I - INTRODUÇÃO
Realizaremos através do presente trabalho, um breve estudo a respeito do contrato de gestão, uma figura nova, introduzida em nossa Constituição através da Emenda nº 19/98, mais conhecida como "Reforma Administrativa", porém já bastante conhecida e utilizada entre nós muito embora de forma defeituosa, como será demonstrado durante a nossa exposição.
Por tratar-se de tema novo, encontramos uma grande dificuldade em reunir informações acerca do Instituto, em decorrência da escassa bibliografia e jurisprudência, além da falta de sistematização normativa, uma vez que existem apenas leis esparsas, relativas a contratos firmados com entidades específicas.
Não obstante as dificuldades, traçaremos um perfil o mais aproximado possível desta nova figura, com escopo nas informações obtidas através da leitura de alguns artigos e breves capítulos de trabalhos doutrinários desenvolvidos por estudiosos do assunto, analisando o Instituto no contexto da "Reforma Administrativa" e frente ao "Princípio da Eficiência", importante avanço também introduzido pela Emenda nº 19/98.
Faremos uma breve incursão através da evolução da administração gerencial no Brasil, analisando os instrumentos normativos anteriores, até a sua introdução no § 8º do art.37 da Constituição Federal, dispositivo este que se constituirá no principal objeto de nossos estudos.
Muito embora o contrato de gestão também possa ser firmado entre o Poder Público e pessoas jurídicas de direito privado, desde que reconhecidas como organizações sociais, não foram estes casos objeto de nossas pesquisas, de modo que o presente trabalho ficará adstrito aos aspectos atinentes ao contrato de gestão quando firmado com órgãos e entidades da administração direta e indireta.
Dedicaremos especial atenção à natureza jurídica do contrato de gestão, que vem sendo objeto de extensos debates no meio jurídico nacional, trazendo à baila diversos posicionamentos doutrinários a respeito do assunto, e emitindo, ao final, nossas impressões.
2. A REFORMA ADMINISTRATIVA E O CONTRATO DE GESTÃO
2.1. O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA
Não resta dúvida de que nos encontramos no ápice de uma profunda mudança política, dentro da qual observamos claramente o "encolhimento" do Estado, como reflexo da doutrina do Estado mínimo(1), a ponto de se tornar fluente o uso da expressão "neo-liberalismo", em referência a esse momento. A adoção de tal política é consequência a uma série de fatores, dentre os quais destacamos a influência das Instituições financeiras internacionais.
Como coadjuvante a esse processo, a Administração Pública desempenha o importante papel de tornar realidade as diretrizes das opções políticas do Estado, de acordo com o plano definido pelo Poder Legislativo(2). Para tanto se faz necessário a sua modernização, a qual depende, por sua vez, de alterações normativas, face à rigidez de tratamento a que se encontra tradicionalmente submetida.
A preocupação com a modernização da Administração, entretanto, é quase universal, expressando-se, muitas vezes, como propostas de reforma administrativa. (3) Esse tema vem sendo reiterado no Brasil, como uma necessidade, uma vez que a melhoria no funcionamento da administração, tornando-a mais eficiente, ágil e rápida, para atender às necessidades da população de forma adequada, deve ser buscada continuamente.
Dentro desse panorama, que advém de uma nova filosofia, decorrente de novos acontecimentos e de novas condições econômicas, sociais e históricas, não refletidas pelo constituinte de 1988, foi editada a Emenda Constitucional nº 19/98, que veio instrumentalizar as mudanças que se apontavam como necessárias à remoção de obstáculos da Carta de 1988, à implantação plena dos postulados da Administração Gerencial.
Muito embora alguns afirmem que o objetivo da reforma administrativa, como ficou conhecida a Emenda nº19/98(4) tenha sido, preponderantemente, a reforma do regime jurídico dos servidores públicos (5), a fim de adequá-lo às novas exigências da dinâmica administrativa, a introdução no texto constitucional (caput do art. 37)" do princípio da eficiência, à semelhança do que fez o artigo 103 da Constituição espanhola (6), e já presente em nossa legislação infralegal(7), foi de importância fundamental para nortear toda a reforma do aparelhamento do Estado, marcando a tônica da Administração Gerencial.
Para Odete Medauar, o princípio da eficiência "determina que a Administração deve agir de modo rápido e preciso, para introduzir resultados que satisfaçam as necessidades da população". Esta Autora, contrapõe eficiência à lentidão, a descaso, a negligência, a omissão, ressaltando serem essas últimas, "características habituais da Administração Pública brasileira, com raras exceções." (8)
Heraldo Garcia Vitta, por sua vez, relaciona esse princípio com o da "economicidade", discorrendo sobre o que chama de "custo-benefício da atividade da Administração Pública", onde estariam inseridos os conceitos de produtividade e da qualidade do serviço prestado à população dentro do menor custo, ressaltando, que esse princípio, no entanto, não pode ser visto apenas sob o prisma econômico. (9)
O princípio da eficiência vem sendo apontado por muitos, como o "fim último do contrato de gestão" (10), representando a sua "filosofia essencial(11). Preferimos, no entanto, atribuir finalidade menos nobre a esta nova figura quando se apresente, em um dos seus pólos, as chamadas "organizações sociais", uma vez que nesses casos, acreditamos, constituem-se em um meio de efetivar, de maneira velada, o crescente processo de privatização que faz parte da atual política governamental.
Entretanto, como o objeto do nosso trabalho ficará restrito ao estudo do contrato de gestão quando celebrado entre o poder público e órgãos e entidades da administração direta e indireta, partiremos do pressuposto de que a eficiência representa, realmente, sua finalidade última, com a ressalva de que essa afirmação não se aplicaria necessariamente, aos contratos firmados com pessoas jurídicas de direito privado.
2.2. ADMINISTRAÇÃO GERENCIAL
2.2.1. BREVE INTRODUÇÃO
Historicamente, a proposta da Administração Gerencial brasileira, teve seus lineamentos básicos no "Plano Diretor da Reforma do Estado" e na obra do ex-Ministro Bresser Pereira, para quem ela se apresenta como uma "nova forma de gestão da coisa pública mais compatível com os avanços tecnológicos, mais ágil, descentralizada, mais voltada para o controle de resultados do que o controle de procedimentos, e mais compatível com o avanço da democracia em todo o mundo, que exige uma participação cada vez mais direta da sociedade na gestão pública" (12).
Para Maria Sylvia Zanella di Pietro, o contrato de gestão representa um tema em que "a aplicação prática tem antecedido o labor legislativo..." (13). Na realidade, a sua utilização já vinha acontecendo a nível infra-constitucional, inicialmente com base no Decreto nº 137, de 27 de maio de 1991, que instituiu o Programa de Gestão das Empresas Estatais, (14) e em seguida pelos Decretos 2.487 e 2.488 de 2 de fevereiro de 1998, que previam a realização do contrato com autarquias e fundações.
A Lei 9.649/98, promulgada poucos dias antes da Emenda nº 19/98, autorizou o Poder Executivo a qualificar como agência executiva a autarquia ou fundação que houvesse celebrado contrato de gestão com o respectivo ministério supervisor, para o fim de cumprir objetivos e metas com este acertados.
Na opinião da pré-citada Autora, que expôs o tema com objetividade e clareza, embora tais decretos estivessem em vigor, não tinham eles o condão de ampliar a autonomia dessas entidades, posto que entrariam em confronto com normas legais e constitucionais.
O art. 4º do Decreto 2.487/98, e.g., no seu inciso IV, prevê que o contrato de gestão conterá as "medidas legais e administrativas a serem adotadas pelos signatários e partes intervenientes com a finalidade de assegurar maior autonomia de gestão orçamentária, financeira, operacional e administrativa e a disponibilidade de recursos orçamentários e financeiros imprescindíveis ao cumprimento dos objetivos e metas." Este dispositivo possibilita ao contrato de gestão, ampliar a autonomia de autarquias e fundações, ditando "medidas legais", o que vai de encontro ao ordenamento jurídico vigente.
Atendendo parcialmente a essa necessidade, é que foi promulgada a Emenda Constitucional nº19/98, alterando o § 8º do art. 37 da Constituição Federal, transcrito em nota de rodapé (15). Muito embora este dispositivo, não se refira expressamente ao contrato de gestão, para Maria Sylvia Zanella di Pietro, é a ele que, na realidade, estava a se referir. (16)
2.2.2. OBJETIVO. DINÂMICA CONTRATUAL. PARTES.
A Emenda nº 19/98 parece traduzir em nosso Ordenamento Jurídico, o Estado do próximo milênio idealizado por Massimo Giannini, o qual deverá ser "estruturado no sentido da atenuação dos aspectos mais autoritários da Administração Pública e da extrema valorização da participação, do consenso e da interação entre os mais diversificados centros de decisão individuais e coletivos da sociedade". (17)
Ela vem emprestar suporte jurídico àqueles contratos ampliadores da "competência administrativa e financeira dos órgãos públicos" (18) e também das entidades da administração indireta, anteriormente fundamentados em Decretos.
Na opinião de Caio Tácito, o atual programa de reforma administrativa do governo continua, no entanto, a se utilizar de uma política descentralizadora de poderes administrativos, agora com uma nova tônica, que "se faz acompanhar de um mecanismo específico de planejamento e, especialmente, de controle de resultados efetivos". (19)
Jessé Torres Pereira Júnior, em comentários ao contrato de gestão, ressalta o seu "propósito ainda enevoado", que parece ser o de delegar às agências executivas (autarquias e fundações públicas assim reconhecidas), "o poder regulamentar e fiscalizatório do Estado sobre a execução da prestação de serviços públicos essenciais, notadamente em atividades de infra-estrutura ou de exercício das profissões, desvinculando as autarquias e fundações executivas de laços funcionais e hierárquicos com o Estado".
Continuando, este Autor afirma tratar-se de campo novíssimo na experiência administrativa internacional, conhecida como "regulática", da qual decorre a abstenção crescente do Estado da execução, que delega ou entrega a terceiros, mantendo para si apenas a tarefa de fiscalizar e regular. (20) Seria então um claro reflexo da "minimização" do Estado.
Os contratos de Gestão podem ser realizados com entes da administração pública indireta (autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas públicas(21)), órgãos da administração pública direta e com pessoas jurídicas de direito privado, qualificadas como "organizações sociais". Entretanto, como já esclarecido, o presente trabalho abordará apenas aspectos atinentes aos contratos firmados entre a Administração Pública e as "agências executivas", nomem juris pelo qual ingressam no contrato as primeiras referidas.
Na concepção de Maria Sylvia Zanella di Pietro, o objetivo desses contratos é conceder maior autonomia a órgãos e entidades da Administração, permitindo a consecução de metas a serem atingidas no prazo do contrato, o qual deverá "prever um controle de resultados que irá orientar a Administração Pública quanto à conveniência ou não de manter, rescindir ou alterar o contrato". (22)
Os contratos inseridos nesta modalidade contratual, quando firmados entre a Administração central e as empresas públicas, têm o objetivo de compatibilizar a atuação de tais entes com os planos nacionais, condizentes com a política de governo.
Essa maior autonomia tem como contrapartida a exigência da consecução de metas previamente estabelecidas através do contrato, que terá como conteúdo mínimo a forma como a autonomia será exercida, as metas a serem cumpridas pelo órgão ou entidade no prazo estabelecido no contrato e o controle de resultado.
3. AGÊNCIAS EXECUTIVAS
Ao lado da política de privatização das atividades econômicas do Estado, a Administração direta, através de dois modelos de autarquias especiais, as Agências Reguladoras e as Agências Executivas(23), inauguram a "autonomia operacional" em nosso Estado. Sobre essas últimas nos ocuparemos nas próximas linhas.
Para Francisco Cavalcanti, a importação da figura da agência, demonstra claramente a influência dos modelos norte americano e inglês no perfil do novo modelo de Administração. De acordo com o pré-citado autor, Estados como a França, Itália e demais Estados da Europa ocidental, também vêm aderindo a esse instituto. (24)
Caio Tácito, por sua vez, após discorrer rapidamente sobre características do que chama de "órgãos autônomos" no direito comparado, ressalta que "o atual Plano Diretor da Reforma brasileira não exibe, porém, submissão a qualquer destes paradigmas internacionais", possuindo características próprias. Em sua definição, "Agências Executivas são órgãos internos que representam um processo de desconcentração: são entes voltados para dentro da Administração". (25)
A Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, em seu artigo 5º estabelece, para o Poder Executivo federal, os requisitos a serem cumpridos pela autarquia ou fundação, a fim de receber a qualificação de agência executiva, por ato do Presidente da República. São requisitos: ter um plano estratégico de reestruturação e de desenvolvimento institucional, voltado para a melhoria da qualidade da gestão e para a redução de custos, já concluído ou em andamento e ter celebrado contrato de gestão com o respectivo Ministério supervisor.
No contrato firmado deverão estar definidas "as metas a serem atingidas, a compatibilidade dos planos anuais como orçamento da entidade, os meios necessários à consecução, as medidas legais e administrativas a serem adotadas para assegurar maior autonomia de gestão orçamentária, financeira e administrativa, as penalidades aplicáveis em caso de descumprimento das metas, as condições para revisão, renovação e rescisão, a vigência." Após a firmação do contrato, o reconhecimento como agência executiva se dará por Decreto. (26) Esta qualificação implica no reconhecimento de um regime jurídico especial, que confere tratamento diferenciado a fundação e a autarquia, sobretudo quanto à autonomia de gestão . (27)
4. NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE GESTÃO
4.1. BREVES CONSIDERAÇÕES
Nos primórdios do século XX, havia uma grande dificuldade em se admitir que a Administração pudesse realizar contratos com o particular, uma vez que o contrato pressupunha, na concepção clássica, de direito privado, igualdade jurídica entre as partes. Na Itália, com Alessi e outros anti-contratualistas, em decorrência dessa obrigatoriedade de igualdade, admitia-se que os contratos de direito público poderiam ser firmados apenas entre entidades públicas. (28)
Em um momento posterior, firmou-se a possibilidade da realização de contrato entre a Administração Pública e particulares, incorporando-se a teoria de um contrato diferenciado do modelo privado, com regime jurídico próprio(29), separando-se de preceitos tradicionais da teoria do contrato privado, como a igualdade entre as partes e a intangibilidade da vontade inicial das mesmas. Foi com essas linhas básicas que esse contrato difundiu-se na Europa ocidental continental e pela América latina, inclusive o Brasil, permanecendo praticamente inalterado até início dos anos 70 (30).
Nas últimas décadas, entretanto, face ao crescente processo de privatização e descentralização que faz parte da atual política de governo, observamos claramente o retorno da preocupação com os contratos de direito público, que têm traduzido a tendência atual à diminuição da potestade estatal, com abrandamento de suas regras rígidas e a concessão de uma maior autonomia a suas entidades e órgãos, que passam a desempenhar suas atribuições com maior desenvoltura.
Ao lado dessa política, a multiplicidade de decisões que devem ser tomadas pela Administração nos dias atuais, impõe a "harmonização pactuada" da ação pública, exposta e defendida por Massimo Severo Giannini. (31)
Para a consecução de tais objetivos, os modelos contratuais estabelecidos estão vivendo mudanças, ao mesmo tempo em que vem sendo criadas novas figuras. A teoria clássica vem se deparando com o surgimento de atuações administrativas instrumentalizadas por módulos decorrentes de acordo, consenso e parceria, a exemplo do contrato de gestão. Esse novo instituto tem suscitado várias dúvidas, sobretudo no que diz respeito a sua natureza jurídica, face as peculiaridades do seu regime jurídico, certamente de natureza especial, um tanto híbrido, mutante como o momento histórico no qual se insere.
Nas perquirições a cerca da natureza jurídica do "contrato" de gestão, objeto de debate entre doutrinadores e estudiosos do tema, vem a tona de imediato, a seguinte indagação: será o contrato de gestão realmente um contrato? Em sendo contrato, a que regime jurídico encontra-se submetido? Os recentes trabalhos aos quais tivemos acesso, contêm diversas críticas ao instituto, sobretudo no que diz respeito a sua natureza contratual, conforme veremos adiante.
4.2. POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS
Contra a natureza contratual do contrato de gestão, Maria Sylvia di Pietro argumenta que, dificilmente, estarão presentes as características típicas de um contrato, quando firmados entre órgãos da Administração direta, tendo em vista não serem estes, dotados de personalidade jurídica, atuando apenas em nome da pessoa jurídica em que estão integrados. Tais contratos, na realidade, seriam firmados entre representantes da mesma pessoa jurídica. Argumenta que não há que se falar em oposição de interesses entre essas pessoas, de modo a estarmos diante, nesses casos, de "termos de compromissos" assumidos pelos dirigentes dos órgãos.
A pré-citada autora desenvolve raciocínio semelhante com relação aos contratos firmados entre o Poder Público e entidades da Administração Indireta, ressaltando que também entre esses, não poderia haver a existência de interesses opostos e contraditórios, "uma das características presentes nos contratos em geral". Acredita que esses contratos se assemelhariam muito mais a convênios. (32)
Alice Gonzalez Borges ressalta o fato de que todo o conjunto do nosso ordenamento jurídico-constitucional, entende que o contrato pressupõe um "acordo de vontades ditadas por interesses opostos e recíprocos"(grifos nossos), o que conceitualmente não poderia ocorrer entre a Administração direta e suas entidades e órgãos ou entre esses. Afirma, entretanto, que através da leitura do dispositivo constitucional, identifica-se as características do contrato de gestão ou do acordo-programa, termo pelo qual é também conhecido.
Para esta Autora, o contrato de gestão no que diz respeito às entidades públicas descentralizadas, deverá ser entendido como "uma forma especial, mais ampliada, do velho controle administrativo que se chama supervisão ministerial, previsto no Dec.-Lei 200/67, em seus arts. 19 e 26".
Já com relação aos órgãos da administração direta, acredita que é possível a compreensão do dispositivo da Emenda, se os entendermos como os antigos "órgãos autônomos da administração centralizada" que, segundo ela, sempre tiveram maior flexibilidade e autonomia de atuação. Ressalta que, nesse caso, seria ainda mais difícil reconhecer-se a existência de um contrato, posto não serem dotados de personalidade jurídica. [33]
Heraldo Garcia Vitta, em uma crítica mais severa, não à natureza contratual em si, mas a impropriedade de sua utilização, ressalta que a concessão de maior autonomia aos órgãos e entidades da administração por meio de contrato, não reflete o princípio da legalidade que lastreia todo o agir da Administração, alertando para o fato de que "com isso estaríamos possibilitando caminho tortuoso da modificação da competência gerencial, orçamentária e financeira por meio de instrumento jurídico diferente da Lei".
Este Autor, também questiona a possibilidade de existir contrato entre o poder público e seus administradores, uma vez que os órgãos públicos são apenas centros de competência, sem personalidade jurídica. Ressalta ainda que a hierarquia existente na Administração Pública bastaria para a consecução do interesse público, baseado na lei. Acusa o §8º do art. 37, que introduz a figura do contrato, de "abrir uma exceção constitucional ao princípio da legalidade". Entretanto, lembra que o dispositivo constitucional deverá ser interpretado de forma sistêmica, de modo que todos os demais dispositivos reguladores deverão ser observados na realização do contrato. (34)
Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a denominação "contrato" não é "feliz", uma vez que não existem prestações recíprocas nem interesses antagônicos a serem opostos que pudessem caracterizar um contrato. Para ele, trata-se apenas de "um simples acordo, em que se programa uma atuação conjunta, visando a idênticos resultados de interesse comum." Defende o uso da denominação "acordos de programas" , que seriam os pactos em que dois ou mais sujeitos públicos, disporiam sobre regras de atribuição de poder. (35)
Neste ponto, torna-se oportuno lembrar que o sistema para a configuração do contrato é o numerus apertus, o que prescinde do seu ajustamento a tipos prefixados, diferentemente da tipicidade romana, que impunha o sistema numerus clausus, isto é, a prévia fixação das figuras contratuais. Dessa forma, o vigente sistema converte o contrato em figura geral ou categoria genérica, cuja abrangência se demarca pelos próprios elementos que o configuram, (36) de modo que a ausência no contrato de gestão, de um dos pressupostos contratuais clássicos (ou a mais de um), não o retira da categoria.
4.3. NOSSOS COMENTÁRIOS
Podemos observar que na opinião de três Autores acima comentados, a falta de capacidade jurídica dos órgãos da Administração Pública, constitui-se em um forte entrave a aceitação da natureza contratual do contrato de gestão, quando firmados com estes "centros de competência", seja pela própria ausência do requisito(37), seja em sua decorrência, posto que implica na identidade entre os contratantes (mesma pessoa jurídica), o que torna impossível a oposição de interesses. Esta última afirmação também se estende às entidades da Administração indireta contratantes.
Quanto aos aspectos acima suscitados, lembramos o que já foi exaustivamente afirmado a cerca das significativas alterações políticas e sociais que estamos a atravessar. Para adequarem-se a esse momento, os modelos contratuais estabelecidos vêm passando por significativas mudanças, notadas entre os escritores, em debate internacional.
De acordo com Thomas Wilhelmsson, cinco são as características essenciais dessas mudanças, dentre as quais a alteração do antagonismo, presente no direito contratual tradicional, que se transmuda para a "co-operação" entre as partes. Dessa forma, o contrato é visto mais como "forma e ferramenta de cooperação, como o objetivo de atingir resultados de acordo com os propósitos do contrato." (38)
Em paralelo, a exigência de capacidade para a firmação do contrato, já vem sendo mitigada ao longo do tempo, em decorrência da própria realidade social. O menor que compra revistas nas bancas de jornais, não obstante a sua incapacidade, realiza contrato de compra e venda, o mesmo ocorrendo com relação ao débil-mental que, ao adquirir uma passagem de ônibus, realiza contrato de transporte. Seriam os "contratos de fato".
Ao mesmo tempo, os contratos quando firmados entre órgãos, ou entre esses e a Administração direta, são feitos nas pessoas de seus dirigentes, esses dotados de personalidade jurídica, que se obrigam a cumprir metas em troca de maior autonomia. Acreditamos que a dificuldade desses contratos encontra-se não em sua natureza contratual, posto que de contrato se trata, mas na dimensão da responsabilidade que é imputada a esses dirigentes.
Não se trata de outra forma de controle ministerial, como afirmam alguns, posto que o controle não pressupõe nenhuma contraprestação ao cumprimento das metas pré-estabelecidas. É característica fundamental do contrato de gestão a concessão de maior autonomia à entidade ou órgão contratante, que passa a agir de forma mais independente, contemplada por tratamento diferenciado com relação ao cumprimento de alguns normas de direito administrativo, o que de forma alguma se aplica ao controle. Além do mais, esse contrato poderá ser alterado ou rescindido pela Administração Pública, em função do resultado obtido.
Seguindo as linhas mestras traçadas por Odete Medauar, os contratos administrativos clássicos como os novos tipos contratuais, enquadram-se num "módulo contratual", que se torna possível à medida que deixamos de lado a concepção restrita de contrato vigente no século XIX, para retomar a idéia vigente na Grécia clássica e no Direito Romano mais antigo, baseados no contrato como "intercâmbio de bens e prestações", regido pelo direito.
Esta Autora afirma que, na doutrina, esse é o entendimento do chileno Soto Kloss, dos franceses Prosper Weil e René Chapus, dos italianos Giannini e Ferrara, que atribuem natureza contratual a esses novos tipos de ajustes os quais, entretanto, não seriam entendidos como tais, pelas concepções dominantes no século XX.
Dessa forma, encontramos atualmente, no plano da Administração os contratos administrativos clássicos, regidos inteiramente pelo Direito Público, os contratos regidos parcialmente pelo Direito Privado e as novas figuras contratuais, decorrentes do consenso, do acordo, cooperação e parceria entre órgãos e entidades estatais, como novos tipos de ajuste, com moldes que não se enquadram nem ao padrão clássico, nem ao padrão teórico do século XIX. (39),apresentando um regime jurídico essencialmente público, mas diferente do regime aplicado aos contratos tradicionais. Nessa última categoria estão incluídos os contratos de gestão.