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Os fins sociais da norma e os princípios gerais de direito

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01/02/2003 às 00:00
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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Natureza e função da Lei de Introdução ao Código Civil; 3. A Lei de Introdução ao Código Civil e a questão da aplicação da norma jurídica; 3.1. A integração e a textura aberta da normas; 3.2. A imprescindibilidade da interpretação; 3.2.1. As funções da interpretação; 4. A função do artigo 5º na prática; 5. Do processo sociológico ou teleológico; 5.1. Eqüidade; 5.2. Fim social; 5.3. Bem comum; 6. Princípios gerais de direito; 7. Conclusão; 8. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

Nas cadeiras acadêmicas dos cursos de direito o aluno é conduzido a entender que quão melhor será o profissional, quanto mais conhece a lei, seus dispositivos, o número de determinado artigo, etc.

Há tempos que KELSEN propôs o chamado princípio da pureza, entendendo que o método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa básica, o enfoque normativo, ou seja, o direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma, não se misturando com fato social ou como valor transcendente, numa visão precipuamente reducionista. [1]

A preocupação de dar pureza à Ciência do Direito procede do fato de que KELSEN tinha obsessão pela matemática pura. E a precisão desta despertou nele a inspiração para criar uma Teoria Pura do Direito, à luz de uma ciência que pudesse ser tratada com o rigor da matemática, que tem na pureza a sua essência que exsurge dos enunciados, das proposições e dos axiomas.

A Teoria Pura do Direito propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e exclui deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa rigorosamente determinar como Direito. [2]

Tal raciocínio conduz a idéia de que as normas jurídicas valem não porque são justas, ou porque sejam eficazes a vontade que as instituem, mas sim, por estarem ligadas a normas superiores por laços de validade, numa série finita que culmina numa norma fundamental – teoria da norma fundamental.

Contudo, para os aplicadores do direito, isso não basta, é imprescindível discutir a lei, aplicá-la ou não quando em conflito com o justo, e, alfim, observar qual o justo a ser aplicado.

É necessário avançar neste aspecto, a sociedade clama por justiça, pela igualdade, só assim o direito ganha sentido.

O objetivo do presente trabalho não é abordar ou valorar as várias técnicas ou processos interpretativos: gramatical ou literal, lógico, sistemático, histórico e sociológico ou teleológico. Tampouco de aprofundar sobre a teoria objetiva (mens legis) ou teoria subjetiva (mens legislatoris), ou efeitos da interpretação: declarativo, extensivo ou restritivo.

A abordagem desse trabalho cingir-se-á ao destaque do comando deôntico do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil [3] que preceitua que ao aplicar a lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum; juntamente com a verificação das lacunas e da necessidade de integração, o que nos remete ao artigo 4º do mesmo diploma, sendo que aí será destacado tão-somente os princípios gerais de direito com sua função diretiva no ordenamento jurídico.

Contudo, imprescindível será a utilização de conceitos e lições concernentes a integração, técnicas de interpretação, etc., como pressupostos a fim de concluir este ensaio [4], até porque as diversas técnicas interpretativas não se operam isoladamente, não se excluem reciprocamente; antes, se completam.

O capital problema do intérprete-aplicador é o de saber qual deve ser o sentido legal decisivo ou prevalente para o efeito de aplicação ao caso concreto, devendo, para tanto, empregar todas as técnicas interpretativas e os meios integradores, combinando-os entre si, sem, contudo, esquecer do disposto no artigo 5º da LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL, ou seja, os fins sociais a que ela se dirige às exigências do bem comum.

Destaca-se ainda que a aplicação do direito por intermédio das decisões judiciais tem grande importância, não somente em termos pecuniários ou de liberdade, mas, sim numa dimensão moral associada a um processo judicial legal, e, portanto, um risco permanente de uma forma inequívoca de injustiça pública.


2. NATUREZA E FUNÇÃO DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL

O legislador brasileiro preferiu colocar normas atinentes à revogação da lei, a sua aplicação, os casos de integração, fora do corpo do Código Civil Pátrio – o que fez bem, precedendo-o, por se tratar de normas sobre a aplicabilidade das leis em geral, conferindo-lhes uma autonomia em lei destacada, uma lei introdutória.

Tal comportamento foi inspirado no modelo alemão, denominando Lei de Introdução o complexo de disposições preliminares que antecedem ao Código Civil, não fazendo, contudo, parte deste.

O foco aqui está no Decreto-Lei nº 4.657/42, que revogou a antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Lei nº 3.071/16), modificando vários princípios que haviam inspirado o legislador de 1916 e descrevendo as linhas básicas da ordem jurídica.

Trata-se, na verdade, de uma lei de introdução às leis, por abranger princípios determinativos de aplicabilidade das normas e questões de hermenêutica jurídica sem qualquer discriminação, pois é, verdadeiramente, o diploma da aplicação, no tempo e no espaço, de todas as normas brasileiras, sejam elas de direito público ou privado, exercendo assim uma função de lei geral.

Não é demais afirmar que a Lei de Introdução ao Código Civil é uma lex legum, ou seja, um conjunto de normas sobre normas, constituindo um direito sobre direito, um superdireito, um direito coordenador de direito, regendo não as relações de vida, mas sim as normas, já que indica como interpretá-las e aplicá-las. [5]


3. A LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL E A QUESTÃO DA APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS

É cediço que toda ciência tem de se defrontar com dificuldades.

No Iluminismo se assentou a idéia de que as normas deveriam ser estabelecidas com clareza e segurança jurídica absoluta, por intermédio de uma elaboração rigorosa, a fim de garantir, especialmente, uma irrestrita univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administrativos, devendo ser o juiz o escravo da lei. Neste contexto, a segurança jurídica se confundia com a noção de justiça.

Contudo, a partir do século XIX esta concepção começou a vacilar.

A norma jurídica por natureza é geral, abstrata, fixa tipos, referindo-se a uma série de casos indefinidos e não a casos concretos.

Urge assim a necessidade de estudo quanto ao momento da aplicação da norma pelo operador do direito, ou seja, submeter um caso particular ao império de uma norma jurídica.

A norma jurídica só se movimenta ante um fato concreto, pela ação do aplicador do direito, que é o intermediário entre a norma e os fatos da vida. A aplicação do direito, dessa forma concebida, denomina-se subsunção.

A subsunção revela a tenacidade do aplicador do direito em se aproximar mais da realidade fática, completando a idéia abstrativa contida na norma, vez que a norma de direito é um modelo funcional. Esse raciocínio ganha brilho na seguinte lição:

"Deveras, o direito nunca é, mas a todo momento pode vir a ser, e, logo que é, deixa de ser; fora da decisão judicial não há direito, mas a todo momento, dessa decisão, o direito pode surgir, e, logo que surge, desaparece, porque o direito objetivo, confeccionado para o julgamento de um fato, só serve para esse julgamento; e consome-se pela aplicação." [6]

Contudo a realização da subsunção apresenta problemas face a ausência de informação sobre os fatos ocorridos e pela indeterminação semântica dos conceitos normativos, ou seja, são as lacunas normativas: de conhecimento [7] e de reconhecimento. Nos prenderemos ao "segundo problema" – as lacunas de reconhecimento.

As lacunas de reconhecimento são oriundas da zona de incerteza, do problema da penumbra, dos conceitos plurissignificativos (isto é, vagos, imprecisos, indeterminados ou fluidos) [8], pois se originam, não da completude ou incompletude do direito [9], mas sim de certas propriedades semânticas da linguagem.

CARLOS MAXIMILIANO com sua lavra indelével há tempo firmou:

"A palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos do que os resultantes da simples apreciação literal do texto." [10]

Também nesse sentido, valiosa é a lição de ATIENZA no sentido de que é impossível eliminar toda a vagueza dos conceitos, haja vista que o veículo utilizado pelos mesmos é uma linguagem natural, e não uma linguagem artificial construída a propósito de eliminar as imprecisões. [11]

Para que a subsunção ocorra, resolvendo-se os problemas oriundos das lacunas, de conhecimento ou de reconhecimento, é indispensável uma interpretação para saber qual a norma que incide sobre o caso entelado, ou seja, para subsumir é imprescindível a interpretação. "A subsunção está condicionada por uma prévia escolha de natureza axiológica, entre as várias interpretações possíveis, daí a importância do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil." [12]

Por vezes o aplicador do direito se depara diante de uma situação onde não encontra norma que seja aplicável, pelo menos aparente, devido a um defeito do sistema normativo que pode consistir na ausência de uma solução, ou na existência de várias soluções incompatíveis. Trata-se de um problema de lacuna normativa, no primeiro caso, ou de lacuna de conflito, no segundo.

Diante de um, ou de outro caso, o aplicador do direito deverá lançar mão da interpretação sistemática a fim de colmatar essa lacuna.

A lacuna constitui um estado incompleto ou imperfeito do sistema, que deve ser preenchido ou corrigido utilizando-se do princípio da plenitude do ordenamento jurídico e da unidade da ordem jurídica.

Pode-se definir sistema jurídico (cada sistema jurídico) como uma ordem teleológica de princípios gerais de direito, sendo o sistema jurídico um sistema aberto. Aberto no sentido de incompleto, que evolui (pois é histórico e cultural) e se modifica; decorrente da provisoriedade do conhecimento científico. Cada norma é parte de um todo, de modo que não podemos conhecer a norma sem conhecer o sistema, o todo no qual estão ligados. [13]

Em obediência aos princípios mencionados, "a primeira e mais importante recomendação, nesse caso, é de que, em tese, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema". [14]

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Para que ocorra a integração normativa ou a exclusão de qualquer contradição, imprescindível palmilhar na missão dos seguintes dispositivos da Lei de Introdução ao Código Civil:

"Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum." (grifo nosso)

Assim, não há espaço no nosso ordenamento jurídico para as lacunas e antinomias, até pelas disposições legais citadas, pois o jurista ao aplicar os preceitos jurídicos, a fim de criar uma norma individual, deverá interpretá-los, integrá-los e corrigi-los, mantendo-se nas balizas estipuladas pelo ordenamento jurídico.

3.1. A Integração e a Textura Aberta das Normas

Não é demais trazer à colação a brilhante pena de COUTURE, pois segundo ele, "quando a lei cai no silêncio, podemos dizer – [...] – que esse silêncio está povoado de vozes... Quando o juiz dita sua sentença, não é só um intérprete das palavras da lei, mas também de suas vozes misteriosas e ocultas". [15]

Com precisão peculiar CAIO MÁRIO engloba quase todo objeto de tela deste ensaio na seguinte lição:

"O aplicador da lei (notadamente o juiz na decisão dos casos de espécie) terá de se valer de toda uma técnica, no plano do desenvolvimento jurídico, ainda que transcedendo à lei [...], porém mantendo-se ‘nos limites das valorações fundamentais do ordenamento jurídico’ sem penetrar no âmbito do ‘arbítrio judicial’.. ." [16]

A norma jurídica contém elasticidade para corresponder às diferentes exigências que variam no tempo e produzir efeitos mesmo quando se alteraram os fatos e os valores em razão dos quais surgiu, pois a norma permanece em evolução, respondendo a novas necessidades, a novos problemas oriundos da mutação dos tempos, aduzindo significações novas que seu elaborador não poderia ter pressentido. Por isso que se afirma que a norma é mais inteligente que seu criador, sobrevive ao tempo, enquanto este é efêmero.

CANARIS sustenta que cada sistema científico é tão-somente um projeto de sistema, que apenas exprime o estado dos conhecimentos do seu tempo. Por isso, e necessariamente, ele não é nem definitivo nem fechado. Dessa forma, o jurista, como qualquer outro cientista, deve estar sempre preparado para por em causa o sistema até então elaborado e para o alargar ou modificar, com base numa melhor consideração. A abertura do sistema significa a incompletude e a provisoriedade do conhecimento científico [17].

Nesta esteira urge a necessidade de conceber a idéia de sistema uno, completo e coerente de conceitos e categorias, iluminando e comandando a elaboração teórica e a aplicação prática do conhecimento jurídico moderno, verificando assim a funcionalidade do sistema, que serve eficazmente de base para a ampliação do nível de generalidade e de abstração conceitual sempre que a variedade crescente das situações reais exigir. É o caso, dentre outros, da ampliação de conceitos como o de cidadania para incorporar a figura do consumidor, bem como do conceito de casamento abarcando a união estável do casal, independentemente de formalidades legais.

O desenvolvimento desses entendimentos devem ser creditados, dentre outros, a HART, ENGISCH, LARENZ e DWORKIN.

HART, um autor de transição entre o positivismo clássico e o positivismo moderado, defende a tese de que o direito é, com freqüência, incompleto e parcialmente indeterminado, o que permite dizer que o direito possui uma textura aberta, reconhecendo explicitamente que a regra de reconhecimento pode incorporar, como critérios de validade jurídica, a conformidade com princípios morais ou com valores substantivos. [18]

Uma das razões que justifica a tese da textura aberta é a indeterminação da própria linguagem. Ao mesmo tempo que os termos gerais utilizados pela legislação traz a vantagem de abranger maior número de situações, por outro lado, exige a intervenção de um aplicador do direito, diferente do legislador, com o mister de decidir sobre a indeterminação da regra, utilizando assim da discricionaridade do aplicador do direito para "criar" [19] o direito. Seja qual for o processo escolhido para a comunicação de padrões de comportamento, estes, revelar-se-ão como indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em questão; possuindo aquilo que foi designado como textura aberta, sendo este o preço que se paga pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação que respeite as questões de fato. [20]

Palmilhando nesse sentido afirma HART:

"É, contudo, importante apreciar por que razão, posta de parte esta dependência da linguagem tal como efectivamente ocorre, com as suas características de textura aberta, não devemos acarinhar, mesmo como um ideal, a concepção de uma regra tão detalhada, que a questão sobre se se aplicaria ou não a um caso particular estivesse sempre resolvida antecipadamente e nunca envolvesse, no ponto de aplicação efectiva, uma escolha nova entre alternativas abertas. Dito de forma breve, a razão reside em que a necessidade de tal escolha é lançada sobre nós porque somos homens, não deuses." [21]

A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos aplicadores de direito, os quais devem determinar o equilíbrio, a luz das circunstâncias, entre os interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso, afinal o mundo jurídico não está fechado e é necessário dar dinamismo ao direito. [22]

Quando o aplicador do direito não encontra norma jurídica que lhe seja aplicável, não podendo subsumir o caso concreto a nenhum preceito, face a um defeito do sistema que pode consistir numa ausência de norma, na presença de disposição legal injusta ou em desuso, estar-se diante do problema das lacunas, sendo imprescindível um desenvolvimento aberto do direito. Essa permissão de desenvolver o direito compete aos aplicadores sempre que se apresentar uma lacuna, pois devem integrá-la, criando uma norma individual, dentro dos limites impostos pelos artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. [23]

ENGISCH sintetiza este entendimento da seguinte forma:

"Podemos reunir ‘lacunas’ e ‘incorreções’ sob o conceito comum de ‘deficiência’. Estamos, pois, em face de duas formas distintas de Direito deficiente. A deficiência a que chamamos ‘lacuna’ é afastada por meio da ‘integração jurídica’. O juiz actua aqui ‘praeter legem’, ‘supplendi causa’ [...]. Diferentemente, a deficiência a que chamamos ‘incorrecção’ é afastada através da ‘correcção’ da lei: o juiz aqui actua ‘contra legem’, ‘corrigendi causa’. A linha de fronteira entre o preenchimento de lacunas e a correcção jurídica nem sempre é nítida e segura." [24]

DWORKIN, após criticar a corrente conservadora quando chamou os que adotam de maus juízes, usurpadores e destruidores da democracia, discorre acerca da corrente progressiva asseverando:

"Algumas pessoas sustentam o ponto de vista contrário, de que os juízes devem tentar melhorar a lei sempre que possível, que devem ser sempre políticos, no sentido deplorado pela primeira resposta. Na opinião da minoria, o mau juiz é o juiz rígido e ‘mecânico’, que faz cumprir a lei pela lei, sem se preocupar com o sofrimento, a injustiça ou a ineficiência que se seguem. O bom juiz prefere a justiça à lei." [25] (grifo nossso)

3.2. A Imprescindibilidade da Interpretação

"A interpretação, que outrora parecia água plácida, estagnada, é hoje um mar assaz agitado." [26]

O professor FERRAZ JR. tratando do problema da interpretação assevera com vigor que "é hoje um postulado quase universal da ciência jurídica a tese de que não há norma sem interpretação, ou seja, toda norma é, pelo simples fato de ser posta, passível de interpretação". [27]

O tema da hermenêutica e da interpretação jurídica se presta ao processo de aplicação da norma jurídica levado a cabo pelo aplicador do direito. Sob esse enfoque, só faz sentido interpretar a lei, tendo em vista um problema que requeira solução legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes de tudo, o indivíduo e a sociedade a quem ela serve, pois a norma jurídica encontra-se sempre referenciada a valores na medida em que defende comportamentos ou serve de meio para a consecução de fins mais elevados. [28]

A hermenêutica jurídica refere-se a todo um processo de interpretação e aplicação da norma que implica na compreensão total do fenômeno que requer solução, com o objetivo de "fazer a lei falar".

A gênese do termo hermenêutica tem como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Significava trazer algo desconhecido e ininteligível para a linguagem humana.

Apontam-se três tarefas específicas da hermenêutica como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir.

Pode-se então concluir preliminarmente que a parêmia latina in claris cessat interpretatio [29]não tem qualquer aplicabilidade, pois qualquer lei, qualquer dispositivo, claro ou ambíguo, comporta interpretação, sendo dever do aplicador do direito a interpretação a fim de aplicá-lo. [30]

Uma norma, por mais clara que possa parecer, requer sempre uma interpretação.

Nesse sentido, bastante convincente é a lição de DEGNI:

"A clareza de um texto legal é coisa relativa. Uma mesma disposição pode ser clara em sua aplicação aos casos mais imediatos e pode ser duvidosa quando se a aplica a outras relações que nela possam enquadrar e às quais não se refere diretamente, e a outras questões que, na prática, em sua atuação, podem sempre surgir. Uma disposição poderá parecer clara a quem a examinar superficialmente, ao passo que se revelará tal a quem a considerar nos seus fins, nos seus precedentes históricos, nas suas conexões com todos os elementos sociais que agem sobre a vida do direito na sua aplicação a relações que, como produto de novas exigências e condições, não poderiam ser consideradas, ao tempo da formação da lei, na sua conexão com o sistema geral do direito positivo vigente." [31]

Observa-se desse modo que é pérfido o brocardo in claris cessat interpretatio, pois as leis claras contêm o perigo de serem entedidas apenas no sentido imediato decorrente dos seus dizeres, quando, na verdade, têm valor mais amplo e profundo que não advém de suas palavras, sendo assim imprescindível a interpretação de todas as normas por conterem conceitos com contornos imprecisos.

Tal brocardo deve ser entendido no sentido de que o esforço hermenêutico é mais simples ou mais complexo, conforme o entendimento do texto normativo seja mais ou menos fácil, pois sustentar a clareza do preceito é já ter realizado prévio labor interpretativo.

3.2.1. As funções da interpretação

As funções da interpretação são: a) conferir a aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe deram origem; b) estender o sentido da norma a relações inéditas e inesperadas; e c) temperar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social.

Inolvidável que a interpretação, como as artes em geral, possui a técnica, os meios para chegar aos fins colimados.

É a hermenêutica que contém regras bem ordenadas que fixam os critérios e princípios que deverão nortear a interpretação. A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar.

Quando se interpretar uma norma, deve-se procurar compreendê-la em atenção aos seus fins sociais e aos valores que pretende garantir, conforme prescreve o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, e não resumir o exercício interpretativo em simples operação mental, reduzida a meras inferências lógicas a partir das normas, olvidando-se do coeficiente axiológico e social nelas contido.

Afirma-se então que interpretar não é apenas desvendar o sentido contido atrás da expressão legal, mas é arte jurídica de eleger, dentre os significados possíveis albergados pela lei, o decisivo para dado caso concreto, por exteriorizar o sentido mais favorável ou adequado ao fim social e ao bem comum.

Uma decisão acerca de um caso concreto não contém uma interpretação puramente científica, pois foi fundada numa controvérsia, ou seja, sobre uma questão de fato; influenciando-se pelas circunstâncias da causa. Uma vez alterando-se os fatos, modifica-se a ilação.

Emerge assim a grande utilidade prática do artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, pois ao se interpretar a norma a fim de decidir, deve-se ter como escopo uma solução justa ao caso singular apreciado, sem conflitar com o ordenamento jurídico e com o meio social.

Além do mais, a norma jurídica tem que ser interpretada, exercitada, pois a essência do direito é a realização prática. Uma norma que jamais foi realizada ou que deixou de ser, não merece mais este nome, transformou-se numa rodagem inerte que não faz mais trabalho algum no mecanismo do direito e que se pode retirar sem que disso resulte a menor transformação. [32]

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Sobre o autor
Anderson Sant'Ana Pedra

Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP, Mestre em Direito pela FDC/RJ, Especialista em Direito Público pela Consultime/Cândido Mendes/ES, Chefe da Consultoria Jurídica do TCEES, Professor em graduação e em pós-graduação de Dir. Constitucional e Administrativo, Consultor do DPCC ­ Direito Público Capacitação e Consultoria, Advogado em Vitória/ES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRA, Anderson Sant'Ana. Os fins sociais da norma e os princípios gerais de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3762. Acesso em: 20 abr. 2024.

Mais informações

Texto também divulgado na seguinte publicação: Revista forense eletrônica. Rio de Janeiro: Forense. ISSN nº 1678-6777, v. 368, p. 557-565. jul./2003.

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