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Questões processuais de jurisdição e competência em torno da Internet

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SUMÁRIO

: 1. NOTA DE ABERTURA - O alcance da Internet; considerações preliminares. 2. ABORDAGEM PRELIMINAR - Essência da instrumentalidade do direito. 3. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA; CONCEITOS E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - Enfoque inicial sobre jurisdição e competência, apontando conceitos e princípios que norteiam estas funções do Estado. 3.1. Conceito de jurisdição 3.2. Princípios básicos da jurisdição, com destaque para a) Princípio de aderência ao território b) Princípio da inafastabilidade 3.3. Conceito de competência 3.4. Competência em razão do território; paralelo da competência internacional 4. ENQUADRAMENTO LEGAL - Descrição das leis, tratados e convenções internacionais, que enunciam a forma como se estabelecer a jurisdição e a competência em questões gerais. 5. NÚCLEO DO PROBLEMA - Questões processuais sobre jurisdição e competência em torno da Internet. 6. CONSTRUÇÃO SUBJETIVA DO TEMA E ANÁLISE CONCLUSIVA. 7. BIBLIOGRAFIA.

1. NOTA DE ABERTURA: O ALCANCE DA INTERNET.

A Internet é hoje, um elemento social incorporado ao cotidiano das comunidades modernas, tendo seu contexto tecnológico se inserido no desenvolvimento natural dos povos alcançando uma marcha irreversível. É forte contributo não só na disseminação de informação cultural, mas também, na revolução do mercado comercial mundial.

Para além de um mecanismo de mera comunicação interativa, a Internet perfaz, hoje, um percentual de 35% no e-commerce (comércio eletrônico) somente no mercado comum europeu, com tendência a crescer nos próximos dois anos. [1] As facilidades de interligação transfronteiriça entre as partes contraentes e de desburocratização dos elementos comerciais tradicionais, proporcionadas por este sistema, fazem com que produtos e serviços de empresas situadas em planos físicos distintos no globo consolidem na Internet um ponto de encontro de bons negócios. Outrora, o que dependia de empresas especializadas em importação e exportação faz-se, hoje, ao nível quase unipessoal.

Entretanto, tamanhas facilidades albergam ardilosas armadilhas para os usuários do sistema e vêm provocando o aglutinamento de uma gama de problemas a serem resolvidos pelas autoridades legislativas e judiciárias de todo o mundo. Vários direitos e vários princípios que consubstanciam o direito estão sendo sobrepujados pela ausência de regulamentação do espaço virtual, que desconhece barreiras sociais, culturais, políticas, ou legais, e muito menos comporta limites de territorialidade.

Neste pequeno estudo, tentamos delimitar as problemáticas em torno da Internet, eminentemente em questões de direito processual, enfocando tópicos como a jurisdição e a competência, em contraposição com o princípio de "liberalidade" vivenciado no âmbito da Internet. Antes porém, necessário se faz uma abordagem periférica sobre a importância que as autoridades interessadas em regulamentar o mercado eletrônico devem dar ao direito formal, como meio de instrumentalização do direito substantivo, o que se faz, com os apontamentos e argumentos que ora se seguem.


2. ABORDAGEM PRELIMINAR: ESSÊNCIA DA INSTRUMENTALIDADE DO DIREITO.

É cediço que romanos e germânicos tenham sido os introdutores do processo como forma de instrumentalização dos direitos primários, ou materiais. Naquela altura, o processo servia aos romanos, por exemplo, como forma de fazer valer a Lei. Chiovenda [2], aliás, referiu-se ao processo romano como aquele detinha o escopo de prover a "atuação da vontade da lei em relação a um determinado bem de vida (res in iudicium deducta)"

Claro que a realidade vivenciada pelos povos romano e germânico, está totalmente dissociada da realidade atual onde, praxis, o processo gira em torno de uma dinâmica maior, estando hoje o direito processual afirmado como ramo autônomo da ciência do direito. [3]

Entretanto, o que o mais aguçado processualista da época não poderia prever, é que, um dia, o processo, como instrumento de viabilização e aplicabilidade da norma concreta, não conseguisse acompanhar uma série de significativas mudanças no conteúdo do direito substantivo, em face dos sistemáticos avanços sociais, dentre eles, o avanço das ciências tecnológicas.

Nas incursões pelo mundo jurídico e pela evolução social da humanidade, não é pouco comum nos depararmos com lacunas, ainda que sublimes, de adequação do fato à norma e da norma à sua execução.

Dentre nós permeiam, cada vez mais, temas que dão azo a novas interpretações jurídicas, como é o caso da clonagem de seres vivos, anunciada com estardalhaço há tempos pela imprensa mundial, bem como, da fabricação de produtos trangênicos criados em laboratórios para o consumo em massa e da revolução tecnológica no cenário da comunicação, (é o caso da Internet). Enfim, temas de abordagens latentes e atuais em nossas vidas inferem-se necessariamente no mundo jurídico suscitando aos legisladores e aos operadores do direito em geral, uma constante adequação do direito existente a estas novas realidades, ou a criação de um novo ordenamento jurídico, capaz de contemplar e prever soluções para os dissídios advindos destas transformações do cotidiano.

De Lege lata e de Lege ferenda, o universo jurídico destes novos temas de direito, pouco - à - pouco vai sendo regulamentado quanto à sua materialidade, todavia, vão-se negligenciando a forma como se concretizarão.

Cumpre lembrar que, a força do direito não reside só nos fins para o qual foi criado, mas também na sua obrigatoriedade, o que se reforça pela existência do binômio "direito formal / direito material". Embora apareça como garante do direito material, o direito processual vale por si próprio, até mesmo nos casos em que prejudica a realização do direito material. Nesse sentido, normas processuais têm exatamente o mesmo valor das normas substantiva. [4]

Sem adentrar no mérito dos fundamentos que norteiam as históricas correntes dualista, defendida por Carnelutti e unicista, defendida por Chiovenda, mas a nós nos parece, hoje mais do que antes, que a essência do processo é a atuação, ou seja, a realização prática da vontade do direito substantivo. Sendo certo pois, que a valoração na concepção de suas normas conferirá uma maior eficácia na exatidão do direito a que se pretende enunciar.

Diante de novas realidades jurídicas, como a que aqui vamos abordar, que diz respeito à jurisdição e competência no processo, em questões em torno da Internet, necessária se faz, uma legislação mais eficaz e apropriada, que não se limite a ditar normas concretas, mas que, para além disto, vise normatizar a via de acesso à aplicabilidade destas normas concretas. Aliás, é este o enunciado na lei processual civil portuguesa: "Artigo 2º, 2 – A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção." CPCP.

O que se tem observado, entretanto, é que o legislador mundial tem se preocupado em regular as questões internáuticas, quanto ao direito substantivo, ou seja, quanto à criminalidade, pirataria de programas, bases de dados, propriedade intelectual, dentre muitos outros, não cuidando porém, de averiguar se a estrutura do direito processual vigente, está adaptada aos desafios exigidos nesta empreitada.

Exemplo máximo é o caso da jurisdição e da competência para o conhecimento e pronunciamento do direito da Internet. Quem seria o juízo competente, por exemplo, para julgar lide envolvendo internautas, (lato senso) de países, ou de localidades distintas, onde ‘A’, sem sair fisicamente do seu território, provoca um dano em um direito de ‘B’ através da Internet? Neste caso, ‘B’ pretende reaver seu prejuízo demandando contra ‘A’ uma ação reparatória. Em que foro deve propor a ação? Pode haver foro privilegiado? E quanto ao princípio jurisdicional de aderência ao território e da competência territorial, como fica em relação à Internet como elemento de comunicação sem fronteiras? Dificuldades desta natureza não podem ser renegadas ao segundo plano. Antes, devem ser enfrentadas e superadas por aqueles que pretendem disciplinar a matéria. Daí dizer-se da essencialidade, para o direito material, de sua instrumentalidade.

Este enfoque preliminar é essencial para a total compreensão da temática nuclear em estudo. Começamos, então, por conceituar e discorrer sobre os princípios da Jurisdição e Competência, e da correspondente previsibilidade legal, para, depois, dissertarmos sobre a matéria em si.


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. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA; CONCEITOS E PRINCÍPIOS ELEMENTARES:

3.1. Conceito de jurisdição:

Na esteira do que se comentou, a própria conceituação de jurisdição (iuris dictio, ou dizer o direito), a define como uma função cabível ao Estado para prover a garantia e atuação do direito, com o firme propósito de resolução dos conflitos. O império da norma é ministrado e aplicado pelo Estado de forma a garantir a paz social. Observa Liebman [5] que: "Una branca del diritto è perció appunto destinata al compito di garantire l’efficacia pratica effetiva dell’ordinamento giuridico, mediante l’ istituzioni degli organi pubblici che provvedono ad attuare questa garanzia, com la disciplina de modalità e forme della loro attività. Questi organi sono gli organi giudiziari; la loro attività si chiama da tempo immemorabile giurisdizione (iurisdictio)."

Ora, a sociedade, por si só, não pode se auto tutelar para prover a resolução dos conflitos decorrentes da interação de seus direitos. Como é sabido, salvo expressa concessão legal, é ilícito o emprego da auto defesa para prevalecer direitos, v.g. consoante dispõe unanimemente as legislações processuais civis modernas. (Vide artigo 1º do CPCP). Neste caso, é inevitável corroborar com o entendimento desenvolvido por Chiovenda ao estabelecer critérios para distinguir a jurisdição, em que aponta o seu caráter substitutivo como sendo a necessária intervenção do Estado em substituição das partes titulares, interessadas no conflito, para de forma imparcial, conhecer, decidir e executar o direito pretenso.

Com maestría, Jaime Guasper [6] leciona que: "El Estado asume esta función, no porque si no lo hiciera quedaría sin resolver un conflicto o lesionado un derecho, sino porque, al no reconocer la figura de la pretensión procesal, quedaría estimulada por el abandono público la satisfacción privada de otras pretensiones de análogo contenido. Así, aunque al Estado interesa indudablemente eliminar los conflictos sociales y dar efectividad a los derechos subjetivos que la ley reconoce, o, aún en mayor grado, realizar prácticamente las normas que él mismo ha puesto en vigor, ninguna de las funciones que inmediatamente se dirigen a esta fin se basa en supuestos de estricto carácter jurisdiccional. Por el contrario, el fundamento de la Jurisdicción se halla en la idea de que, por el peligro que supone para la paz y la justicia de la comunidad una abstención en este ponto, se ha de concebir como función del Estado la de la satisfacción de las pretensiones que las partes puedan formular ante él."

Entretanto, adverte-se que o Estado aqui referido, pressupõe àquele que controla o Ordenamento Jurídico e dispõe de meios concretos para aplicação da norma objetiva. Deduz-se claramente, a figura do Estado real, com territorialidade, soberania e autonomia. Entretanto, o que pode ocorrer quando se pretende suscitar um direito que paira sobre uma virtualidade? Como identificar o Estado ao qual se recorrer, quando os elementos primários identificadores da jurisdição sobrepujarem as fronteiras desta territorialidade, soberania e autonomia? É de se asseverar, por exemplo, que no caso em estudo, a Internet têm como seu elemento caracterizador, o objetivo de estabelecer comunicação sem fronteiras e promover a interação de pessoas em diversas localidades do planeta. Porquanto, foge-se à fixação territorial de um direito A ou B, supostamente sujeitos à jurisdição estatal. Neste caso, o direito internáutico, seja ele qual for, contrapõe-se a pelo menos um dos princípios elementares da jurisdição; o da aderência ao território. [7]

3.2. Princípios da Jurisdição:

Os princípios da Jurisdição, doutrinariamente, têm caráter universal e constituem-se de elementos essenciais para a concretude do exercício jurisdicional. Não obstante a importância dos princípios da investidura, indelegabilidade, inafastabilidade e o da inércia, para atendermos ao estreito objeto da nossa pesquisa, enfocamos basicamente dois; o princípio de aderência ao território e o da inafastabilidade, que são correlatos.

a) Princípio da aderência ao território:

O princípio da aderência ao território pressupõe que, para que a jurisdição seja exercida, há que haver correlação com um território. Ensina-nos Carreira Alvim [8] que: "Não se pode falar de jurisdição, senão enquanto correlata com determinada área territorial do Estado. Tal limite estabelece, inclusive, limite à atividade jurisdicional dos juízes, que, fora do território sujeito por lei à sua autoridade, não podem exercê-la."

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Ada Pellegrini [9] e Cândido Rangel Dinamarco, também preceituam que: "No princípio da aderência ao território manifesta-se, em primeiro lugar, a limitação da própria soberania nacional ao território do país: assim como os órgãos do Poder Executivo ou Legislativo, também os magistrados só têm autoridade nos limites territoriais do Estado."

Entende-se pois, que este princípio tem o escopo de dar ao Estado limites de atuação em seus poderes. Norteia-se claramente pela autonomia e soberania dos outros Estados que, da mesma forma, delimitam suas atuações.

Isto é perfeitamente explicável sob o ponto de vista jurídico-político: Do ponto de vista político, excetuando-se os períodos de guerra e de dominação de culturas imperialistas, como as do médio oriente, asiáticas e a norte americana, em que há intensa dominação de Estados totalitários sobre Estados minoritários, quer por razões religiosas, quer por razões políticas, o mundo vivencia hoje um ambiente de respeito às soberanias e autonomias dos Estados. A pacificação social e a redefinição da estrutura geopolítica mundial, experimentada com o pós-guerra (2ª grande guerra), como o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a criação de novos Estados, como os oriundos da Iuguslávia, por exemplo, fortaleceram os conceitos de respeito aos limites físicos, políticos, culturais e sociais de cada nação, que consubstanciaram em suas constituições princípios pautados na hegemonia e harmonia das relações internas e internacionais. Desta forma, guardar respeito à soberania alheia ficou de tal forma arraigada, que os Estados definem em suas próprias leis internas, o respeito a este princípio. Além disso, os Estados estabeleceram acordos de cooperação para a realização de atos que atendam a interesses recíprocos, dentre os quais se encaixam alguns de ordem jurídica, como, por exemplo, cartas precatórias e rogatórias, (vide artigos 7º e 8º da CRP e 177º e seguintes do CPCP) tudo com o objetivo de não invadir a soberania e autonomia do Estado cooperado, que atenderá espontaneamente à solicitação, caso haja previsibilidade legal.

Do ponto de vista jurídico, os limites da Jurisdição encerram os limites do império da Lei. Ora, é juridicamente impossível fazer valer o cumprimento de uma norma alienígena em um território onde a lei emanada e que se quer ver cumprida, sequer tem força coerciva. Neste diapasão completa Carreira Alvim: "Os limites da Jurisdição são dados, portanto, pelo poder de império do Estado de sujeitar os destinatários da norma legal ao seu comando. Onde não impera a lei, não há lugar para o exercício da função jurisdicional." Ademais, o Estado não tem interesse em se ocupar de questões jurídicas supranacionais, face a inalcançabilidade e ineficácia prática da aplicabilidade de suas normas em terras estrangeiras. [10] Mesmo porquê, como já mencionado, quando se fizer necessário o cumprimento de uma lei em um caso específico, em que se pretenda punir agente nacional residente no exterior e passível da incidência de alguma norma legal válida em seu país de origem, existem mecanismos jurídicos devidamente apropriados, inobstante os inúmeros acordos e tratados internacionais firmados entre os Estados.

Aqui, entretanto, comporta mais uma nuance da Jurisdição, que diz respeito à sua extensão. Mais uma vez recorremos à liça de Carreira Alvim [11] que define: "Em obediência a um dever genérico internacional, de reconhecer os demais Estados como soberanos, nos limites de seus respectivos territórios, todo Estado, ainda que em medida diversa, reconhece a atividade desenvolvida pelos demais, mas sem detrimento da própria soberania. Com este objetivo, o Estado expede atos de vontade própria, cujo conteúdo esteja em conformidade com os atos de vontade do Estado estrangeiro. Em vista desta atividade legislativa estrangeira, o Estado nacional prescreve normas preliminares que traçam os limites dentro dos quais o legislador reconhece o direito alienígena, como regra de relações que interessam concomitantemente a estrangeiros e nacionais. Em virtude dessas normas de aplicação, o juiz aplica direito estrangeiro, mas como direito nacionalizado e não como direito estrangeiro. A vontade de que o juiz atua somente pode ser a do Estado de que ele é órgão."

Com efeito, o que se pode deduzir do expendido, é que o direito será albergado de uma forma ou de outra, ainda que a Tutela Jurisdicional do Estado esteja limitada pela territorialidade. Mas, como podemos interpretar estas lições à guisa do problema maior; a Internet? Como traduzir o princípio da territorialidade para parâmetros de relações jurídicas sem territorialidade?

b) Princípio da inafastabilidade:

Como referido, de uma forma ou de outra, o direito tutelado será apreciado. Não pode haver omissão ou afastamento do Estado na administração da Jurisdição. É dever precípuo do Estado, fazer valer o enunciado de direito, estabelecendo o equilíbrio social.

Neste sentido, o Estado, no exercício de sua atividade jurisdicional, não pode se escusar de conhecer a pretensão deduzida pelas partes, sob nenhuma alegativa. Este princípio está enunciado pela Constituição Federal Brasileira no artigo 5º, inciso XXXV [12], na Constituição Portuguesa no artigo 20º [13] e incisos, dentre muitas outras constituições e recebe assim a interpretação do constitucionalista maior, José Joaquim Gomes Canotilho [14]: "Quando os textos constitucionais, internacionais e legislativos reconhecem, hoje, um direito de acesso aos tribunais este direito concebe-se como uma dupla dimensão: (1) um direito de defesa ante os tribunais e contra actos dos poderes públicos; (2) um direito de protecção do particular através de tribunais do Estado no sentido de este o proteger perante a violação dos seus direitos por terceiros (dever de protecção do Estado e direito do particular a exigir esta protecção). A intervenção do Estado para defender os direitos dos particulares perante outros particulares torna claro que o particular só pode, em geral, ver dirimidos os seus litígios perante outros indivíduos através de órgãos jurisdicionais do Estado. Esta "dependência" do direito à protecção juridicial de prestações do Estado (criação de tribunais, processos jurisdicionais) justifica a afirmação corrente de que o conteúdo essencial do direito de acesso aos tribunais é a garantia da via judiciária (= "garantia da via judicial", "garantia da protecção judicial", "garantia de protecção jurídica através dos tribunais"). "

Tem-se então, que o princípio da inafastabilidade constitui um dos elementos mais importantes da jurisdictio e reflete um dever constitucional do Estado de manter a ordem interna e promover a pacificação social.

Porém, mais uma vez, levanta-se uma questão referente a Internet. Tendo este princípio, correlação direta com o princípio da aderência ao território em que, somente o tribunal que exerce a jurisdição sobre determinado limite territorial será o garantidor do acesso à justiça proclamado pelo princípio constitucional, como interpretar, por exemplo, a ausência de jurisdição de um outro tribunal, em apreciar dano provocado por internautas de distintas localidades, em contra partida à garantia do acesso à justiça? Poderia um agente ‘A’ situado em território português, tendo sido prejudicado pelo agente ‘B’ que é espanhol, mas que praticou o ato lesivo em território japonês, onde passava suas férias, requerer do tribunal japonês a reparação de seu danos? Poderia o tribunal japonês declinar de apreciar o direito por se declarar incompetente e sem jurisdição? Poderia o tribunal japonês recusar a garantia de acesso à justiça? Estas temáticas serão objeto de nossa apreciação mais adiante.

3.3. Conceito de competência:

Como se viu, a jurisdição é função do Estado, que no exercício de seu poder de agir, equilibra as relações e estabelece a soberania de uma nação. Aqui a visão é, não só, jurídica, mas do ponto de vista legislativo e administrativo. Eduardo Couture [15] assevera que, a noção de jurisdição como poder é temerária e insuficiente, posto que a jurisdição é um "poder-dever" do Estado. Assim, para além de um poder emana-se uma função no exercício do dever estatal.

Mas a jurisdição, apesar de una [16], necessita de uma distribuição ou de um compartilhamento de funções (competências), posto que, em razão da matéria, das partes, do território, do valor e da função. [17] Estas distribuições são necessárias ao completo desempenho do Estado no exercício de sua função jurisdicional. A esta distribuição de atribuições chamamos de competência. Liebman [18] define o conceito de competência, como sendo a quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos. Antunes Varela [19], por sua vez, esclarece que: "O requisito da competência resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais. Cada um dos órgãos judiciários, por virtude da divisão operada a diferentes níveis, fica apenas com o poder de julgar num círculo limitado de acções, e não em todas as acções que os interessados pretendam submeter à sua apreciação jurisdicional."

Tais entendimentos se justificam pela multiplicidade de órgãos jurisdicionais e de foros territoriais. Se o Estado pretende desenvolver suas funções a contento, bem como aplicar seu poder estatal de forma a atender às necessidades sociais da população e garantir sua soberania e autonomia, deve fazê-lo de maneira que possa maximizar os mecanismos de sua atuação. Sendo o Estado um ente despersonalizado, necessita de descentralizar-se em vários órgãos e atuar através dos tribunais e magistrados espalhados pelo território, que desempenharão cada um, nos limites que lhe forem impostos por lei, a jurisdição.

Imagine-se, pois, um país como o Brasil, por exemplo, detentor de um território de dimensão continental, com 26 estados federados e aproximadamente 170 milhões de habitantes. [20] Seria insustentável manter a ordem e a estrutura jurisdicional centralizada. O alcance da jurisdição neste caso seria vislumbrado somente ao nível territorial nacional, desprezando-se a estrutura interna dos estados federados e seus competentes tribunais estaduais.

Dentre todas estas divisões doutrinárias sobre a competência, para não falar em outras, definidas também por lei, interessa-nos abordar em exclusivo, a competência em razão do território, por razões óbvias. Se a nós nos cabe investigar o princípio jurisdicional de aderência ao território, cabe a nós explorar também, os limites territoriais da competência, tudo em face do já mencionado direito internáutico.

3.4. Competência em razão do território; paralelo da competência internacional:

A competência territorial atende ao princípio jurisdicional de aderência ao território por estarem, obviamente, intimamente relacionadas. Esta competência diz respeito à que o juiz ou tribunal terá para conhecer, processar, julgar e executar o direito contido na pretensão deduzida no âmbito dos limites físicos de atuação de sua jurisdição.

É pois, neste sentido, que o foro de Coimbra, por exemplo, será o competente para julgar matéria, definida em lei, que tenha assento nos limites territoriais da região em que tem abrangida sua jurisdição, mesmo que, outros tribunais sejam providos de jurisdição e competência para julgar matéria idêntica. O que os distingue aqui é a limitação da extensão territorial, ou de alcance do braço jurisdicional para àquela questão.

Antunes Varela [21] mais uma vez leciona que: "A competência territorial ou competência em razão do território é a que resulta de aos vários tribunais da mesma espécie e do mesmo grau de jurisdição ser atribuída uma circunscrição, ou seja, uma área geográfica própria de competência, e de a lei localizar as acções nas diferentes circunscrições, mediante o elemento de conexão que para esse efeito reputa decisivo." Continua por dizer ainda o grande jurista, que os elementos de conexão – foro do réu, foro do autor, foro do bem imóvel, foro obrigacional, foro hereditário e foro da execução – são decisivos para estabelecer os limites territoriais em que se deve assentar a fixação da competência. São critérios de justiça e de razoabilidade. Conclui.

Há, entretanto, outro critério doutrinal de relevante importância para o processo civil. Trata-se do interesse direto sobre a matéria. Se a matéria envolver interesse público, não há como se contemplar a mutabilidade do foro competente, porquanto se trata de um direito indisponível, este tendo que correr onde a lei assim o definir. Desta forma, a competência assume os caracteres de improrrogabilidade e de absolutibilidade. Se, entretanto, decorrer de interesses individuais das partes, este pode ser convencionado e pode ser mudado a qualquer tempo, assumindo assim, o caráter de relatividade. [22]

Ratificando este entendimento doutrinário, o Tribunal de Ralação de Coimbra [23], em assento jurisprudencial, tem manifestado que a competência territorial também tem relação direta com a causa delineada no pedido exordial: "A competência em razão do território é determinada em função do modo como a causa foi delineada na petição inicial (e não pela controvérsia que resulta da confrontação entre acção e defesa)" Noutras palavras, se a inicial versar de causa de interesse público, por exemplo, a competência será a definida em lei e terá caráter absoluto, de outro lado, se de interesse privado, a competência será a do foro de eleição das partes, o que se observará ab initio com a propositura da inicial, donde se conclui a importância do modo como a causa é definida na instrumental. Assim, a competência diz respeito à atuação prática da jurisdição de um Estado para conhecer das matérias dentro de seu território, observados os critérios dantes estabelecidos, quer legais, quer doutrinários. [24]

Ainda no estudo da competência territorial, temos que esta competência guarda plena correspondência com a competência internacional [25]. A competência do Estado para prover a sua jurisdição está aqui disposta no sentido amplo. Não só a competência interna, mas também, na externa. Não pode o juiz ou o tribunal nacional ter competência para julgar casos ocorridos no estrangeiro, pois como se viu, além do alcance da jurisdição limitar-se pela territorialidade, a inferência de um tribunal na esfera de outro tribunal com a mesma possibilidade de julgar a matéria, geraria o chamado conflito de competência internacional. Entretanto, mais uma vez alertamos para as excepcionalidades previstas em leis, tratados e convenções. O CPCP, por exemplo, define no artigo 65º, os fatores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses, mas faz clara menção sob que matérias e funções estarão atrelados para desenvolver tal competência: "Art.65º -1. A competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de algumas das seguintes circunstâncias: a) Ter o réu, ou algum dos réus domicílio em território português, salvo tratando-se da acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro; b) Dever a acção ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; c) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram; d) Não poder o direito invocado tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão pessoal, ou real."

Como preceitua Abílio Neto [26], estas excepcionalidades que albergam e atribuem aos tribunais portugueses uma competência internacional, foram estabelecidas pelas Convenções de Bruxelas e de Lugano. Estas convenções insurgiram-se pela necessidade, principalmente da Europa, em vias de criação de um direito muito mais amplo, o comunitário, em alargar, cooperativamente, o braço da justiça européia. A formação da UE, para além de uma evolução comunitária, envolveu muitos outros aspectos, nos quais o direito se inclui.

Entretanto, o que se abstrai do contido no artigo 65º é o engessamento natural do alcance jurisdicional e de competência dos tribunais. Ora, a competência definida em âmbito internacional, é praticamente a mesma definida em lei para o âmbito interno, nem poderia ser de outra forma. Salvo os expressos contidos neste artigo, de nenhuma outra forma os tribunais portugueses exercerão sua jurisdição ou competência para o julgamento de casos internacionais. Neste particular, Piero Calamandrei [27] já definia em seus estudos, os critérios em que se enquadram perfeitamente os comandos insertos no susodito artigo. Dizia o grande autor, que a competência internacional seria definida pela coesão entre os princípios de competência interna do Estado e que obedecia a seguinte ordem: Critério Pessoal ou subjetivo, como sendo àquele em que haveria certa vinculação do sujeito com o território a que se pretende dar a competência internacional, no caso em questão, Portugal. (vide art. 65º, letra "a"); Critério Real, ou objetivo, no que se refere à vinculação do território com os bens em questão, ou seja, se os bens estão localizados no território, neste caso, português. (vide art. 65º, letra "a", parte final); Critério de Aceitação, no caso de haver possibilidade legal, perante à legislação, no caso, portuguesa, de se sujeitar as partes à sua jurisdição (vide art. 65º, letra "b"); Critério de Conexão, para os casos em que demais juízos sejam também competentes para o julgamento da causa (vide art. 65º, letra "d").

Desta forma, o legislador português ao nortear a competência internacional dos tribunais portugueses, o fez de forma a atender os critérios estabelecidos internacionalmente e doutrinariamente, fazendo prevalecer o sentido lógico da existência de soberania e autonomia dos Estados, reguladas e previstas constitucionalmente. Nota-se por fim, que os critérios definidores da competência internacional concebida aos tribunais portugueses, assim como a outros dentro da CE, não excluem o estrangeiro, sendo pois, de aplicação universal. (vide art.65º, letra "a").

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Sobre o autor
Glauco Cidrack do Vale Menezes

Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza; professor de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade Farias Brito; Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Glauco Cidrack Vale. Questões processuais de jurisdição e competência em torno da Internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3613. Acesso em: 22 nov. 2024.

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