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Apontamentos sobre os delitos de perigo

27/11/2003 às 00:00
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Sumário: I. Introdução; II. Desvalor da ação e desvalor do resultado; III. Classificação clássica dos delitos de perigo; IV. Classificação moderna dos delitos de perigo; V. Conclusão.


I-Introdução

Certa feita afirmou HALSCHNER: "o perigo é filho de nossa ignorância".

Sob a perspectiva do Direito Penal, o perigo pode ser definido como a probabilidade de um evento temido.

A idéia de perigo começa a se desenvolver como critério geral de intervenção penal, tanto na argumentação dogmática como nas legislações penais mais modernas.

Neste sentido, é notória a perda do medo de se ultrapassar as barreiras da proteção penal, convertendo a punição de condutas que supõem um perigo para bens jurídicos em uma técnica comum de tutela, de modo que a intervenção punitiva aparece cada vez mais fundamentada na idéia de risco.

Atualmente o comportamento perigoso parece perfilhar-se como um modelo autônomo de tipificação penal.

O tema relativo aos delitos de perigo apresenta expressivo relevo no contexto da teoria geral do crime, vez que cresce de forma significativa sua introdução nas modernas legislações penais.

Em atenção à modalidade do ataque ao bem jurídico, a doutrina penal elabora critérios de distinção entre os delitos de lesão(dano) e os delitos de perigo.

A primeira categoria denominada delitos de lesão ou de dano, são aqueles em que o tipo penal descreve uma ação lesiva de um bem jurídico, de modo que a conduta somente assume relevância jurídico-penal quando se verificar efetivo dano(lesão) ao interesse tutelado.

Os delitos de lesão pressupõem a realização de uma conduta que destrua totalmente ou ao menos, provoque danos graves ao bem jurídico digno de tutela.

Já os delitos de perigo são aqueles que se consumam com a simples criação do perigo para o bem jurídico protegido, sem produzir dano efetivo.

Nestes, segundo a moderna doutrina penal, existe nítida exposição do bem jurídico a uma situação de risco.

Com efeito, preconiza POLAINO NAVARRETE que "en los delitos de peligro no se produce en realidad una lesión material(objetivamente apreciable) a un bien jurídico, sino que el objeto de tutela resulta precisamente protegido frente a la mera puesta en peligro que la conducta típica entraña".1


II-Desvalor da ação e desvalor do resultado

Dentro do tema dos crimes de perigo, importante uma breve referência à concepção pessoal do injusto penal, derivando disto a distinção entre um desvalor da ação e um desvalor do resultado.

O desvalor da ação é representado pelo desvalor da intenção(dolo/culpa). É a soma da infração da norma(proibida ou de cuidado) somada a criação do risco. No desvalor da ação há a probabilidade de causar o perigo ex ante.

Já o desvalor do resultado traduz-se na lesão ao bem jurídico protegido e ainda a realização do risco. Denota-se a constatação de uma situação de perigo ex post.

Neste aspecto, a doutrina elaborou duas teorias de destaque: a primeira denominada monista-subjetiva e a segunda, dualista do injusto pessoal.

Para a doutrina monista-subjetiva, considera-se que basta o desvalor da ação para a confirmação do injusto penal, ficando em geral, o desvalor do resultado relegado à categoria de condição objetiva de punibilidade.2

Referida teoria é defendida em especial por ZIELINSKI e ARMIN KAUFMANN que sustentam que para qualificar um fato como injusto penal, bastaria a análise do desvalor de ação, que se identifica com a vontade antinormativa do autor, ficando relegado o desvalor do resultado a um papel secundário, fora do injusto.

Em suma, o ilícito jurídico-penal é ilícito de ação.

Citada doutrina é criticada, sobretudo, no tocante ao fato de que implica, no fundo, em uma orientação autoritária que compatibiliza mais com um direito penal do autor do que com um direito penal do fato, ao deixar em segundo plano a valorização sobre a afetação do bem jurídico, conceito chave em um sistema penal democrático.3

De outra parte, a teoria dualista do injusto pessoal finca suas bases em duas considerações concretas: sem desvalor da ação não se tem por conformado o injusto penal e sem desvalor de resultado(lesão ou perigo para o bem jurídico), da mesma forma, não se concretiza o injusto.

Neste sentido, toda infração penal deve conter um desvalor de ação e um desvalor de resultado.

Ao tratar do tema, LUIZ REGIS PRADO assinala que "para a fundamentação completa do injusto, faz-se necessária a coincidência entre desvalor da ação e o desvalor do resultado, visto que a conduta humana só pode ser objeto de consideração do Direito Penal na totalidade de seus elementos objetivos e subjetivos".4

Em síntese, é a teoria acolhida pela maioria das modernas legislações penais, em especial no continente europeu.


III-Classificação tradicional dos delitos de perigo

No âmbito dos delitos de perigo, percebe-se uma classificação antiga ou clássica, segundo a qual, se o legislador inclui o perigo no tipo, denomina-se crime de perigo concreto.

Se por outro lado, o legislador não menciona o perigo e se da interpretação do tipo permite-se qualificá-lo como delito de perigo, a doutrina o denomina de crime de perigo abstrato.

Afirma CLAUS ROXIN que os delitos de perigo concreto requerem que no caso concreto haja produzido um perigo real para um objeto protegido pelo tipo respectivo.5

Os delitos de perigo concreto ou efetivo têm expressamente estabelecido no tipo, a necessidade de que haja provocado uma situação de perigo(resultado de perigo), a exemplo do que ocorre no delito de incêndio, tipificado no artigo 250 do CPB. Nestes delitos, o legislador via de regra, utiliza no tipo penal a expressão "perigo".

A consumação de um crime de perigo concreto requer a comprovação por parte do julgador, da proximidade do perigo ao bem jurídico e a capacidade lesiva do risco, ou segundo TORÍO LÓPEZ, "a produção de um perigo efetivo ao bem jurídico protegido pela norma penal".

Importante ainda relembrar os ensinamentos de VON LISZT, no sentido de que "o Direito Penal termina ali onde desaparece o perigo concreto".

De outra ponta, define ROXIN que delitos de perigo abstrato são aqueles em que se castiga uma conduta tipicamente perigosa como tal, sem que no caso concreto se tenha que haver produzido um resultado de colocação em perigo.6

Nesta categoria de crimes o perigo não é elemento constitutivo do tipo, senão um mero motivo do legislador, que realiza a valoração de uma presumida situação de perigo, que estima que possa derivar-se da prática de uma conduta para um determinado bem jurídico, porém sem produzir-se em realidade tal situação de perigo.

Assim, o legislador se conforma com a adequação da ação para lesionar um bem jurídico incerto, portanto não se exige seu contato com a ação do autor e nem sequer sua presença concreta no raio de ação deste.

Nesta linha de raciocínio, o perigo abstrato se configura como uma qualidade da ação determinável ex ante.

O perigo abstrato é presumido juris et de jure, vez que não precisa ser provado, contentando-se a lei com a simples prática da ação que pressupõe perigosa, a exemplo do que se observa no tipo do art. 135 do CPB (crime de omissão de socorro).

O perigo abstrato segundo ANTOLISEI é perigo presumido.

Nesta espécie de delito, a interpretação do tipo permite qualifica-lo como delito de perigo.

No âmbito desta análise, importante observação a ser feita é no sentido de que uma objeção aos crimes de perigo abstrato é que ao se presumir, prévia e abstratamente o perigo, resulta que em última análise, perigo não existe, de modo que se acaba por criminalizar a simples atividade, afrontando-se o princípio da lesividade, bem assim o caráter de extrema ratio (subsidiário) do direito penal.7

Portanto, é cediço que parte da doutrina penal aponta no sentido de que os delitos de perigo abstrato implantam problemas quanto à sua constitucionalidade.

A doutrina majoritária posiciona-se no sentido de que a diferença entre perigo abstrato e concreto é de criação legal e requer para sua determinação investigar a vontade legislativa expressada na norma do correspondente tipo penal.

Outra diferença corresponde ao fato de que nos delitos de perigo abstrato basta uma vítima potencial, já nos delitos de perigo concreto torna-se necessária a existência efetiva de uma vítima no raio de ação perigosa do autor e que esta corra um perigo real de lesão.

Por fim, ressalte-se que a doutrina sustentada por TORÍO LÓPEZ ainda apresenta uma terceira modalidade de delito de perigo, denominado "hipotético" ou "intrínseco".

Comentando sobre tal especie de delito de perigo, preleciona o Catedrático POLAINO NAVARRETE que "los denominados delitos de peligro hipotético constituyen una categoría dogmática cuya expresión terminológica y configuración dogmática en nuestra doctrina se debe a formulación de Tório López, quien entiende que determinados delitos no exigen la producción de la lesión ni del peligro del bien jurídico, pero sí la ejecución de una acción por sus características acredita una situación de objetiva peligrosidad hacia el objeto de protección de la norma, de suerte que aunque no se traduzca en la producción de un peligro concreto es en sí misma portadora de todas las características inherentes a la propia situación de peligro".8


IV-Classificação moderna dos delitos de perigo

Após uma breve análise acerca da classificação tradicional encontrada na maioria dos Tratados de Direito Penal, interessante uma menção a atual visão dos delitos de perigo na doutrina penal.

O penalista espanhol NICOLÁS GARCÍA RIVAS apresenta uma moderna classificação para os delitos de perigo.

Para citado autor, os delitos de perigo se dividem em delitos de mera ação perigosa e em delitos de resultado de perigo.9

Os delitos de mera ação perigosa, também chamados de delitos de perigosidade (periculosidade), apresentam a característica de que o perigo não se predica da ação, senão da classe de ações a que pertence a realizada pelo autor, como por exemplo, conduzir um veículo sob efeitos de bebida alcoólica.

Segundo MEYER, referidos delitos carecem do desvalor do resultado.

Assim, denota-se em tal modalidade delituosa, a assunção do risco e a inexistência do desvalor do resultado.

Não há necessidade de nenhuma prognose sobre as conseqüências da ação. Se houver exclusão do risco, a conduta é simplesmente atípica(VOLZ).

Já para identificar os delitos de resultado de perigo (Groben Strafrechtkommission), cite-se a título de exemplo, o caso de um terrorista que oculta uma bomba relógio de alta precisão em uma agência dos correios quando se encontrava aberta ao público, preparando o detonador para que a explosão ocorra quando a agência já se encontrar fechada e vazia.

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Entretanto, durante a noite penetra no local um ladrão, sendo que este permanece até por volta das 23.00 horas no interior da agência dos correios, momento em que a bomba vem a explodir, matando-o.

Existe divergência doutrinária acerca da solução do citado caso concreto.

Na visão de WELZEL, o juízo deve ser feito ex ante, no momento da ação.

Nesta hipótese, o juiz deverá formular uma prognose acerca de se perquirir se no momento em que o autor coloca a bomba, existe uma concreta colocação das pessoas em perigo. Se o perito considera que as vinte e três horas não haveria nenhum empregado na agência de correios, faltaria o perigo concreto.

De forma diferente, BOCKELMANN parte da análise de uma perspectiva ex post.

Para citado autor, a melhor solução seria fundamentar a base do julgamento ao momento em que o dispositivo da bomba se ativava e teria ocorrido a explosão, devendo considerar-se, portanto, a fortuita presença do ladrão no local, e perquirir se naquele momento(da explosão), o raio de ação da bomba poderia afetar a alguma pessoa.

A tese de BOCKELMANN além de se basear no juízo ex post, atenta-se na questão do perigo como situação causada por uma ação.

Ouso me filiar ao entendimento de HANS WELZEL, vez que a prognose a ser feita no caso em tela, obrigatoriamente deve ser ex ante, analisando-se as circunstâncias cognoscíveis, ou seja, aquelas que podem ser conhecidas pelo agente. Justifica-se esta posição, vez que ao se filiar ao entendimento de BOCKELMANN, deveriam ser analisadas todas as circunstâncias (cognoscíveis e não cognoscíveis) com relação ao perigo (perspectiva ex post), o que data venia não coaduna com a estrutura do tipo penal do delito de perigo concreto.


V-Conclusão

Após este sucinto escrito jurídico-penal versando sobre os delitos de perigo, chega-se a ilação de que referida espécie de infração penal possui significativa importância no âmago das modernas legislações penais, especialmente em face da crescente inserção na dogmática jurídico-penal da teoria da imputação objetiva, a qual se fundamenta na idéia do risco atribuído a ação perpetrada pelo agente.

A conceituação adotada pela doutrina clássica, distinguindo-se o perigo abstrato do perigo concreto possui suma relevância para uma compreensão da estrutura destes tipos penais, vez que parte da análise de duas situações distintas, qual seja, a produção ou exposição do bem jurídico ao perigo.

Definitivamente, adoto a posição de que os tipos penais de perigo abstrato até podem ser criados, porém, desde que a norma penal os descrevam de modo a não se aceitar qualquer prova contrária em relação à presunção do perigo, configurando-se como crimes de mera conduta.

Já a moderna classificação dos delitos de perigo baseada na análise do desvalor da ação (juízo ex ante) ou do desvalor do resultado(juízo ex post), leva-nos a compreensão de que os fundamentos da teoria dualista do injusto representam a exata e correta concepção do injusto penal.

Neste sentido, imprescindível a conjugação dos requisitos do desvalor da ação e do desvalor do resultado para a configuração do injusto penal.


Notas

1 Navarrete, Miguel Polaino. Derecho Penal – Parte General, Vol. I, Tomo II. Bosch: 2.000, p. 616.

2 Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo. RT: 2.000, p. 221.

3 Berdugo, Gómez de la Torre e outros. Lecciones de Derecho Penal – Parte General. La Ley: 1.999, p. 148.

4 Ibidem, p. 222.

5 Roxin, Claus. Derecho Penal – Parte General. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. Madrid. Civitas: 1.997, p. 404.

6 Ibidem, p. 407.

7 Queiroz, Paulo de Souza. Direito Penal – Introdução crítica. Saraiva: 2.001, p. 121.

8 Ob. Cit, p. 619.

9 Notas extraídas de aula proferida na Capilla do predio do Rectorado de la Universidad de Salamanca/España, em 14/01/02, por ocasião do X Curso de Postgrado en Derecho Penal.

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Sobre o autor
Flávio Cardoso Pereira

promotor de Justiça em Goiás, pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Flávio Cardoso. Apontamentos sobre os delitos de perigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 144, 27 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4545. Acesso em: 5 nov. 2024.

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