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Justiça: acesso e descesso

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01/05/2003 às 00:00

Resumo:


  • Acesso à Justiça é um conceito amplamente aceito no Brasil, derivado do trabalho de Mauro Cappelletti, e representa a busca por uma Justiça eficaz e acessível a todos, enfrentando o desafio de garantir a satisfação dos direitos em tempo razoável.

  • As "ondas reformistas" propostas por Cappelletti e Garth incluem a assistência judiciária para os pobres, a representação dos interesses difusos e uma visão mais ampla de acesso à Justiça, que abrange reformas processuais e estruturais do sistema judiciário.

  • O sistema judiciário brasileiro apresenta desafios como uma estrutura arcaica, procedimentos inadequados e um uso excessivo de recursos que prolongam o tempo de resolução dos litígios, sendo necessário reformas que permitam a saída eficiente da Justiça, além da entrada.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Sumário: 1. Considerações prévias. 2. Significado de "acesso à Justiça". 3. Ondas que traduzem o "acesso à Justiça". 4. Primeira onda: "Assistência judiciária para os pobres". 5. Segunda onda: "Representação dos interesses difusos". 6. Terceira onda: "Acesso à representação em juízo, a uma concepção mais ampla de acesso à Justiça, e um novo enfoque de acesso à Justiça". 7. Primeira onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Assistência judiciária". 8. Segunda onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Ações coletivas". 9. Terceira onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Nova estrutura do Poder Judiciário e os novos procedimentos". 10. Obstáculos ao acesso à Justiça brasileira: "A estrutura judiciária, a morosidade dos procedimentos, e o uso indiscriminado de recursos". 11. Considerações finais.


1. Considerações prévias

            O acesso à Justiça é um produto da obra de CAPPELLETTI, e mereceu, no Brasil, uma aceitação não vista em outras partes do mundo.

            Falar de "acesso à Justiça" é como que pronunciar uma palavra mágica, do tipo "abre-te Cézamo", em que se descerra uma larga porta pela qual todos passam, desde os mais miseráveis até os mais abastados, só que, infelizmente, pouquíssimos saem num prazo razoável.

            Infelizmente, nem as ondas cappellettianas, que varreram o continente latino-americano, e, em especial, o Brasil, conseguiram fazer da Justiça uma instituição confiável, eliminando, ou, pelo menos, atenuando, satisfatoriamente, o sofrimento de quem se vê obrigado a demandar em juízo a satisfação do seu direito.

            Não resta a menor dúvida de que a obra de CAPPELLETTI foi um marco na busca de soluções para tornar a Justiça uma instituição acessível a todos, e a sua grande repercussão animou os operadores do direito a partir em busca de novos caminhos, reformulando as estruturas judiciárias, e, especialmente, as legislações processuais, com o propósito de alcançar esse objetivo.


2. Significado de "acesso à Justiça"

            Quando se fala em "acesso à Justiça", pensa-se logo numa Justiça eficaz, acessível aos que precisam dela e em condições de dar resposta imediata às demandas; enfim, uma Justiça capaz de atender a uma sociedade em constante mudança.

            A expressão "acesso à Justiça", registram CAPPELLETTI e BRYANT GARTH é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico, o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. (1) Observam, porém, que o seu enfoque sobre o acesso à Justiça é primordialmente sobre o primeiro aspecto (acessibilidade), sem perderem de vista o segundo. E concluem: "Sem dúvida, uma premissa básica será a de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo.

            Para HORÁCIO W. RODRIGUES, (2) é necessário destacar, frente à vagueza do termo acesso à Justiça, que a ele são atribuídos pela doutrina diferentes sentidos, sendo eles fundamentalmente dois: o primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e conteúdo que o de Poder Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à Justiça e acesso ao Poder Judiciário; o segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão justiça, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. E conclui que esse último, por ser mais amplo, engloba no seu significado o primeiro.

            Para mim, o acesso à Justiça compreende o acesso aos órgãos encarregados de ministrá-la, instrumentalizados de acordo com a nossa geografia social, e também um sistema processual adequado à veiculação das demandas, com procedimentos compatíveis com a cultura nacional, bem assim com a representação (em juízo) a cargo das próprias partes, nas ações individuais, e de entes exponenciais, nas ações coletivas, com assistência judiciária aos necessitados, e um sistema recursal que não transforme o processo numa busca interminável de justiça, tornando o direito da parte mais um fato virtual do que uma realidade social. Além disso, o acesso só é possível com juízes vocacionados (ou predestinados) a fazer justiça em todas as instâncias, com sensibilidade e consciência de que o processo possui também um lado perverso que precisa ser dominado, para que não faça, além do necessário, mal à alma do jurisdicionado.


3. Ondas que traduzem o "acesso à Justiça" (3)

            Três são as ondas visualizadas por seus idealizadores, e que serão consideradas no desenvolvimento deste trabalho: 1ª) assistência judiciária para os pobres; 2ª) representação dos interesses difusos; e 3ª) acesso à representação em juízo, a uma concepção mais ampla de acesso à Justiça e um novo enfoque de acesso à Justiça.

            De todas as ondas, a mais importante, para a ordem jurídica nacional, é a terceira, por compreender uma série de medidas, desde a reestruturação do próprio Poder Judiciário, passando pela simplificação do processo e dos procedimentos, e desaguando num sistema recursal que não faça da parte vencedora refém da perdedora. Tudo com vistas a agilizar a prática judiciária, para que a parte que tem razão tenha a certeza de que receberá do Estado-juiz, ainda em vida, a prestação jurisdicional que lhe garanta o gozo do seu direito.


4. Primeira onda: "Assistência judiciária para os pobres".

            A primeira onda busca os meios de facilitar o acesso das classes menos favorecidas à Justiça, destrinçando os diversos modelos de prestação de assistência judiciária aos necessitados.

            Analisam os idealizadores das ondas de acesso à Justiça o Sistema Judicare, que resultou das reformas levadas a efeito pela Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha, sistema através do qual a assistência judiciária é estabelecida como um direito para todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei, em que os advogados particulares são pagos pelo Estado. A finalidade desse sistema é proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma representação (em juízo) que teriam se pudessem pagar um advogado. Analisam, também, o modelo de assistência judiciária com advogados remunerados pelos cofres públicos, com um objetivo diverso do sistema judicare, o que reflete sua origem no Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity, de 1965, em que os serviços jurídicos são prestados por "escritórios de vizinhança", atendidos por advogados pagos pelo governo e encarregados de promover os interesses dos pobres, enquanto classe. (4)

            Alguns países buscam combinar os dois modelos, de forma que um complementa o outro, tendo assim procedido a Suécia e a Província de Quebec, no Canadá, oferecendo ao necessitado a escolha entre o atendimento por advogados servidores públicos ou por advogados particulares, embora o sistema sueco penda mais para o modelo do sistema judicare, em que os advogados públicos devem ser mantidos, essencialmente, através dos honorários pagos pelo Estado em benefício dos indivíduos assistidos, enquanto em Quebec os escritórios de advocacia são mantidos diretamente pelo governo sem que se leve em conta quão bem sucedidos eles sejam na competição com sociedades de advogados particulares. (5)

            As vantagens apresentadas por esses modelos levaram os reformadores de muitos países, incluindo a Austrália, a Holanda e a Grã-Bretanha a implementar sistemas nos quais centros de atendimento jurídico suplementam os esquemas estabelecidos de judicare, sendo de registrar, pela sua importância, os "centros de atendimento jurídico de vizinhança", da Inglaterra, localizados em áreas pobres, sobretudo ao redor de Londres, onde os "solicitadores" (e alguns advogados) realizam muitas das tarefas desempenhadas pelos advogados de equipe nos Estados Unidos. (6)

            Também a Suécia foi pioneira em algumas inovações, indo além do que foram outros países, inclusive a França, na extensão da assistência judiciária à classe média, em que pessoas com rendimentos de até certo valor de renda anual, automaticamente reajustado consoante o custo de vida no país, está apto a receber auxílio jurídico subsidiado. (7)

            As medidas adotadas nos diversos países têm contribuído para melhorar os sistemas de assistência judiciária, fazendo ceder as barreiras de acesso à Justiça.


5. Segunda onda: "Representação dos interesses difusos".

            Esta onda centra o foco de preocupação especificamente nos interesses difusos, forçando a reflexão sobre noções básicas do processo civil e sobre o papel dos tribunais (8) nos diversos sistemas jurídicos. Numa primeira percepção, são chamados de interesses difusos os "interesses coletivos ou grupais", diversos daquele interesse dos pobres, que caracteriza a primeira onda.

            A preocupação com a segunda onda resultou da incapacidade de o processo civil tradicional, de cunho individualista, servir para a proteção dos direitos ou interesses difusos. É que o processo civil foi sempre visto como campo de disputa entre particulares (Ticio versus Caio), tendo por objetivo a solução de controvérsia entre eles a respeito de seus próprios direitos individuais.

            De uma perspectiva equivocada, em que se pensava que se o direito ou interesse pertencia a todos é porque não pertencia a ninguém, percebeu-se que se o direito ou interesse não pertencia a ninguém é porque pertencia a todos, e, a partir desse enfoque, cuidou-se de buscar meios adequados à tutela desses interesses, que não encontravam solução confortável na esfera do processo civil.

            Essa nova percepção do direito pôs em relevo a transformação do papel do juiz, no processo, e de conceitos básicos como a "citação" e o "direito de defesa", na medida em que os titulares de direitos difusos, não podendo comparecer a juízo -- por exemplo, todos os interessados na manutenção da qualidade do ar, numa determinada região -- é preciso que haja um "representante adequado" para agir em benefício da coletividade. A decisão deve, em tais casos, ser efetiva, alcançando todos os membros do grupo, ainda que não tenham participado individualmente do processo. Também o conceito de coisa julgada deve ajustar-se a essa nova realidade, de modo a garantir a eficácia temporal dos interesses e direitos difusos. (9)

            Essa onda permitiu a mudança de postura do processo civil, que, de uma visão individualista, funde-se numa concepção social e coletiva, como forma de assegurar a realização dos "direitos públicos" relativos a interesses difusos. (10)

            O Ministério Público tem sido muito prestigiado na defesa dos direitos e interesses difusos, mas, por não dispor de treinamento e experiência necessários para tanto, o que exige, muitas vezes, qualificação técnica em áreas não jurídicas -- como contabilidade, mercadologia (marketing), medicina, urbanismo, etc. -- outras entidades têm sido legitimadas para sua tutela; além, evidentemente, dos entes públicos que, pela sua destinação constitucional, estão, naturalmente, comprometidos com ela.

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            A melhor solução para garantir a efetividade da tutela dos direitos e interesses difusos, é, sem dúvida, a mista (ou pluralista), em que a iniciativa privada se conjuga com a atividade pública, neutralizando inclusive eventuais influências políticas que possam comprometer a eficiência da tutela de interesses que pertençam a toda a sociedade ou a determinado segmento dela.


6. Terceira onda: "Acesso à representação em juízo, a uma concepção mais ampla de acesso à Justiça, e um novo enfoque de acesso à Justiça."

            Essa onda encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, incluindo alterações das formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas, como juízes e como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução, e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios. (11) Esse enfoque não receia inovações radicais e compreensivas, que vão muito além da esfera de representação judicial. (12)

            A diversidade dos litígios recomenda que os procedimentos sejam adequados à sua solução, e que esta se dê por órgãos jurisdicionais e parajudiciais, sempre com vistas no custo-benefício, que deveria ser o norte de qualquer reforma das estruturas judiciárias em qualquer lugar do mundo. Não tem sentido que questões altamente técnicas sejam entregues à solução de juízes de direito, que, para solucioná-las vão louvar-se em peritos, sendo mais lógico que sejam resolvidas por técnicos, integrantes de tribunais arbitrais.

            A reforma dos procedimentos judiciais é de suma importância, para modificar a engrenagem judiciária, de modo a adotar procedimentos simples para demandas simples, e procedimentos complexos para demandas complexas. Além disso, o procedimento deve contar com a presença de leigos com atividade de auxílio dos juízes, não apenas na movimentação do processo (juntada, vista, etc.), mas da própria instrução, que toma a maior parte do tempo do juiz. (13) Os princípios configuradores da oralidade, dentre os quais o da identidade física, que exige a presença física do juiz no comando das audiências, devem ser repensados, para que entrem em cena os servidores "instrutores". A partir daí, poderia cada juízo ter a seu serviço um certo número de servidores especializados na instrução de processos, notadamente na tomada de depoimentos de partes e testemunhas, reservando-se ao juiz o poder de reinquiri-las, caso entenda necessário para o esclarecimento dos fatos.

            Em face da diversidade cultural do país, é mais efetivo que, ao lado de um código nacional de processo, haja procedimentos adequados a cada Estado-membro, conforme o seu desenvolvimento, pois não se pode exigir para a diligência de arrombamento, por exemplo, a presença de dois oficiais de justiça, onde, muitas vezes, não existe nenhum.

            Os métodos alternativos de resolução dos conflitos, fora da justiça pública devem ser também prestigiados, estimulando os jurisdicionados a buscar justiça fora dos tribunais públicos, como forma de se obter decisão mais rápida e eficaz, como a arbitragem e a mediação. Muitos países conjugam a justiça pública com a justiça privada, permitindo, por exemplo, que o juiz de direito se transforme em árbitro ou, mesmo, num amigável compositor.

            A conciliação apresenta grandes vantagens na medida em que "aborta" o julgamento, um dos grandes responsáveis pela lentidão da justiça, em face da morosidade do procedimento e da deficiência da própria estrutura judiciária. É preciso, no entanto, que os conciliadores sejam pessoas vocacionadas para conciliar, com poder de persuasão, o que não é o caso dos juízes, que, acostumados a instruir processos e decidir lides, não têm paciência para vencer a resistência das partes na obtenção da transação. Essa alternativa depende muito do perfil do jurisdicionado, residindo aí a grande dificuldade em fazer com que a conciliação alcance seu real objetivo, pois o brasileiro é um litigante nato, e, mesmo sabendo morosa a Justiça pública, tem por ela uma inusitada predileção.

            Os juizados de pequenas causas e os juizados especiais, tanto cíveis quanto criminais, são duas especiais modalidades de se fazer justiça rápida, e uma não exclui a outra, podendo, ambas, conviver na solução dos conflitos (arts. 24, X, e 98, I, CF). (14)

            A justiça dos juizados deve ser feita em única instância, sem a preocupação com turmas recursais, que são um projeto mal concebido do duplo grau de jurisdição, para dar vazão ao instinto recursal das partes, e ao juiz a singular sensação de ser membro de um colegiado, verdadeira "medida provisória" de desembargador.

            O denominado princípio do duplo grau de jurisdição, ao contrário do que se supõe, não tem assento constitucional, e o fato de a Constituição prever a existência de juízes e tribunais, não significa que deva o legislador infraconstitucional, ao disciplinar os procedimentos, prever sempre a possibilidade de recurso. O direito ao recurso deve ser entendido, não como direito a que a lei preveja recurso, mas como direito ao recurso que a lei prevê; (15) de forma que, se a lei não prevê recurso, nenhum direito tem a parte de recorrer. (16)

            Pela natureza e valor das causas, os juizados especiais devem ser centrados basicamente em juízes leigos, com julgamentos segundo o critério de eqüidade, além dos conciliadores, pessoas capacitadas para "abortar", mediante acordo das partes, a grande massa de litígios que acorrem a essa justiça.

            Além disso, os juizados especiais devem ser uma justiça adequada ao exercício da cidadania, com as próprias partes postulando os seus direitos, sem a necessidade de patrocínio por advogado, pois o valor das causas quase sempre não compensa o trabalho desses profissionais. Nem nas turmas recursais deveria ser exigido o patrocínio de advogado, e, se com essa exigência, o que se pretende é desestimular recursos, mais razoável seria a lei não prevê-los.

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Sobre o autor
José Eduardo Carreira Alvim

Advogado. Ex-Juiz do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Professor da UFRJ. Doutor em Direito pela UFMG. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVIM, José Eduardo Carreira. Justiça: acesso e descesso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4078. Acesso em: 18 dez. 2024.

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