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A falácia do combate ao crime organizado

21/05/2004 às 00:00
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Nos tempos atuais, em que tanto se fala em "combate" ou "guerra" ao crime organizado, é necessário abrir os olhos da população brasileira para a histeria criada por certos setores em relação a esse tema. Será que esse discurso político-governamental não é apenas uma satisfação simbólica que visa esconder as verdadeiras causas da criminalidade urbana e mascarar a incompetência do Estado em combater a violência? Sem programas destinados a mitigar as graves desigualdades sociais e o crescente desemprego, a opção do crime será sempre atraente aos jovens dos grandes centros urbanos. É por isso que ilusória presença do Estado como garantidor da lei e da ordem não passa de uma falácia enquanto todo o sistema não for reestruturado, promovendo crescimento econômico, geração de empregos, investimentos em educação e melhoria das condições de vida da população. Todas as medidas que forem tomadas em termos de segurança pública só surtirão efeitos se acompanhadas de ações de alcance social. Em longo prazo, o investimento em políticas sociais trará mais resultados do que aquisições de viaturas e armamentos, criação de delegacias especializadas, promulgação de leis ineficazes, construção de novos presídios e discursos inflamados da lei e da ordem. Nesse sentido, JUAREZ CIRINO DOS SANTOS alerta que a resposta penal contra o chamado crime organizado é mais ou menos semelhante em toda parte: maior rigor repressivo, introdução de novas modalidades de prisões cautelares, instituição de "prêmio" ao acusado colaborador, criação de programas de proteção de testemunhas... A experiência mostra que essa resposta penal se situa no plano simbólico, como satisfação retórica à opinião pública pela estigmatização oficial do crime organizado, mas tem sua utilidade: cumpre o papel de evitar discussões sobre o modelo político neoliberal dominante nas sociedades contemporâneas, ocultando responsabilidades do capital financeiro internacional, aliado às elites conservadoras dos países do Terceiro Mundo, na criação de condições adequadas à expansão da criminalidade em geral e, eventualmente, de organizações locais de tipo mafioso ("Crime Organizado", in Direito Penal e Direito Processual Penal – Uma Visão Garantista, RJ, Editora Lumen Juris, 2001, p. 148).

A Lei n. 9.034/95 – instituída para combater o crime organizado no Brasil - sequer foi capaz de definir o que seria crime organizado e acabou aproximando esse conceito do crime de quadrilha ou bando. Nessa época, CARLOS ALBERTO MARCHI DE QUEIROZ afirmou que só resta lamentar que o legislador penal nacional não tenha colocado nas mãos dos operadores do Direito uma definição mais transparente de organizações criminosas" (Crime Organizado no Brasil, SP, Editora Iglu, 1998, pág. 18). Tal fato só reflete a falta de estudo empírico e criminológico para responder à indagação sobre a efetiva existência do fenômeno do crime organizado no Brasil. Esse dispositivo legal teve recente modificação ocasionada pela Lei n. 10.217/01 que tornou o conceito de crime organizado ainda mais confuso. Para LUIZ FLÁVIO GOMES, o advento do novo texto legal acabou eliminando a eficácia de inúmeros dispositivos legais contidos na Lei n. 9.034/95. E explica: "Se as leis do crime organizado no Brasil (Lei n. 9.034/95 e Lei 10.217/01), que existem para definir o que se entende por organização criminosa, não nos explicaram o que é isso, não cabe outra conclusão: desde 12.04.01 perderam a eficácia todos os dispositivos legais fundados nesse conceito que ninguém sabe o que é" (in "Crime Organizado: que se entende por isso depois da Lei n. 10.217, de 11.04.01?", disponível na Internet: http://www.ibccrim.org.br, 26.10.2001).

Debates doutrinários à parte, fato é que a política criminal contra o indefinível crime organizado está equivocada. Antes da propaganda política e da algazarra da mídia é preciso reestruturar as instituições que atuam na esfera da repressão à criminalidade. É necessário repensar a polícia e aparelhar a Justiça Criminal. Fácil é de constatar que a situação das polícias estaduais é caótica. Historicamente, as instituições policiais brasileiras foram sendo enfraquecidas, divididas e desacreditadas. É possível ver um objetivo por trás disso. Não se sabe até que ponto interessa aos detentores do poder a criação de uma polícia única, forte, autônoma, equipada e bem paga. Favores políticos não poderiam ser cobrados e até mesmo os "amigos do Rei" seriam punidos. A ingerência governamental e o sucateamento das forças policiais atende a interesses ocultos previamente definidos. Os diversos órgãos fiscalizadores do Poder Executivo também se encontram em situação penosa. Assim, a Receita Federal, o INSS e o Ministério do Trabalho têm funções importantíssimas no sentido de obter informações e coibir fraudes no seio do Estado brasileiro. A falta de pessoal, de estrutura e os entraves burocráticos atrapalham a atuação desses mecanismos de controle. O Poder Judiciário, por sua vez, encontra-se em avançado estado de falência. A prescrição alcança um número incontável de processos antes que sejam julgados. O descrédito da sociedade com o Poder Judiciário é refletido na demora com que a justiça é feita. Após a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público foi visto como a tábua de salvação da sociedade brasileira. Cercado de garantias constitucionais, autonomia financeira e administrativa e longe das ingerências do Poder Executivo, o parquet deu importante contribuição na luta pela legalidade. Entretanto, sem controle externo e com amplos poderes, o Ministério Público acabou perdendo o rumo e exorbitou de suas atribuições, entrando em maléfica disputa com as polícias, o Poder Judiciário e outros órgãos fiscalizadores É preciso ter em mente que não é o atropelo de atribuições que fará a sociedade vencer a luta contra o crime. É preciso preservar todas as instituições, reestruturá-las e definir formas de atuação.

Em termos de resposta penal, o sistema jurídico brasileiro não traz soluções adequadas, apresentando diversos problemas estruturais. Nossa legislação penal parece sofrer de grave esquizofrenia. De um lado, temos uma constituição "cidadã" que nos oferece um extenso rol de direitos e garantias individuais. Por outro, uma legislação penal e processual deficiente e arcaica, oriunda de uma época de exceção, de um Estado totalitário. Além disso, o legislador atual anda furioso, legislando sem parar, atendendo aos anseios do movimento da lei e da ordem. Resultado disso é a ofensa direta aos fundamentos constitucionais do Estado Democrático do Direito. Se o descompasso entre o doutrina do direito penal mínimo e os anseios da sociedade são visíveis, há outros fatores que influenciam para que o clima de violência e insegurança predomine. Isso porque, independente de um direito penal mínimo ou máximo, as leis existentes devem ser rigorosamente aplicadas, a certeza da punição deve prevalecer e a eficiência dos órgãos estatais deve ser colocada em xeque. Nesse compasso, DAMÁSIO E. DE JESUS definiu bem a questão: "O Direito Penal desemboca na cadeia. Se ela não é segura, não adianta alterar um milhão de vezes a legislação penal. Nem agravar as penas. Nem instituir a prisão perpétua" (in "Aumento da violência e impunidade", disponível na Internet: http://www.damasio.com.br, fev. 2002).

Ilustrando esse caos legislativo, o art. 3.º da Lei n.º 9.034/95 criou uma nova figura de juiz inquisidor em pleno processo penal acusatório. Tal lei teve como origem a vinda de juízes italianos para o Brasil para retratar a experiência da Justiça italiana contra as conhecidas máfias locais. Encantado, o legislador brasileiro resolveu simplesmente copiar o modelo italiano, sem se preocupar com a técnica processual e o vigente sistema de investigação criminal. Sobre isso, PERCIVAL DE SOUZA escreveu que nossos legisladores têm a cabeça no continente europeu e o resto do corpo em país de terceiro mundo, pois copiam ensinamentos de autores estrangeiros, vivem de citações e não demonstram preocupação em adequar a lei à realidade nacional.

Manifestando-se a respeito dos poderes instrutórios conferidos ao juiz pela Lei n.º 9.034/95 durante os debates promovidos pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, LUIZ FLÁVIO GOMES chegou a comentar que o poder político brasileiro, ao constatar a falência da Polícia e das Forças Armadas no combate ao crime organizado, buscou no juiz de Direito a figura necessária para esse combate, que poderá vir a ser realizado por magistrados sem qualquer tipo de experiência ou recursos, verdadeiros ‘delegados frustrados’ (sic). Nesse sentido, o Promotor de Justiça mineiro Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira condena a investigação levada a efeito pelo juiz, afirmando que a CF/88 vedou a prática de atos típicos de parte, procurando preservar sua imparcialidade" (in "Combate às Organizações Criminosas: A Sociedade em Perigo Virtual", disponível na Internet: http://www.ibccrim.org.br). O Delegado de Polícia paulista CARLOS ALBERTO MARCHI DE QUEIROZ ponderou no mesmo sentido, acrescentando que o combate ao crime organizado, em todo o mundo, é assunto para profissionais de Polícia, nunca para juízes de Direito, que, no Brasil, seriam alvos muito mais fáceis do que os históricos Chinnici, Livatino, Falcone e Borsellino, face à nossa geografia física, referindo-se aos célebres casos em que a Máfia italiana assassinou os principais agentes públicos empenhados no combate à criminalidade organizada naquele país (Crime Organizado no Brasil, Editora Iglu, SP, p. 83). Para LEONARDO SICA, "a falácia está em ‘importar’ o modelo italiano, fazendo crer que os sucessos lá obtidos estão ligados a provimentos legislativos, quando, em verdade, o sucesso na perseguição de alguns mafiosos deu-se mais pela decisão de colocar em funcionamento o sistema existente, acelerando inquéritos, aparelhando melhor as polícias, etc., enfim, com empenho político" (in "Medidas de Emergência, Violência e Crime Organizado", publicado no Boletim IBCCRIM n. 126, maio de 2003). O que o legislador brasileiro fez foi criar um "simulacro" de juizado de instrução, enquanto que a tendência moderna é exatamente oposta. Esse modelo está em descrédito e decadência, tendo sido abandonado na Itália e duramente questionado na Espanha.

Outra inovação perigosa surgiu com a Lei n.10.217/01 que introduziu na legislação processual pátria a infiltração de agentes de polícia ou "de inteligência" no crime organizado, com o objetivo de colher provas, mediante "circunstanciada" autorização judicial. A começar, o dispositivo é falho por não prever corretamente quem poderá ser infiltrado nas organizações criminosas. Deveria, sem dúvida, o legislador obedecer ao art. 144 da Constituição Federal, que prevê a tarefa de investigação às polícias judiciárias, isto é, à Polícia Federal e às polícias civis estaduais. Assim, fazendo-se uma interpretação literal e sem compromisso com o dispositivo constitucional, poderíamos ter o absurdo de ter policial militar infiltrado em organizações criminosas com o objetivo de colher provas (!). Esta tarefa é exclusiva da polícia judiciária que visa colher os elementos mínimos à propositura da ação penal pelo Ministério Público. É justamente por isso que o constituinte atribui o controle externo da polícia judiciária ao parquet, monitorando e fiscalizando ações policiais investigatórias no intuito de preservar o princípio da legalidade. Ações de infiltração em organizações criminosas são de alto risco, que devem ser bem planejadas e executadas a contento sob pena da inutilidade do dispositivo. Por força dos dispositivos constitucionais, as policiais judiciárias são as únicas capazes de executar tal tarefa. Também se critica a inclusão da expressão agentes "de inteligência" no dispositivo da lei. Ora, é sabido que as agências de inteligência não visam colher provas para o processo penal. Seu objetivo é subsidiar os governos com informações colhidas em diversas áreas com o fim de prevenir alterações no status quo vigente. Tanto é assim que as primeiras agências de inteligências começaram a surgir no seio das Forças Armadas. Portanto, se não visam colher provas, não há interesse do ponto de vista jurídico de se autorizar a infiltração de agentes "de inteligência" no crime organizado. Por último, a lei não autoriza os agentes infiltrados a praticar crimes e com isso cria um perigoso vácuo jurídico que pode inviabilizar a operação. Teria o legislador deixado essa tormentosa questão ao prudente arbítrio do juiz, ao escrever que a infiltração se fará mediante "circunstanciada" autorização judicial? Mas, por outro lado, como poderá o magistrado "autorizar" o agente infiltrado a praticar crimes? Do ponto de vista doutrinário, como ficará a situação desse agente infiltrado se tiver que cometer ilícitos para ser aceito na organização criminosa? Conforme demonstrado, as falhas e omissões do legislador tornaram esse dispositivo inócuo.

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A falácia do combate ao crime organizado assume várias formas. Seja no engodo de fazer acreditar que toda a criminalidade violenta atual está ligada às organizações criminosas, seja no atropelo de atribuições praticado pelos órgãos de repressão do Estado. É necessário ter a sensibilidade para saber diferenciar a criminalidade comum dos atos praticados pelo chamado crime organizado. Em busca de notícias de primeira página, a imprensa procura em um simples homicídio passional a conexão inexistente com um grupo de extermínio. Da mesma forma, os crimes contra o patrimônio causados pelas graves distorções sociais e pelo crescimento da miséria podem transformar-se em obra arquitetada por sindicatos do crime de existência duvidosa. A conexão da criminalidade com o Poder Público é sempre buscada numa histeria desenfreada de provocar escândalo e atrair a atenção das classes A e B que não se interessam por notícias corriqueiras. Por outro lado, visando dar uma satisfação aos reclamos da mídia, os governantes anunciam a criação de "forças-tarefa" para combater o que nem sempre existe. Aliás, uma das maiores falácias da atualidade são essas "forças-tarefa" criadas a esmo, sem objetivo definido, muitas vezes instituídas para promover vaidades pessoais em detrimento das instituições. Nesse contexto, as disputas corporativas crescem e o atropelo de atribuições campeia. As investigações são sempre acompanhadas pela imprensa e o segredo tão pregado pela Lei n. 9.034/95 é esquecido para promover certos agentes públicos. Como resultado, a conclusão das "forças-tarefa" é quase sempre a mesma: não se chega a conclusão nenhuma. Mas a "fogueira das vaidades" também arde no Legislativo brasileiro. Ao invés de ocupar-se com sua atribuição fundamental de legislar corretamente, os representantes do povo criam CPI´s sob os mais desvairados pretextos. Investiga-se o que já foi investigado, não raramente convocam pessoas que não sabem dos fatos, compromissam investigados a dizer a verdade e com isso ofendem direitos e garantias fundamentais, perseguem inimigos políticos e proporcionam um belo e atraente espetáculo para a mídia.

Em meio a tudo isso ficam os operadores do direito e os agentes públicos, obviamente fadados a fracassar em sua missão de garantir à população o direito constitucional à segurança pública. Portanto, é fácil concluir que qualquer ação de combate ao crime organizado passa, obrigatoriamente, pela "organização" da sociedade dominante que deve procurar satisfazer as necessidades reais e a vontade política dos cidadãos.

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Sobre o autor
Átila Da Rold Roesler

Procurador federal da Advocacia-Geral da União, especialista em Direito Processual Civil, autor do livro Execução Civil - Aspectos Destacados (Editora Juruá, 2007), ex-Delegado de Polí­cia Civil do Estado do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROESLER, Átila Rold. A falácia do combate ao crime organizado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 318, 21 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5214. Acesso em: 31 out. 2024.

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