embora se verifique uma nota comum de busca de uma fuga das graves conseqüência da ordinarização da tutela e do dano marginal do tempo.


5- Conclusões

A nota essencial do processo moderno é a celeridade, em contraposição à certeza jurídica. São valores cuja dimensão é dada pelo legislador segundo as conveniências do momento vivenciado pela sociedade.

Hoje, a celeridade ganha espaço após séculos de preponderância da certeza jurídica, pois a sociedade moderna não vê o tempo da mesma forma que a duzentos anos atrás. Em uma sociedade de massas, marcada pela globalização cultural e econômica, a celeridade é um valor essencial. O modelo de processo erigido a partir da segunda fase da ciência processual, ou seja, a partir de sua independência dogmática, não é mais capaz de dar vazão às demandas jurisdicionais.

Nesta esteira, surge a antecipação de tutela, rompendo com o dogma da cognição exauriente e buscando e efetividade da tutela jurisdicional, segundo solene compromisso do artigo 5º, inc. XXXV, da CF/88.

A antecipação deve ter aplicação ampla, rompendo-se com a visão que raciocina sempre com a configuração cognitiva e declaratória da jurisdição. Por isso, a antecipação deve ampliar a proteção possessória, não configurando a previsão de liminar específica nos pleitos possessórios de força nova óbice à concessão da antecipação.

A liminar possessória surgiu com o intuito de ampliar a proteção representando a possibilidade de antecipação de tutela quando isto não era possível. Isto demonstra o valor da posse em nosso ordenamento. Logo, não pode, agora, ter como conseqüência exatamente o contrário, ou seja, impedir a antecipação de tutela, pois neste caso estará prestigiando o esbulhador ou turbador.

Conclui-se, assim, poder invocar o possuidor ambos os institutos conforme estejam presentes os requisitos. Até um ano e dia da turbação ou esbulho, pode invocar a liminar possessória, de cunho objetivo, bastando provar a posse anterior e o lapso de tempo inferior a ano e dia entre o fato que caracteriza o esbulho ou turbação e o pedido. Também poderá pedir antecipação de tutela, desde que presentes os requisitos.

Após ano e dia, poderá invocar somente a antecipação de tutela, devendo provar o preenchimento dos seus requisitos, não significando a passagem de tempo, ainda que considerável, motivo suficiente, per se, para afastar o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.

Ademais, se invocar o provável ou comprovado propósito protelatório do réu como fundamento da pretensão antecipatória, o fator tempo em nada afetará a postulação, devendo-se medir em cada caso se o lapso de tempo da posse do réu deve o não ser protegido pelo direito, à luz de um critério de razoabilidade, pois poderá não ser justo chancelar a incúria do autor eu tendo ciência do esbulho ou turbação, permite, podendo agir, que se perpetue.

Esta, a nosso ver, a solução que melhor se coaduna com os vetores do moderno processo da celeridade e da efetividade.


Nota

1. Neste posicionamento:" Reintegração de posse. liminar. Distinção entre a liminar do art-928 do CPC, nas ações possessórias de forca nova, e da antecipação de tutela do art-273 do estatuto formal nas ações de posse velha. Cuidando-se, como e o caso, de posse velha, exercida a cerca de 20 anos, não afetada por notificação extrajudicial que antecedeu a propositura da ação em cerca de 5 anos, eventual liminar de reintegração de posse só poderá ser concedida com base no preenchimento dos requisitos do art-273 do CPC, em especial no que diz com a demonstração de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, exigência que sequer se admite debater nas ações possessórias de forca nova, onde o prejuízo e presumido juris et de jure a partir da demonstração do autor da ação que e possuidor e que foi agredido a menos de ano e dia em sua posse. Agravo provido. (5fls.) (Agravo de instrumento nº 70000593822, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: des. Elaine Harzheim Macedo, julgado em 27/06/00)"

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Da (im)possibilidde de antecipação de tutela nos pleitos possessórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -243, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3542. Acesso em: 23 dez. 2024.

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