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Constitucionalização do Direito Civil

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01/07/1999 às 00:00
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1. O aparente paradoxo: a constitucionalização do direito civil

O direito civil, ao longo de sua história no mundo romano-germânico, sempre foi identificado como o locus normativo privilegiado do indivíduo, enquanto tal. Nenhum ramo do direito era mais distante do direito constitucional do que ele. Em contraposição à constituição política, era cogitado como constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação liberal.

Sua lenta elaboração vem perpassando a história do direito romano-germânico há mais de dois mil anos, parecendo infenso às mutações sociais, políticas e econômicas, às vezes cruentas, com que conviveu. Parecia que as relações jurídicas interpessoais, particularmente o direito das obrigações, não seriam afetadas pelas vicissitudes históricas, permanecendo válidos os princípios e regras imemoriais, pouco importando que tipo de constituição política fosse adotada.

Os estudos mais recentes dos civilistas têm demonstrado a falácia dessa visão estática, atemporal e desideologizada do direito civil. Não se trata, apenas, de estabelecer a necessária interlocução entre os variados saberes jurídicos, com ênfase entre o direito privado e o direito público, concebida como interdisciplinaridade interna. Pretende-se não apenas investigar a inserção do direito civil na Constituição jurídico-positiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos.

Na atualidade, não se cuida de buscar a demarcação dos espaços distintos e até contrapostos. Antes havia a disjunção; hoje, a unidade hermenêutica, tendo a Constituição como ápice conformador da elaboração e aplicação da legislação civil. A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição, segundo o Código, como ocorria com freqüência (e ainda ocorre).

A mudança de atitude também envolve uma certa dose de humildade epistemológica. O direito civil sempre forneceu as categorias, os conceitos e classificações que serviram para a consolidação dos vários ramos do direito público, inclusive o constitucional, em virtude de sua mais antiga evolução (o constitucionalismo e os direitos públicos são mais recentes, não alcançando um décimo do tempo histórico do direito civil). Agora, ladeia os demais na mesma sujeição aos valores, princípios e normas consagrados na Constituição. Daí a necessidade que sentem os civilistas do manejo das categorias fundamentais da Constituição. Sem elas, a interpretação do Código e das leis civis desvia-se de seu correto significado.

Diz-se, com certa dose de exagero, que o direito privado passou a ser o direito constitucional aplicado, pois nele se detecta o projeto de vida em comum que a Constituição impõe (1).

Pode afirmar-se que a constitucionalização é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional.


2. Publicização e constitucionalização: uma distinção necessária

Durante muito tempo, cogitou-se de publicização do direito civil, que para muitos teria o mesmo significado de constitucionalização. Todavia, são situações distintas. A denominada publicização compreende o processo de crescente intervenção estatal, especialmente no âmbito legislativo, característica do Estado Social do Século XX. Tem-se a redução do espaço de autonomia privada, para a garantia da tutela jurídica dos mais fracos. A ação intervencionista ou dirigista do legislador terminou por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos transformadas em ramos autônomos, como o direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito de locação de imóveis urbanos, o estatuto da criança e do adolescente, os direitos autorais, o direito do consumidor.

Se se entende como publicização a submissão dessas matérias ao âmbito do direito público, então é incorreto tal enquadramento. O fato de haver mais ou menos normas cogentes não elimina a natureza originária da relação jurídica privada, vale dizer, da relação que se dá entre titulares de direitos formalmente iguais; não é este o campo próprio do direito público. É certo que o Estado social eliminou o critério de distinção tradicional, a saber, o interesse; o interesse público não é necessariamente o interesse social e os interesses públicos e privados podem estar embaralhados, tanto no que se considerava direito público, quanto no direito privado.

Muitos propugnam pela superação da velha dicotomia, que resiste à falta de outra mais convincente e mantém sua utilidade no plano didático. Os arautos de seu desaparecimento têm em mente o grau de intervenção do Estado (legislador ou juiz) em certas relações, para considerá-las publicizadas. No Estado social (welfare state) todos os temas sociais juridicamente relevantes foram constitucionalizados. O Estado social caracteriza-se exatamente por controlar e intervir em setores da vida privada, antes interditados à ação pública pelas constituições liberais. No Estado social, portanto, não é o grau de intervenção legislativa, ou de controle do espaço privado, que gera a natureza de direito público. O mais privado dos direitos, o direito civil, está inserido essencialmente na Constituição de 1988 (atividade negocial, família, sucessões, propriedade). Se fosse esse o critério, então inexistiria direito privado.

Independentemente do grau de intervenção estatal, se o exercício do direito se dá por particular em face de outro particular, ou quando o Estado se relaciona paritariamente com o particular sem se valer de seu império, então o direito é privado.

Em suma, para fazer sentido, a publicização deve ser entendida como o processo de intervenção legislativa infraconstitucional, ao passo que a constitucionalização tem por fito submeter o direito positivo aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos. Enquanto o primeiro fenômeno é de discutível pertinência, o segundo é imprescindível para a compreensão do moderno direito civil.


3. As etapas do constitucionalismo e a evolução contemporânea do direito civil. Codificação

O constitucionalismo e a codificação (especialmente os códigos civis) são contemporâneos do advento do Estado Liberal e da afirmação do individualismo jurídico. Cada um cumpriu seu papel: um, o de limitar profundamente o Estado e o poder político (Constituição), a outra, o de assegurar o mais amplo espaço de autonomia aos indivíduos, nomeadamente no campo econômico (codificação).

Os códigos civis tiveram como paradigma o cidadão dotado de patrimônio, vale dizer, o burguês livre do controle ou impedimento públicos. Neste sentido é que entenderam o homem comum, deixando a grande maioria fora de seu alcance. Para os iluministas, a plenitude da pessoa dava-se com o domínio sobre as coisas, com o ser proprietário. A liberdade dos modernos, ao contrário dos antigos (2), é concebida como não impedimento. Livre é quem pode deter, gozar e dispor de sua propriedade, sem impedimentos, salvo os ditados pela ordem pública e os bons costumes, sem interferência do Estado.

As primeiras constituições, portanto, nada regularam sobre as relações privadas, cumprindo sua função de delimitação do Estado mínimo. Ao Estado coube apenas estabelecer as regras do jogo das liberdades privadas, no plano infraconstitucional, de sujeitos de direitos formalmente iguais, abstraídos de suas desigualdades reais. Consumou-se o darwinismo jurídico, com a hegemonia dos economicamente mais fortes, sem qualquer espaço para a justiça social. Como a dura lição da história demonstrou, a codificação liberal e a ausência da constituição econômica serviram de instrumento de exploração dos mais fracos pelos mais fortes, gerando reações e conflitos que redundaram no advento do Estado Social.

Em verdade, houve duas etapas na evolução do movimento liberal e do Estado liberal: a primeira, a da conquista da liberdade; a segunda, a da exploração da liberdade (3).

Como legado do Estado liberal, a liberdade e a igualdade jurídicas, apesar de formais, incorporaram-se ao catálogo de direitos das pessoas humanas, e não apenas dos sujeitos de relações jurídicas, e nenhuma ordem jurídica democrática pode delas abrir mão. Os Códigos cristalizaram a igualdade formal de direitos subjetivos, rompendo a estrutura estamental fundada no jus privilegium, nos locais reservados às pessoas em razão de suas origens.


4. Inserção do direito civil no Estado social

O Estado social, no plano do direito, é todo aquele que tem incluída na Constituição a regulação da ordem econômica e social. Além da limitação ao poder político, limita-se o poder econômico e projeta-se para além dos indivíduos a tutela dos direitos, incluindo o trabalho, a educação, a cultura, a saúde, a seguridade social, o meio ambiente, todos com inegáveis reflexos nas dimensões materiais do direito civil.

A ideologia do social, traduzida em valores de justiça social ou distributiva, passou a dominar o cenário constitucional do século XX. A sociedade exige o acesso aos bens e serviços produzidos pela economia. Firmou-se a communis opinio de que a solidez do poder residiria, substancialmente, no econômico e, relativamente, no político. Daí a inafastável atuação do Estado, para fazer prevalecer o interesse coletivo, evitar os abusos e garantir o espaço público de afirmação da dignidade humana. Nem mesmo a onda de neoliberalismo e globalização, que agitou o último quartel do século, abalou os alicerces do Estado social, permanecendo cada vez mais forte a necessidade da ordem econômica e social, inclusive com o advento de direitos tutelares de novas dimensões da cidadania, a exemplo da legislação de proteção do consumidor.

Enquanto o Estado e a sociedade mudaram, alterando substancialmente a Constituição, os códigos civis continuaram ideologicamente ancorados no Estado liberal, persistindo na hegemonia ultrapassada dos valores patrimoniais e do individualismo jurídico.


5. Descodificação do direito civil

Enquanto perduraram as condições de sobrevivência do Estado liberal, principalmente no século XIX (no Brasil, até à Constituição social de 1934), os códigos civis desempenharam funções relevantes que os mantiveram como o núcleo do direito positivo. Para Francisco Amaral (4), que perfilha a tese da descodificação, o conjunto de valores e idéias que formaram o caldo de cultura dos grandes códigos encontra-se superado, nomeadamente suas funções políticas, filosóficas e técnicas.

Desaparecendo essas funções prestantes, os códigos tornaram-se obsoletos e constituem óbices ao desenvolvimento do direito civil. Com efeito, a incompatibilidade do Código Civil com a ideologia constitucionalmente estabelecida não recomenda sua continuidade. A complexidade da vida contemporânea, por outro lado, não condiz com a rigidez de suas regras, sendo exigente de minicodificações multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do direito civil. São dessa natureza os novos direitos, como o direito do consumidor, o direito do meio ambiente, o direito da criança e do adolescente.

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A revolução industrial, os movimentos sociais, as ideologias em confronto, a massificação social, a revolução tecnológica, constituíram-se em arenas de exigências de liberdade e igualdades materiais e de emersão de novos direitos, para o que a codificação se apresentou inadequada.

O direito de família, como parte da codificação civil, sofreu essas vicissitudes, em grau mais agudo. A mulher foi a grande ausente na codificação. As liberdades e igualdades formais a ela não chegaram, permanecendo a codificação, no direito de família, em fase pré-iluminista. Nas grandes codificações do século passado (e a concepção de nosso Código Civil é oitocentista), o filho é protegido sobretudo na medida de seus interesses patrimoniais e o matrimônio revela muito mais uma união de bens que de pessoas (5).

Proliferaram na década de setenta deste Século, e daí em diante, as legislações sobre relações originariamente civis caracterzadas pela multidisciplinaridade, rompendo a peculiar concentração legal de matérias comuns e de mesma natureza dos códigos. Nelas, ocorre o oposto: a conjunção de vários ramos do direito, no mesmo diploma legal, para disciplinar matéria específica, não se podendo integrar a determinado código monotemático. Utilizam-se instrumentos legais mais dinâmicos, mais leves e menos cristalizados que os códigos – embora, às vezes, sejam denominados "códigos", em homenagem à tradição, a exemplo do código do consumidor – dotados de natureza multidisiciplinar. A variedade de problemas que envolve o trato legal dessas matérias não pode estar subsumida nas codificações tradicionais, pois, quase sempre, além das relações civis, reclamam o disciplinamento integrado e concomitante de variáveis processuais, administrativas e penais. Por outro lado, esses novos direitos são informados necessariamente de dados atualmente irrefutáveis de vários ramos das ciências ou da ética.


6. Tradição patrimonialista do direito civil e as tendências de repersonalização

A codificação civil liberal tinha, como valor necessário da realização da pessoa, a propriedade, em torno da qual gravitavam os demais interesses privados, juridicamente tutelados. O patrimônio, o domínio incontrastável sobre os bens, inclusive em face do arbítrio dos mandatários do poder político, realizava a pessoa humana (6).

É certo que as relações civis têm um forte cunho patrimonializante, bastando recordar que seus principais institutos são a propriedade e o contrato (modo de circulação da propriedade). Todavia, a prevalência do patrimônio, como valor individual a ser tutelado nos códigos, submergiu a pessoa humana, que passou a figurar como pólo de relação jurídica, como sujeito abstraído de sua dimensão real.

A patrimonialização das relações civis, que persiste nos códigos, é incompatível com os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotado pelas Constituições modernas, inclusive pela brasileira (artigo 1º, III). A repersonalização reencontra a trajetória da longa história da emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil, passando o patrimônio ao papel de coadjuvante, nem sempre necessário.

Até mesmo o mais pessoal dos direitos civis, o direito de família, é marcado pelo predomínio do conteúdo patrimonializante, nos códigos. No Código Civil Brasileiro de 1916, por exemplo, dos 290 artigos do Livro de Família, em 151 o interesse patrimonial passou à frente. Como exemplo, o direito assistencial da tutela, curatela e da ausência constitui estatuto legal de administração de bens, em que as pessoas dos supostos destinatários não pesam. Na curatela do pródigo, a prodigalidade é negada e a avareza é premiada. A desigualdade dos filhos não era inspirada na proteção de suas pessoas, mas do patrimônio familiar. A maior parte dos impedimentos matrimoniais não têm as pessoas, mas seus patrimônios, como valor adotado.

O desafio que se coloca aos civilistas é a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão ontológica e, através dela, seu patrimônio. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais.

Orlando de Carvalho (7) julga oportuna a repersonalização de todo o direito civil – seja qual for o envólucro em que esse direito se contenha – isto é, a acentuação de sua raiz antropocêntrica, da sua ligação visceral com a pessoa e os seus direitos. É essa valorização do poder jurisgênico do homem comum, é esta centralização em torno do homem e dos interesses imediatos que faz o direito civil, para esse autor, o foyer da pessoa, do cidadão mediano, do cidadão puro e simples.


7. Natureza das normas e princípios constitucionais, relacionados ao direito civil

De um modo geral, a doutrina passou a entender que os princípios constitucionais são auto-executáveis. Todavia, as lições contidas nos manuais e cursos de direito civil permanecem reproduzindo as noções relativas a artigos que restaram com eles incompatibilizados.

Após algumas vacilações iniciais, prevaleceu no Supremo Tribunal Federal a tese, a meu ver acertada, da revogação das normas infraconstitucionais anteriores que sejam incompatíveis com as normas e princípios da Constituição, quando ela entrou em vigor (8).

No caso do direito de família, os preceitos da Constituição que impõem a igualdade entre homem e mulher e entre os cônjuges são auto-executáveis e bastantes em si. Todas normas que instituíram direitos e deveres diferenciados entre os cônjuges restaram revogados integralmente. Apenas deste modo, o intérprete não invade o campo próprio do legislador, evitando expandir direitos antes atribuídos apenas ao marido ou à mulher.

Ante a eficácia plena das normas e princípios constitucionais que fundamentam as relações civis, apesar de seus enunciados genéricos, é inadequada a interpretação conforme à Constituição, da legislação civil anterior com ela incompatível, porque este princípio de hermenêutica constitucional deriva da presunção de constitucionalidade da lei. Em face da orientação que prevaleceu no STF, não se trata de juízo de constitucionalidade mas de revogação das normas infraconstitucionais anteriores, o que afasta a sobrevivência ou aproveitamento de qualquer de seus efeitos.

As considerações gerais até aqui expostas são melhor especificadas nos três institutos principais do direito civil, a saber, a família, a propriedade e o contrato, ressaltando o conteúdo que passaram a ostentar, a partir dos fundamentos constitucionais.


8. Fontes constitucionais do direito de família

Penso que a característica fundante da família atual é a afetividade. As Constituições liberais sempre atribuíram à família o papel de célula básica do Estado. As declarações de direito, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em sinal dos tempos, preferiram vinculá-la à sociedade (Art. 16.3: "A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade ..."; na Constituição brasileira, art. 226: "A família, base da sociedade, ..."), como reconhecimento da perda histórica de sua função política. A função política despontava na família patriarcal, cujos fortes traços marcaram a cena histórica brasileira, da Colônia às primeiras décadas deste Século. Em obras clássicas, vários pensadores (9) assinalaram este instigante traço da formação do homem brasileiro, ao demonstrar que a religião e o patrimônio doméstico se colocaram como irremovíveis obstáculos ao sentimento coletivo de res publica. Por trás da família, estavam a religião e o patrimônio, em hostilidade permanente ao Estado, apenas tolerado como instrumento de interesses particulares. Em suma, o público era (e ainda é, infelizmente) pensado como projeção do espaço privado-familiar.

A família atual brasileira desmente essa tradição centenária. Relativizou-se sua função procracional. Desapareceram suas funções política, econômica e religiosa, para as quais era necessária a origem biológica. Hoje, a família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. Sendo assim, é exigente de tutela jurídica mínima, que respeite a liberdade de constituição, convivência e dissolução; a auto-responsabilidade; a igualdade irrestrita de direitos, embora com reconhecimento das diferenças naturais e culturais entre os gêneros; a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, como pessoas em formação; o forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. Em trabalho que dediquei ao assunto, denominei esse fenômeno de repersonalização das relações familiares (10). É o salto, à frente, da pessoa humana no âmbito familiar.

Embora a família tenha perdido sua função de unidade religiosa (deus doméstico, dos romanos; capela da casa grande, dos senhores rurais brasileiros), os temas de direito de família continuam mesclados de interferências religiosas. Casamento, divórcio, planejamento familiar, filiação, são recorrentes em posições, às vezes extremadas, de grupos religiosos que procuram influir nas opções legislativas e nas políticas públicas.

Três são os mais importantes princípios constitucionais regentes das relações familiares: o da dignidade da pessoa humana, o da liberdade e o da igualdade.

O princípio da dignidade humana pode ser concebido como estruturante e conformador dos demais, nas relações familiares. A Constituição, no artigo 1º, o tem como um dos fundamentos da organização social e política do país, e da própria família (artigo 226, § 7º). Na família patriarcal, a cidadania plena concentrava-as na pessoa do chefe, dotado de direitos que eram negados aos demais membros, a mulher e os filhos, cuja dignidade humana não podia ser a mesma. O espaço privado familiar estava vedado à intervenção pública, tolerando-se a subjugação e os abusos contra os mais fracos. No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público é matrizado exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar, ainda tão duramente violada na realidade social, máxime com relação às crianças. Concretizar esse princípio é um desafio imenso, ante a cultura secular e resistente. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa viragem, configurando seu específico bill of rigths, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. É uma espetacular mudança de paradigmas.

O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeite suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.

O princípio da igualdade, formal e material, relaciona-se à paridade de direitos entre os cônjuges ou companheiros e entre os filhos. Não há cogitar de igualdade entre pais e filhos, porque cuida de igualar os iguais. A conseqüência mais evidente é o desaparecimento de hierarquia entre os que o direito passou a considerar pares, tornando perempta a concepção patriarcal de chefia. A igualdade não apaga as diferenças entre os gêneros, que não pode ser ignorada pelo direito. Ultrapassada a fase da conquista da igualdade formal, no plano do direito, as demais ciências demonstraram que as diferenças não poderiam ser afastadas. A mulher é diferente do homem, mas enquanto pessoa humana deve exercer os mesmos direitos. A história ensina que a diferença serviu de justificativa a preconceitos de supremacia masculina, vedando à mulher o exercício pleno de sua cidadania ou a realização como sujeito de direito.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Constitucionalização do Direito Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. -1462, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/507. Acesso em: 23 dez. 2024.

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