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Lei de Crimes Hediondos:

uma abordagem crítica

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01/01/2003 às 00:00
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SUMÁRIO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS - 1 ESCORÇO HISTÓRICO - 1.1 Alterações nas Tipificações dos Crimes Hediondos e Assemelhados – 1.2 As Formas Presumidas e os Crimes Hediondos - 2 IMPOSSIBILIDADE DE PROGRESSÃO DE REGIME E SUA CONSTITUCIONALIDADE - 2.1 A Legislação Correlata ao Assunto - 3 IMPOSSIBILIDADE DE LIVRAMENTO CONDICIONAL ORDINÁRIO E SUA CONSTITUCIONALIDADE - 3.1 A reincidência Específica - 4 CRIMES HEDIONDOS E OS PACTOS INTERNACIONAIS RATIFICADOS PELO BRASIL - 5 A REFORMA DO CÓDIGO PENAL - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Lei de Crimes Hediondos representa uma grande mutação da forma com que o Estado passou a tratar determinados crimes; crimes estes considerados pelos legisladores, como de maior gravidade social. Estes, a partir do início da vigência da Lei de Crimes Hediondos, passaram a ser tratadas com uma forma punitiva mais agressiva por parte de um Estado que, na época, já se via acuado por crimes como o seqüestro, por exemplo, que já chocavam a população, que, por sua vez, clamava por punições mais severas para os mesmos.

Porém o que se percebeu foi uma lei que acolheu os clamores populares mas, de uma forma que colide frontalmente com os princípios penais e, sob certos pontos aspectos, com a Constituição Federal, o que revela um enorme contra-senso da mesma com o ordenamento jurídico a ela pertinente.

Diante disso, objetivamos, com o presente, realizar uma abordagem crítica, sobre o que julgamos ser duas das mais importantes matérias que estão inseridas e tratadas pela lei de crimes hediondos, quais sejam: a.) A impossibilidade de progressão de regime, imposta aos condenados por crimes hediondos, que é regulada pelo artigo segundo parágrafo primeiro, da referida lei, e; b.) o livramento condicional extraordinário, que através do artigo quinto desta lei, foi inserido ao artigo oitenta e três do Código Penal, como sendo uma nova forma de Livramento Condicional.

A afinidade dos dois tópicos escolhidos se encontra no sentido de que, ambos, representam a individualização de pena privativa de liberdade, na fase de execução da mesma. Sendo a individualização uma garantia constitucional, gera diversas posições relacionadas a uma suposta inconstitucionalidade dos referidos pontos mencionados.

Desta forma, o que pretendemos com o estudo destes temas, é alcançar uma abordagem critica com relação ao assunto, que culmine em um maior entendimento do leitor no sentido que este deve tratá-los no dia a dia.

Destacamos ainda que se mostra de imensurável importância uma explanação sobre a impossibilidade de progressão de regimes e o livramento condicional extraordinário, pois certamente o objetivo do legislador, ao estabelecer estas sansões de maior intensidade, foi coibir o aumento desenfreado da criminalidade percebida, e, em contra senso, é concreta a não eficácia da mesma em relação a estes objetivos.

Para que tornássemos real e sustentável nosso objetivo utilizamos o método de abordagem dedutivo, pelo qual partimos da premissa maior, Constituição Federal e Lei de Crimes Hediondos, até uma premissa menor; o sistema de individualização da pena, sendo abrangidos por esta última, objetivos de nosso estudo, a progressão de regimes e o livramento condicional.

Diante disto, esboçamos a Lei de Crimes Hediondos [1], partindo de um escorço histórico da mesma, contando inclusive com sua alterações posteriores a sua entrada em vigor, adentrando na impossibilidade de progressão de regimes, na impossibilidade de livramento condicional ordinário. Ainda, neste tópico, necessário se fez a abordagem dos pactos internacionais relativos a direitos humanos que a mesma fere e uma análise sobre a constitucionalidade dos dois tópicos objetos.

Diante de tudo isto, temos como fruto desta série de estudos, juntamente com a técnica utilizada, o presente trabalho que se compõe pela lei de crimes hediondos em uma abordagem crítica, esta tendo como alvo a individualização através da progressão de regimes e do livramento condicional.


1 ESCORÇO HISTÓRICO

A repressão aos crimes hediondos teve início com a Carta Política de 1988, a qual determinou o seguinte:

"A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem". [2] (sic)

Após a promulgação desta, tiveram início no Congresso Nacional inúmeros projetos de lei, que objetivavam regulamentar o assunto, uma vez que o inciso acima abria caminho para uma lei complementar que considerasse o assunto [3].

Os primeiros, em 1989, foram os de números 2.105, que propunha o agravamento das penas para aos crimes de roubo, seqüestro e estupro seguido de morte, excluindo dos réus qualquer tipo de direito na fase de execução de pena; 2.154, que previa regras mais rigorosas para o tráfico ilícito de entorpecentes, inclusive com prisão preventiva obrigatória; 2.529, que previa aplicação em dobro às penas cominadas e estabelecia que os crimes hediondos seriam o estupro, seqüestro, genocídio, violências praticadas contra menores impúberes, delitos executados com evidente perversidade e assalto com homicídio ou periclitação de vida dos passageiros de quaisquer veículos de transporte coletivo;

Seguindo, no mesmo ano, elaborado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, foi proposto o projeto 3.754, encaminhado pelo então Presidente da República, por meio da mensagem 546/89, ao Congresso Nacional. Este projeto, colocava em destaque a guerra contra o crime propondo sentido à expressão constitucional "crimes hediondos" através da enumeração de determinadas figuras criminosas que receberam este rótulo, além de, definir conceitualmente a referida expressão como sendo todo o delito que se pratique com violência à pessoa, provocando intensa repulsa social e cujo reconhecimento decorra de decisão motivada de juiz competente de acordo com a gravidade do fato ou pela maneira execução

Após, ainda em 1989, o projeto 3.875, visava fixar penas superiores a vinte anos de reclusão, a diversos crimes referidos na legislação penal, e etiquetados como hediondos pelo mesmo, além dos que provocassem intensa repulsa. Após, o de número 4.272, visava incluir nos artigos 159, que trata da extorsão mediante seqüestro e no artigo 213, sobre estupro, parágrafos quinto e único, respectivamente, os quais afirmavam ser estes crimes hediondos.

Já em 1990, o projeto de número 5.270, propunha o aumento das penas para os crimes de extorsão mediante seqüestro, baseado na justificativa que este crime estava se tornando uma indústria lucrativa às custas das famílias das vítimas, além do pânico causado na sociedade. Logo após, através do projeto número 5.281, o seguinte texto era proposto para o crime de extorsão mediante seqüestro: "Seja qual for sua duração, proibidos o livramento condicional, a prisão semi-aberta e a prisão-albergue, mesmo nos estágios finais da execução".(sic)

Logo após, foi apresentado o projeto 5.355, ainda em 1990, que propunha que o procedimento criminal para os crimes de extorsão mediante seqüestro passasse a utilizar o mesmo procedimento criminal da lei antitóxicos [4]. Além disso, o artigo segundo dispunha que desde o inquérito policial não haveria a possibilidade de qualquer dilação de prazo para a conclusão, além do mesmo ser acompanhado pelo Ministério Público. Por último, no artigo terceiro, propunha que em caso de bando ou quadrilha, o componente que, voluntariamente, a denunciasse, desde que houvesse o desmantelamento desta, teria sua pena reduzida de um a dois terços.

Em 25 de junho de 1990, foi promulgada a lei ordinária, mas com caráter de lei complementar, de número 8.072, baseada no projeto substitutivo número 5.405, elaborado pelo Deputado Roberto Jefferson, então relator de Comissão de Constituição, Justiça e Redação.

Este projeto teve por base a mensagem presidencial 546/89 (projeto 3.754/89), além dos projetos até aqui descritos, os quais foram todos, a este, apensados. Na fase de votação houve um acordo entre todos os líderes de partidos políticos, que, sem nenhuma discussão mais aprofundada, aprovaram o mesmo na Câmara dos Deputados e em seguida no Senado Federal. Na fase de sanção presidencial, houve apenas o veto parcial (artigos quatro e onze), por parte do então Presidente da República Fernando Collor.

Alberto Silva Franco, em 1994, sobre toda essa trajetória, desde a Constituição de 1988, até a lei de crimes hediondos em 1990, se posiciona:

"O que teria conduzido o legislador constituinte a formular o nº XLIII do art. 5º da CF? O que estaria por detrás do posicionamento adotado? Nos últimos anos, a criminalidade violenta aumentou do ponto de vista estatístico: o dano econômico cresceu sobremaneira, atingindo seguimentos sociais que até então estavam livres de ataques criminosos; atos de terrorismo político e mesmo de terrorismo gratuito abalaram diversos países do mundo; o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins assumiu gigantismo incomum; a tortura passou a ser encarada como uma postura correta dos órgãos formais de controle social. A partir desse quadro, os meios de comunicação de massa começaram a atuar por interesses políticos subalternos, de forma a exagerar a situação real, formando uma idéia de que seria mister, para desenvolvê-la, uma luta sem quartel contra determinada forma de criminalidade ou determinados tipos de delinqüentes, mesmo que tal luta viesse a significar a perda das tradicionais garantias do próprio Direito Penal e do Direito Processual Penal". [5] (sic)

Neste contexto, Thais Vani Benfica [6], também relata a situação da época:

"Estavam ainda causando impacto no povo os seqüestros de pessoas bem situadas na vida econômica, social e política, e a mídia passou a sacudir a opinião pública, que encontrou ressonância no Poder Legislativo, que aprovou o projeto de lei do senado, através de votos de lideranças, sem qualquer discussão, logo sem legitimidade e representabilidade,...". [7] (sic)

Estas posições se confirmam através da análise das razões do anteprojeto 3.754/89. Estas razões, de autoria de Damásio E. de Jesus, continham o seguinte parágrafo:

"A criminalidade, principalmente, a violenta, tinha o seu momento histórico de intenso crescimento, aproveitando-se de uma legislação penal excessivamente liberal. Surgiram duas novas damas do direito criminal brasileiro: justiça morosa e legislação liberal, criando a certeza da impunidade". (sic)

Desta forma, a lei de crimes hediondos foi uma resposta do direito penal brasileiro à onda de seqüestros de pessoas influentes que vinham assolando a sociedade já naquela época. O objetivo, logicamente, seria diminuir a onda de crimes desta natureza o que infelizmente não se concretizou e, ao que se percebe, tomou tamanho muito maior e mais ofensivo à sociedade.

1.1 Alterações nas Tipificações dos Crimes Hediondos e Assemelhados

A lei em estudo, que passou a viger a partir de 25 de julho de 1990, em sua redação original, classificava quais eram os crimes considerados hediondos no artigo primeiro, que possuía apenas o caput, onde eram elencados todos os referidos delitos:

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"Art. 1º São considerados hediondos os crimes de latrocínio (art. 157, § 3º, in fine), extorsão qualificada pela morte, (art. 158, § 2º), extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º), estupro (art. 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art. 270, combinado com o art. 285), todos do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), e de genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956), tentados ou consumados." (grifamos)

Além disto, em consonância com a carta magna, a redação original da referida lei, em seu artigo segundo, "caput", determinou que, alem dos crimes hediondos, os crimes de prática de tortura [8], tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins [9], e o terrorismo [10], se equiparam aos crimes hediondos nas hipóteses citadas dentre os incisos e parágrafos do mesmo artigo.

Após a ocorrência de um polêmico homicídio qualificado [11]em 1992, a lei 8.930, que entrou em vigor em 07 de outubro de 1994, veio a revogar o artigo primeiro, supramencionado, substituindo-o. Esta nova redação incluiu o homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente e homicídio qualificado e, por outro lado, excluiu o envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte.

Assim, o elenco dos crimes hediondos, passou a ser formado por sete incisos, representados por crimes previstos no Código Penal, que incluíam dentre os hediondos, os delitos tipificados como homicídio, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com resultado morte. Além disto, a mesma lei incluiu o parágrafo único, que se referiu ao genocídio, crime tipificado em lei esparsa [12].

Já a lei 9.695, que entrou em vigor em 21 de agosto de 1998, alterou o artigo 273 do Código Penal, tratando de adulteração de produtos destinados a fins terapêuticos e medicinais. Esta lei, em seu artigo primeiro, inseriu os itens VII –A e VII – B, ao artigo 1º da Lei de Crimes Hediondos. O primeiro inciso mencionado (VII – A), foi revogado, sendo que o segundo, (VII – B) inseriu a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais dentre o rol dos crimes hediondos.

Desta forma, na atualidade, os crimes classificados como hediondos são os seguintes [13]:

"I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V);

II - latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º);

IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lº, 2º e 3º);

V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º).

VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1º, § 1º-A e § 1º-B, com a redação dada pela Lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998).

Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado." (grifamos)

Há que se observar a aplicação incondicional do princípio "nullum crimen, nulla poena sine lege", ou, "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal", e o princípio que versa que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu", ambos garantidos pela Carta Magna [14].

Diante destes princípios, devemos considerar que a Lei de Crimes Hediondos, em sua aplicação, só é possível com a observância das datas e dos tipos acima mencionados, uma vez que sua aplicação a delitos ocorridos antes da vigência da referida lei [15], ou de suas modificações, viola o principio da legalidade. Por outro lado, o tipo penal excluído após o início da vigência da mesma, beneficiou os crimes anteriores, amparados pelo princípio de que a lei só retroagirá para beneficiar o réu.

1.2 As Formas Presumidas e os Crimes Hediondos

A lei de crimes hediondos, em seu artigo primeiro, qualifica como hediondos os crimes de estupro e atentado violento ao pudor:

"Art. 1º - São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, ‘caput’ e parágrafo único); VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, ‘caput’ e parágrafo único)".(grifamos)

O Código Penal tipifica os crimes mencionados da seguinte forma:

"Estupro - art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça;...Atentado violento ao pudor - art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal".(sic)

Quanto à forma qualificada, o mesmo ordenamento faz a seguinte referência, com penas determinadas pela própria lei de crimes hediondos, artigo sexto:

"Art. 223 - Se da violência resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. Parágrafo único. Se do fato resulta a morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos".(sic)

A lei de crimes hediondos, artigo nono, ainda determina sobre as penas impostas aos crimes acima que "são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de 30 (trinta) anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal."(grifamos)

O artigo 224 do Código Penal, por sua vez trata da violência presumida: "Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (catorze) anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência."(sic)

Diante destes tipos surge-nos, em nossos tribunais, uma polêmica sobre quais as formas de estupro, e de atentado violento ao pudor, que o legislador intencionou incluir dentre os hediondos, ou seja, se os tipos mencionados, se cometidos na forma simples ou presumida, devem ser considerados como hediondos ou não, quanto ao cumprimento da pena em regime integralmente fechado.

Quanto à forma presumida, a discussão se dá porque o artigo nove da lei de crimes hediondos determinou a pena em dobro para estes casos, o que, a princípio, caracterizaria "bis in idem", penalizando duas vezes o mesmo ato, pois além da determinação da pena em dobro ainda caracterizaria como hediondo, com uma conseqüente pena cumprida em regime integral fechado.

Em análise literal dos incisos V e VI do artigo primeiro da lei de crimes hediondos, concluímos que a referência se faz da seguinte maneira, consecutivamente: "art. 213 e sua combinação com o art. 223, ‘caput’ e parágrafo único" e "art. 214 e sua combinação com o art. 223, ‘caput’ e parágrafo único".

Considerando que em ambos os casos a lei cita o artigo que caracteriza o tipo penal (artigos 213 e 214) e após a expressão "e", que acresce a combinação com o artigo 223, caput e parágrafo único, nos posicionamos no sentido de que os referidos tipos, se cometidos na forma simples estão incluídos no rol dos hediondos, uma vez que a expressão "e" demonstra a possibilidade do tipo simples e também qualificado como hediondo.

Por outro lado, com relação à forma presumida, tratada pelo artigo 224, do Código Penal, consideramos como não hedionda, uma vez que os incisos V e VI não se referem a mesma. A forma presumida dá-se unicamente em razão da idade da vítima, analisando se a mesma consentiu ou não para o ato lesivo. Há que se verificar, no caso concreto, a consciência da vítima e seu conseqüente consentimento quando então a conclusão pelo aspecto de ‘hediondo’ da conduta praticada.

Carlos Augusto Faria [16], ministro do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, entende que nenhuma das formas, simples e presumida, são hediondas:

"O estupro e o atentado violento ao pudor somente são definidos como crimes hediondos nas hipóteses em que ocorre lesão corporal grave ou a morte da vítima. Se todo e qualquer estupro e atentado violento ao pudor fosse crime hediondo, as Leis 8.072 e 8.930 não precisariam fazer, dentro de parênteses, as remissões aos artigos 213 e 214, nas suas combinações com o art. 223 "caput" e parágrafo único. Bastaria referir-se ao "nomen juris" ou aos artigos 213 ou 214, e todos os estupros e atentados violentos ao pudor seriam crimes hediondos. Se não o fizeram as duas leis, somente as formas qualificadas ficaram definidas como crime hediondo. Daí resulta que o cumprimento integral da pena no regime fechado e o aumento da pena, como é óbvio, não alcançam as formas simples dos dois crimes contra os costumes. (sic)

O Superior Tribunal de Justiça já julgou, em várias demandas e no mesmo sentido de nossa posição, favorável ao não enquadramento da forma presumida dos crimes tratados como hediondos. Como exemplo desta posição citamos a seguinte decisão da Sexta Turma [17] deste pleno:

"Na interpretação sistemática dos incisos V e VI do artigo 1º da Lei nº 8.072/90, em que se faz alusão às formas simples e qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor, é seguro, por evidente imperativo lógico e por força do princípio non bis in idem, que o artigo 9º da Lei nº 8.072/90, de necessária recorrência, ao fazer das hipóteses referidas no artigo 224 do Código Penal causas de aumento não apenas das formas qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor, como também das suas formas simples, confirma a exclusão do estupro e do atentado violento ao pudor, praticado com violência presumida, do elenco dos crimes hediondos." (grifamos)

Porém, na atualidade nos deparamos com julgamentos que enquadram ambas as formas, simples e qualificada, dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, como crimes hediondos. Luiz Augusto Coutinho [18], faz importante observação sobre o assunto: "Causa estranheza a mudança de jurisprudência do STF, posto que, adota-se, neste momento, interpretação extensiva em relação a LCH, situação que, sem sombra de dúvidas, é por demais prejudicial aos acusados afrontando diretamente a CF". (sic)

A exemplo citamos posição do Supremo Tribunal Federal [19]:

"Ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal consideram a não-ocorrência de ‘bis in idem’ no reconhecimento da causa de aumento do art. 9º da Lei nº 8.072/90, em face de ser a vítima menor de quatorze anos, nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor tipificado pela violência presumida (art. 224, alínea ‘a’, do Código Penal)" e "a particular situação da vítima, de não ser maior de 14 anos, é utilizada tanto para presumir a violência como para aumentar a pena de metade: no primeiro caso é circunstância elementar do tipo penal codificado (art. 214) e no segundo é causa de aumento da pena prevista na lei extravagante (art. 9º da LCH)." (sic)

Diante dos argumentos apresentados, e, não obstante o atual entendimento de nossos tribunais superiores, confirmamos nosso entendimento no sentido de que a lei de crimes hediondos inclui os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, em sua forma simples, dentre os crimes por ela regulados, não merecendo mesma interpretação, porém, quanto a forma presumida, a qual não deveria ser tomada por crime de natureza hedionda.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VEIGA, Marcio Gai. Lei de Crimes Hediondos:: uma abordagem crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3637. Acesso em: 24 nov. 2024.

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