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A importância da boa-fé como norma de conduta e instrumento de harmonização entre as partes na relação de consumo

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RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade salientar a necessidade da ampla observância do princípio da boa-fé e da análise imparcial da conduta dos integrantes das relações de consumo, para a eficaz aplicação das regras do código de defesa do consumidor e, desta forma, alcançar integralmente os objetivos sociais de harmonização e equidade dos integrantes das relações consumerista. Através de uma análise crítica de diversas situações na jurisprudência e no cotidiano consumerista, buscar-se-á demonstrar situações onde a exegese rígida e a parcialidade na análise de situações levadas a apreciação do judiciário podem transformar a proteção outorgada pelas disposições do CDC de um direito, em privilégio, ou seja, em um instrumento de favorecimento de uma do legislador quando da elaboração da parte da relação de consumo em detrimento da outra, em total descompasso com as diretrizes e ideais lei 8078/90.

Palavras-chave: Boa-fé, harmonia, transparência, lealdade.


INTRODUÇÃO

Indiscutivelmente, a elaboração da lei 8078/90 foi um marco na legislação brasileira. Apesar dos esforços realizados em prol da tutela dos interesses do consumidor, observados desde as Ordenações Filipinas no período colonial, passando pelo Código Comercial de 1850, da Lei 1521/50 dos crimes contra a economia popular, assim como da Lei Delegada nº 4 /1962 sobre a intervenção no domínio econômico, configurou-se de fato o CDC como instrumento inovador, eficaz na proteção dos interesses dos consumidores graças ao caráter abrangente das suas disposições, bem como através uma linguagem clara e objetiva.

A adoção do princípio da boa-fé como mandamento das relações de consumo é de especial relevância, observando este como dever de conduta das partes nos negócios jurídicos de consumo, uma vez que preenche a grande lacuna deixada pelo legislador quando da elaboração do Código Civil de 1916 que não contemplou a boa-fé como regra geral das relações de Direito Civil.

Na busca da proteção dos consumidores o legislador reconheceu expressamente a hipossuficiência e a vulnerabilidade destes. Criou ainda uma política nacional para as relações de consumo, no intuito de proteger a saúde, segurança, dignidade e proteção do interesse econômico dos consumidores, bem como a transparência e a harmonização dos interesses das partes da relação de consumo.

O presente trabalho pretende, portanto, através de análise da doutrina e, principalmente, da jurisprudência analisar a efetiva aplicação do princípio da boa-fé como meio de harmonia e transparência entre as partes da relação de consumo, analisando os direitos e, principalmente, os deveres de honestidade, lealdade, probidade impostos por este princípio aos fornecedores e aos consumidores.

Inicia-se o primeiro capítulo com uma breve definição de relação de consumo e com análise da atuação do princípio boa-fé frente às relações de consumo, sua função de limitação dos direitos subjetivos dos consumidores e dos fornecedores bem como caráter objetivo frente às relações consumeristas.

O segundo capítulo tratará, inicialmente, da definição das partes da relação de consumo para fins da efetiva aplicação das normas do CDC. Far-se-á ainda análise dos direitos e deveres de conduta de cada uma das partes frente aos ditames boa-fé objetiva e os demais princípios da política nacional das relações de consumo.

O terceiro capítulo discorrerá sobre a aplicação da boa-fé objetiva como princípio da política nacional das relações de consumo, como instrumento de harmonização e equidades das relações consumerista.. Através da análise de casos da jurisprudência se buscará analisar o alcance das normas do CDC frente à efetiva boa-fé das partes nas contendas jurídicas de consumo. Promover-se-á a avaliação de situações como a do confronto da boa-fé do fornecedor com a do consumidor e da possibilidade do abuso deste no uso de suas prerrogativas legais frente às disposições protecionistas da lei 8078/90. Por fim será promovida uma análise da possibilidade da inversão do ônus probatório frente a verossimilhança das alegações e boa-fé das partes nas relações de consumo


1 – RELAÇÃO DE CONSUMO: CONCEITO E ANÁLISE SOB O PRISMA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

1.1 A definição de relação de consumo de acordo com o CDC

Os artigos 2º e 3º [1] da Lei nº 8.078/90 delimitam, num primeiro momento, o âmbito de incidência da tutela legal apenas e tão-somente às denominadas relações de consumo. Desta forma, torna-se relevante inicialmente à busca da definição do âmbito de atuação do CDC quanto as relações consumeristas.

Definem-se relações de consumo como aquelas que ocorrem entre dois entes, o consumidor (individual ou coletivo), sendo este necessariamente o destinatário final e um fornecedor de produtos e serviços. Tal relação visa a satisfação das necessidades ou desejos dos consumidores, consubstanciando-se num vínculo jurídico entre as partes, gerador de obrigações tais como de cooperação probidade, lealdade, boa-fé e, principalmente por parte do fornecedor, o zelo à saúde, segurança do consumidor frente aos produtos e serviços prestados, bem como da efetiva e eficaz prevenção e reparação de todo e qualquer dano patrimonial ou moral sofrido pelo consumidor em decorrência desta relação jurídica.

Na busca de visualizar mais claramente a relação de consumo e seus elementos, podemos conceituar as relações de consumo como uma relação jurídica instrumental, que obriga consumidor e fornecedor, tendo, por objeto, produtos ou serviços adquiridos ou utilizados pelo consumidor na qualidade de destinatário final.

Desta conceituação podemos depreender os elementos de uma relação de consumo, quais sejam: os sujeitos, consumidor e fornecedor; o objeto, produtos ou serviços prestados pelo fornecedor; o vínculo obrigacional, a efetiva vontade do consumidor em adquirir produto ou serviço junto ao fornecedor que se dispõe a tal prestação; E o elemento teleológico [2] contido na expressão destinatário final, vinculando assim, para fins da incidência do CDC, somente a obrigação instituída com a finalidade de retirada do produto ou serviço do mercado, isto é, com a ocorrência da relação de consumo passa a existir o intuito precípuo por parte do primeiro de desfrutar daqueles como destinatário

1.2. O princípio da boa-fé ante as relações consumeristas

O princípio da boa-fé foi expressamente recepcionado pelo CDC em seu artigo 4º que diz:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

(...)

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

Com a inclusão expressa do princípio da boa-fé na legislação consumerista, buscou-se preencher a lacuna existente no direito pátrio, que a despeito da secular sistematização existente em países de relevante cultura jurídica como a Alemanha (BGB, art. 242), Portugal (arts. 227,239 e 762), Itália, França entre outros, não contemplou este princípio durante a realização do Código Civil vigente datado da mesma época [3]. Entretanto, conforme refere o professor Francisco José Soller de Mattos:

Ante a importância do regramento das condutas nas relações obrigacionais, verifica-se o fenômeno de que, mesmo em face da não existência, no Código Civil, de artigo de teor próximo ao § 242 do BGB, o princípio em tela mantém vigência imperativa, dando o norte ético pra todos os partícipes do vínculo jurídico, estabelecendo um elo de cooperação em face do objetivo comum avençado. [4]

Vê-se assim que, mesmo ante a negligência do legislador na recepção do princípio, a necessidade de parâmetros para a conduta dos homens frente ao direito e aos negócios jurídicos, levou a imposição, por parte da doutrina e jurisprudência, mesmo que de forma tácita, das diretrizes do referido princípio frente às disposições que norteavam as regras do Direito Civil. Desta forma, constata-se a grande relevância que a contemplação deste princípio pela legislação consumerista.

A boa-fé pode ser observada sob dois prismas: o subjetivo (guten glauben), constituindo num estado psicológico, de consciência do agente de estar agindo de acordo e sob o amparo da lei ou ainda sem ofendê-la e o objetivo (treu ud glauben) que é verificado através de dados externos ao íntimo do agente, apresentando-se, nas palavras de Clóves Couto e Silva apud Paulo Sanseverino [5]:"como um modelo ideal de conduta, que se exige de todos os integrantes da relação obrigacional (devedor e credor) na busca do correto adimplemento da obrigação, que é sua finalidade". Tendo em vista seu caráter a ausência de subjetivismos na responsabilização civil no CDC, pode-se salientar que, nas relações de consumo, existe a concentração de atenções sobre a presença da boa-fé objetiva.

A atuação da boa-fé objetiva nas relações de consumo bem como nas relações obrigacionais nas mais diversas áreas do direito, vêm servindo como um meio de valoração do comportamento dos figurantes (credor/devedor, fornecedor/consumidor) exercendo, conforme preleciona Paulo Sanseverino,

(...)múltiplas funções, desde a fase anterior a formação do vínculo, passando pela sua execução, até a fase posterior ao adimplemento da obrigação: interpretação das regras pactuadas(função interpretativa), criação de novas normas de conduta(função integrativa) e limitação dos direitos subjetivo(função de controle contra o abuso de direito). Além disso, sua função interpretativa, a boa-fé auxilia no processo de interpretação das cláusulas contratuais estipuladas no pacto. [6]

A função de limitação dos direitos subjetivos tem relevante importância, tanto em relação à boa-fé subjetiva como, e, principalmente, em relação à boa-fé objetiva, sendo um instrumento de interpretação de regras estipuladas no CDC e nos contratos pertinentes a relações por ele regidas, partindo de um modelo ideal de conduta, baseado no que se exige de todos os integrantes de uma relação contratual, qual seja o dever precípuo de honestidade na sua conduta, lealdade e probidade. A boa-fé objetiva tem, principalmente pela sua capacidade de limitação do Direito subjetivo, possibilitando frear os impulsos de má-fé na interpretação do alcance das normas legais pertinentes a relações de consumo.

Pode-se afirmar que a boa-fé objetiva exerce, nas relações de consumo, três funções primordiais: Como fonte de deveres especiais, exercendo uma função criadora de novos deveres entre as partes de uma relação de consumo, sendo chamados deveres anexos. Uma segunda função é a de concreção e interpretação dos contratos de consumo, função essencialmente interpretativa onde, a partir dos parâmetros de boa-fé objetiva, devem ser analisados todos os contratos de cunho consumerista. A terceira, e mais importante função, é a de limitação do exercício dos direitos subjetivos nas relações de consumo. Ela atua então como agente inibidor de condutas ou cláusulas abusivas, em especial por parte dos fornecedores, embora seja o objetivo do legislador, na adoção da boa-fé como a base das relações de consumo, que esta atue igualmente como limitadora das condutas e pretensões escusas de alguns consumidores, atingindo assim a harmonia e a transparência [7] nas relações de consumo.

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2 – CONCEITUAÇÃO DOS AGENTES DA RELAÇÃO DE CONSUMO E A DELIMITAÇÃO DOS SEUS DIREITOS E DEVERES

2.1.Consumidor

2.1.1 Definição

A definição de consumidor, para fins da aplicação das normas da lei 8078/90, encontra-se expressa em seu artigo 2º que dispõe:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Inicialmente, pode-se depreender do artigo acima exposto que a definição de consumidor proposta pelo legislador consumerista possui um sentido estrito, objetivando tutelar somente o consumidor final, isto é, aquele que faz uso do bem ou serviço, com fins de fruição imediata ou de utilização permanente e pessoal, e sobre o qual incidem mais intensamente os efeitos sociais e econômicos inerentes à relação de consumo.

Tendo em vista o conceito estrito de consumidor adotado pelo legislador, Marcelo Gomes [8] salienta a diferença, de suma relevância para a caracterização de consumidor para fins de aplicação da lei 8078/90, existente entre consumo e insumo (este não protegido pelo CDC), sendo determinante para tanto definir o objetivo com que o consumidor adquiriu o produto.

Diz-se que um determinado consumidor adquiriu um insumo, quando obtém adquire um produto com fins de utilizá-lo dentro de uma cadeia produtiva, isto é, quando adquirido para confecção de outro produto ou serviço objetivando de lucro. Como exemplo de insumo tem-se o exemplo do mecânico que, com o intuito de consertar um automóvel de um cliente, adquire as peças em loja especializada. Neste caso, apesar de haver uma relação de consumo em sentido lato (a efetiva compra de uma mercadoria), não há incidência da lei 8078/90, pois, conforme a definição estrita adotada pelo art. 2º do CDC, a lei protege somente o consumidor final de uma relação jurídica de consumo. O consumo, protegido pelo CDC, se dá portanto nos demais casos das relações de consumo onde o consumidor adquire um bem ou serviço com o intuito de usufruir direta ou indiretamente [9]

Ainda tratando-se da definição proposta pelo legislador de que o consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire produto ou serviço como destinatário final, Paulo Sanseverino salienta que:

A nota característica dessa definição está em definir uma pessoa (física ou jurídica) como destinatária final de um produto ou serviço para que possa ser enquadrada como consumidor.

Em vez de partir de um conceito de atos de consumo, como faz Jean Calais-Auloy, ou de uma concepção objetiva de consumidor também ligada ao momento econômico do ato de consumo, na linha de Thierry Bourgoignie, o legislador brasileiro optou por um conceito objetivo polarizado pela finalidade almejada pelo consumidor no ato de consumo (destinação final do produto ou serviço). A condição de destinatário final de um bem ou serviço constitui a principal limitação estabelecida pelo legislador para a fixação do conceito de consumidor e, conseqüentemente, para a própria incidência do CDC com lei especial

. [10]

Segundo classificação apresentada por Claudia Lima Marques [11], existem duas correntes para a classificação dos consumidores: a finalista e a maximilista. Partindo da premissa que o código busca proteger a hipossuficiência e a vulnerabilidade dos consumidores, entende os partidários da corrente finalista que a proteção do CDC só deve atingir aqueles que efetivamente adquirem um produto com o intuito de uso próprio ou de sua família, sendo necessariamente destinatário final de uma cadeia produtiva, sob pena de, em generalizando e concedendo maior abrangência na aplicação dos dispositivos consumeristas, poderia haver a diminuição da eficiência do mesmo. Argumenta-se ainda que, em aumentando a aplicabilidade do conceito de consumidor, estaria a lei 8078/90 deixando de tutelar a hipossuficiência e vulnerabilidade de uma determinada parcela da sociedade (os consumidores), passando a tratar das relações comerciais em geral, que por conseguinte já são tuteladas pela lei 556/1850, o Código Comercial, e pelo próprio Código Civil.

Em contrapartida, a corrente maximilista, graças a sua visão ampliada do conceito de consumidor presente no art. 2º do CDC, entende o mesmo como um código das relações de consumo em geral, devendo ser aplicado de forma uniforme a toda a sociedade que participa de uma relação consumerista. Passam a concentrar assim atenção da ordem jurídica no ato de adquirir o produto e não no sujeito ativo da relação de consumo (o consumidor), fazendo do produto o núcleo sobre o qual incidirão as normas consumeristas. Observada as duas correntes concluir-se que a corrente finalista possui uma estrutura mais adequada ao pensamento desenvolvido pela doutrina nacional aplicada as relações de consumo.

Depreende-se ainda na análise do conceito de consumidor proposto pelo legislador consumerista, que, além das pessoas físicas, também as pessoas jurídicas podem ser sujeito ativo para fins de aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor, isto é, estão aptas a participar das relações de consumo

na condição de consumidores, dispondo, por conseguinte, de todas as prerrogativas pertinentes à proteção do mesmo. Conforme preleciona Tupinambá do Nascimento [12], havendo a constituição e regulamentação da pessoa jurídica, bem como a real independência da sua personalidade perante a de seus membros, pode encontrar-se na posição de destinatário final numa relação consumidor/fornecedor, obtendo serviços ou produtos, como por exemplo a aquisição de utensílios para escritório, ou ainda de mão-de-obra autônoma para a reparação de equipamentos.

Ainda nos artigos 17 e 29 do CDC, tem-se uma extensão do conceito de consumidor, nos chamados consumidores por equiparação. O primeiro artigo preceitua que "Para os efeitos desta Seção, equipara-se aos consumidores todas as vítimas do evento". Segundo entendimento de Marcelo Gomes [13] os fundamentos deste artigo constituem o princípio da reparação integral dos danos sofridos pelos consumidores e a proteção daquele que realmente venha a utilizar o produto ou serviço, ou ainda daquele que é atingido pelo defeito incorporado na sua utilização por outrem, ressaltando-se assim que, faticamente, o defeito ou vício do produto pode trazer uma repercussão danosa que vá além da pessoa que a adquiriu [14].

Incluem-se ainda na qualidade de consumidores por equiparação os terceiros estranhos a relação de consumo, que ao sofrer qualquer tipo de dano originário desta, passam a gozar da ampla proteção do CDC como se consumidores fossem, para fins de ressarcimento de danos materiais e morais, dispondo de todas prerrogativas de inversão do ônus probatório e a aplicação da presunção de culpa do fornecedor ou prestador de serviço.

Marcelo Gomes [15] preleciona que:

Caso de extrema relevância, também abarcado pelo artigo 17, é o do terceiro, que nada tendo que o ligue à relação de consumo, ou seja nem adquire o bem nem utiliza, sofre um dano provocado por produto defeituoso (...) Seria o caso de uma pessoa atropelada por um carro que apresentou defeito em seus freios recém-trocados, não vindo a conseguir frear e impedir o acidente. Esse terceiro é tido como vítima do defeito de um produto, e, pelo artigo 17, considerado um consumidor, sendo protegido pela legislação."

Por fim, dispõe o artigo 29 do CDC que "para os fins deste Capítulo e do seguinte, equipara-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas." Pelas "práticas comerciais previstas" pode-se compreender como: a oferta, a publicidade, as cláusulas gerais dos contratos, as práticas comerciais abusivas, cobrança de dívidas e contratos de adesão, bancos de dados e cadastro de consumidores. Para esta equiparação, basta portanto somente que a pessoa esteja exposta às práticas citadas anteriormente, pois como salienta Antonio de Vasconcelos:

a redação (expostas às práticas) atual facilita enormemente o ataque preventivo a tais comportamentos. Uma vez que se prove que, mais cedo ou mais tarde os consumidores sofreriam a exposição, aí está materializada a necessidade da cautela. [16]

Cabe ainda salientar que, não há óbice que as equiparações previstas nos artigos 17 e 29 [17], do Código, abranjam as pessoas jurídicas e a coletividade de pessoas.

2.1.2 Direitos e deveres:

Entendem-se como direitos dos consumidores todas as disposições protetivas da Lei 8078/90, visto que toda estrutura do CDC girou em torno da efetiva proteção da hipossuficiência e vulnerabilidade dos consumidores frente as relações de consumo. Trata, contudo, no capítulo III, artigo 6º especificamente dos direitos básicos do consumidor, quais sejam:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

IX - (Vetado);

X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.

Depreende-se do artigo acima citado, então, que os direitos básicos fundamentais do consumidor referem-se à saúde e segurança, direito a informação, à proteção contra práticas comerciais desleais e abusivas, a especial proteção nos contratos de consumo; E com grande relevância, à concreta reparação dos danos sofridos por estes decorrentes de produtos ou serviços, o direito a defesa judicial proporcional a sua condição sócio-cultural e o direito a eficiência do serviço público. Tratam os demais capítulos e sessões de especificar os meios e instrumentos de proteção dos direitos fundamentais elencados no artigo 6º [18]. Como é possível observar, a lei 8078/90 trata precipuamente dos meios de defesa do consumidor considerado vulnerável e hipossuficiente frente ao mercado de consumo.

Para tanto, o legislador idealizou através do disposto no artigo 4º do CDC, uma política nacional das relações de consumo [19], que visa mitigar essa vulnerabilidade e hipossuficiência através da transparência [20] e harmonização dos

interesses dos participantes das relações de consumo com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Depreende-se daí, que o legislador idealizou a proteção do consumidor por meio de uma política das relações de consumo, isto é, através de toda uma sistemática que proporciona a eqüidade, a transparência e principalmente a harmonia dos integrantes de uma relação consumerista. Pode-se então dizer que, embora o código tenha sido criado para a defesa do consumidor, não se pode analisar as questões oriundas da relação entre consumidor e fornecedor de forma unilateral, como se os consumidores fossem sujeitos apenas de direitos, pois apesar da notória vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo permanece o caráter bilateral, obrigando ambas as partes. Desta forma conclui Marcelo Gomes que:

(...) é dever tanto do consumidor quanto do fornecedor atuarem de boa-fé em relação à parte contrária, ou seja, pautarem seus comportamentos pela correção e lealdade. Que negociem e busquem cada um melhor vantagem, mas sem utilizar-se de artifícios escusos para induzir a parte contrária em erro. [21]

Surgem daí obrigações de conduta dos consumidores, o dever de cooperação destes através de suas atitudes e comportamentos pautados nos ditames da boa-fé, do respeito e bom senso. É, portanto, dever do consumidor nas suas relações de mercado agir com lealdade, dignidade e transparência, nunca tentando se prevalecer das prerrogativas que possui enquanto parte hipossuficiente.

Além do dever de primar pela boa-fé, é possível ainda se destacar outros deveres de conduta do consumidor, os quais emanam de uma análise sistemática e abrangente do CDC, tendo sempre em vista as práticas e funções do mercado

de consumo, de modo a estabelecer um certo equilíbrio e coerência, quais sejam o dever de inteligência, dever de pesquisa, dever de educação para o consumo e de conhecimento do que está contratando, bem como do dever de ação. Pode-se dizer assim que, embora seja certo que o consumidor é a parte hipossuficiente da relação de consumo, tal qualidade não o incapacita ou funciona como impeditivo para que ele utilize todo o seu discernimento e bom senso frente a uma situação concreta.

Entende-se por dever de inteligência a capacidade de reflexão que o consumidor deve necessariamente exercitar diante dos negócios jurídicos de consumo, analisando principalmente seus prós e contras, refletindo em especial sobre suas condições pessoais e financeiras para efetiva concretização do negócio de consumo. Já o dever de pesquisa é um desdobramento da necessidade de inteligência e consiste na busca por parte do consumidor, diante da concorrência do mercado, de produto e preço que mais se adaptam a sua realidade, buscando o melhor custo/benefício na compra.

Por dever de educação para o consumo entende-se que o consumidor tem o dever de conhecer aquilo que está contratando, isto é, deve estar preparado e consciente do bem ou serviço que está na iminência de adquirir, para que desta forma, possa obter o melhor resultado, sempre tendo em vista o seu bem estar pessoal e alheio. Não obstante todos os instrumentos de proteção que a Lei lhe oferece quando tolhidos seus direitos, é preciso que o próprio consumidor procure, de todas as formas ao seu alcance, contribuir para a eficácia e melhor aproveitamento do produto ou serviço, não apenas culpando o fornecedor pela ineficiência do que se adquiriu [22], numa clara utilização errônea de suas prerrogativas de parte hipossuficiente, mas também contribuindo, na medida de sua capacidade, para a perfeita sincronia entre o que se espera do produto, ou serviço, e os resultados obtidos com a sua utilização.

Por dever de ação entende-se como uma síntese dos demais deveres acima relacionados. Consiste na responsabilidade do consumidor de não ser passivo,

submisso diante do fornecedor, devendo agir de todas as formas ao seu alcance para se proteger, bem como para contribuir com o próprio mercado de consumo, de modo a garantir práticas mais justas. A ação por parte do consumidor pode se dar, por exemplo, através da efetiva pesquisa de preços juntos a várias lojas, na exigência de esclarecimento a respeito de detalhes de produto ou serviço a serem contratados, no efetivo exercício da prerrogativa de conhecimento de forma pormenorizada, clara e objetiva das cláusulas pertinentes a contratos, bem como se o produto ou serviço contratado corresponde à sua pretensão inicial no negócio jurídico de consumo.

Obviamente que os deveres aqui expostos devem ser observados pelos consumidores sempre de acordo com a capacidade do consumidor de assimilá-los, pois, não há que se atribuir determinadas responsabilidades, ou deveres, a alguém que não está em condições de responder por eles. Assim, as exigências destes deveres estão sempre vinculadas a uma ponderação das características individuais de cada um, bem como dos aspectos que o cercam enquanto integrante de determinado grupo e camada social. O dever agir do consumidor deve-se sempre ter em vista as condições de discernimento que lhe permite o ambiente em que vive e o contexto em que está inserido, a fim de se respeitar os limites de cada consumidor.

2.2. Fornecedor

2.2.1 Conceito

Tratou também o legislador consumerista de conceituar expressamente a figura do fornecedor para fins de aplicação do CDC. Prevê então:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Nota-se que, no intuito de promover a máxima proteção ao consumidor, o conceito de fornecedor apresenta-se abrangente. Através do elenco das diversas atividades econômicas de provisão do mercado [23], nota-se a clara adoção de critério objetivo e predominantemente econômico feita pelo legislador consumerista.

Este ao especificar, na definição de fornecedor, o exercício da atividade, o código profissionalizou este conceito. Isso significa que, para a caracterização da qualidade de fornecedor, é necessário o exercício profissional habitual. Assim sendo, se alguém eventualmente, vender uma motocicleta a um terceiro e este vier a apresentar algum tipo de defeito, o comprador não poderá invocar, contra esse vendedor, as normas do CDC, pois a relação de consumo não se materializou, devido à ausência de um fornecedor previsto na forma da lei.

Importante também salientar que a qualificação de fornecedor prescinde de lucro, pois conforme assevera Marcelo Gomes:

a atuação no mercado capitalista, em regra, dá-se com o intuito de lucro, imediato ou não. Assim, mesmo quando a empresa fornece seus produtos gratuitamente, ou sob amostra grátis, caracteriza-se como se tivesse cobrado pelos produtos. [24]

Em relação ao tipo, podemos classificar os fornecedores em três espécies: o real, que é aquele que fabrica, constrói efetuando todas as atividades da cadeia produtiva de um determinado bem de consumo; O aparente, que é aquele que assume perante o consumidor o papel de fornecedor real, mesmo sem de fato sê-lo, inclusive assumindo toda responsabilidade sobre eventuais danos e prejuízos oriundos do produto [25]; e por fim temos o fornecedor presumido que é aquele que assume esta posição em razão da importação de um determinado serviço ou ainda no caso de ser impossível a identificação do fornecedor real, incluindo-se nesta espécie os importadores, os comerciantes e varejistas.

Cabe por fim ressaltar que, o art. 3º do CDC ao referir-se à pessoa jurídica de direito público, dirige-se a todos serviços prestados por empresas públicas, bem como por seus concessionários e permissionários nos mais diversos ramos da prestação de serviço, como por exemplo no fornecimento de energia elétrica e o transporte coletivo prestado mediante tarifa ou preço público fator este que caracteriza a relação de consumo e consolida sua característica de fornecedor (auferidor de lucro).

2.2.2 Direitos e deveres:

Como já foi ressaltado, o objetivo precípuo do CDC é a efetiva proteção do consumidor, através de normas que visam suprir a hipossuficiência do mesmo frente aos fornecedores portadores indiscutivelmente de melhores condições financeiras e técnicas de impor suas vontades e conveniências nos relações jurídicas de consumo. Para atingir tal objetivo, o legislador consumerista dispôs ao longo de toda a lei 8078/90 os direitos dos consumidores e conseqüentes deveres de conduta dos fornecedores para com estes. Ao mencionar, por exemplo, que é direito básico do consumidor a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços, o legislador está impondo o dever do fornecedor de praticar uma publicidade baseada na transparência, clareza e respeito na oferta e na troca de informações sobre os produtos lançados no mercado de consumo. O fornecedor tem portanto o principal dever de agir de com transparência, clareza, probidade e

lealdade nas relações de consumo, atuando sempre dentro dos ditames da lei e da boa-fé objetiva, trabalhando na busca do desenvolvimento de sua atividade dentro dos parâmetros traçados pelo legislador para a política nacional das relações de consumo.

O principal dever imposto pelo código de defesa do consumidor ao fornecedor consiste, portanto, no dever agir com honestidade e respeito na relação com o consumidor. O Código regula normas de conduta do fornecedor, [26]impondo deveres a este para que sua superioridade econômica não venha a desequilibrar as relações de consumo. Impõe, então, deveres de conduta a serem aplicados no cotidiano consumerista, tendo por base sempre a boa-fé objetiva imposta pelo legislador para reger a política nacional das relações de consumo.

O fato de o legislador regrar praticamente toda a conduta do fornecedor, relacionando e impondo inúmeros deveres a este nas relações de consumo, não significa que o legislador buscou impedir o fluxo de negociações no mercado ou diminuir o poder econômico deste ou, conforme explica Marcelo Gomes, combater o dolus bonus pois:

O dolus bonus compreende a astúcia, a sagacidade do agente de mercado valorizando seu produto e conquistando seus clientes. O dolus bonus é socialmente admitido, sendo estimulado, correspondendo ao próprio desejo de ganho, necessário à economia capitalista (...) o que se combate é o dolus malus o ganho obtido por meio de um ato ilícito, socialmente repugnável, no qual o agente não conquista seus clientes por mérito de sua atividade, mas sim por induzi-los em erro. [27]

Ainda que o código de defesa do consumidor possa parecer, em certo aspecto, uma regulamentação apenas dos direitos dos consumidores e dos respectivos deveres dos fornecedores nas relações de consumo, constam também

no ordenamento dispositivos em sentido contrário, no intuito de gerar deveres de conduta por parte dos consumidores. Através da instituição no artigo 4º do CDC da política nacional das relações de consumo, o legislador consumerista teve o escopo de promover a harmonização e a equidade dos negócios jurídicos de consumo. Tal política tem como alicerce a boa-fé objetiva [28] das partes na relação de consumo, os deveres de transparência, lealdade, probidade tanto do fornecedor como do consumidor. Por tratarem-se as relações de consumo de uma relação bilateral, as duas partes, são indistintamente obrigadas, observando os ditames da boa-fé, adotar condutas pautadas na correção e lealdade nos exercícios de seus direitos.

Isso indica que, da mesma forma como o fornecedor deve interagir nas relações de consumo baseado na boa-fé, é direito deste que a outra parte, o consumidor, atue de igual forma. Tem esse ainda a prerrogativa da aplicação das normas constantes no CDC, seja feita de forma a promover, de fato, a harmonia, a transparência e a equidade nas relações de consumo, e não unicamente como forma de proteger apenas o consumidor. É direito do fornecedor para a efetiva inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º do CDC [29], a verossimilhança das alegações dos consumidores seja analisada por parte dos operadores do direito de forma criteriosa e objetiva, evitando assim que pretensões descabidas e infundadas por parte de consumidores desprovidos de boa-fé possam vir a onerar indevidamente os fornecedores, indo de encontro com os ideais da política nacional das relações de consumo de igualdade entre consumidores e fornecedores.

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Sobre o autor
Marcos Roberto Socoowski Britto

acadêmico de Direito na Fundação Universidade Federal do Rio Grande (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITTO, Marcos Roberto Socoowski. A importância da boa-fé como norma de conduta e instrumento de harmonização entre as partes na relação de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 93, 4 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4271. Acesso em: 15 nov. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada à banca da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, como exigência parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do professor mestre Francisco José Soller de Mattos.

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