IV
O nascimento do Homem é o centro da reflexão de Foucault (influência do estruturalismo), para chegar a uma caracterização das relações políticas modernas. Tal como Hegel, Foucault procurará nas reflexões filosóficas de Kant o surgimento do Homem e da modernidade como auto-certificação (de sua existência e de sua "época"); talvez, por isso, o próprio Foucault, ao assumir a cátedra de História dos sistemas de pensamento no Collège de France, projetando o rumo de suas pesquisas para os próximos anos, tenha observado que
"[...] escapar realmente a Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar." (14)
Foucault ocuparia, então e conforme constatação de Habermas, um espaço dentro do discurso filosófico da modernidade e seria herdeiro de algumas reflexões hegelianas sobretudo no que diz respeito ao limites do humanismo kantiano.
No entanto as semelhanças param por aí, pois, enquanto Hegel se dispõe a edificar um projeto de razão universal que superaria o criticismo transcendental kantiano, Foucault será um crítico tanto do discurso antropológico, como empreenderá, com grande energia e ambição, uma critica da razão, conforme veremos.
Existem vários modos de abordar o pensamento de Foucault. Podemos tentar inscrevê-lo, numa perspectiva linear, naquela linhagem de pensadores que falam de dentro do "discurso filosófico da modernidade" e, envolvidos que estão na tradição da filosofia do sujeito, são completamente absorvidos pelas "aporias da razão" mesmo quando da razão tentam desvencilhar-se. Poderíamos, também, procurar tratá-lo como um sistema progressivo onde haveria dois "pensamentos" de Foucault: a primeira fase, a arqueológica e a segunda genealógica e que abandona por completo as investigações da primeira. Poderíamos, por fim, tratá-lo como filósofo comprometido em justificar suas posições que pertenceriam à dinastia dos filósofos da modernidade; em outras palavras, poderíamos tratar o pensamento de Foucault como uma teoria (primeiro do discurso, depois do poder e, por fim, do sujeito) comprometida com a busca de uma completude totalitária. Não cremos, entretanto, que estes caminhos sejam profícuos. Acreditamos poder encontrar em Foucault uma "caixa de ferramentas" a qual podemos abrir e retirar o(s) instrumento(s) que necessitamos para desenvolver nosso trabalho.
Nosso trabalho aqui consiste em evidenciar como se articulam epistemologia, ética e política a partir da emergência da modernidade. Nossa pergunta seria: como têm surgimento práticas (e discursos) políticas como as nossas, de que forma emergiram historicamente relações políticas tão complexas como as do racionalismo ocidental? Para tentar dar resposta a estas questões pensamos ser interessante trazer à tona duas questões fundamentais da arqueologia foucaultiana: (a) o Humanismo como local de surgimento do Homem como sujeito cognoscente por excelência e, ao mesmo tempo, como objeto de conhecimento para o qual se voltarão todas as ciências humanas; (b) a crítica da razão entendida como auto-certificação do presente que procura um sentido historicamente dado para a existência humana enquanto ser no mundo (Dasein).
Para Foucault não é em Galilleu ou em Descartes que tem origem a modernidade, não é numa viragem espistemológica operada pelo mecanicismo (um progresso científico em relação à física dos Antigos) que vivenciaríamos o "nosso tempo", o "nosso discurso"; na periodização das descontinuidades históricas idealizadas pelo autor, estes pensadores ainda estariam presos ao saber clássico (renascentista) o qual "atribui (...) um privilégio absoluto à mecânica, que supõe uma organização geral da natureza, que admite uma possibilidade de análise bastante radical para descobrir o elemento ou a origem." (15) Em suma, na idade clássica, em que pese alguns indícios da modernidade, ainda estaríamos imersos no universo da representação (homem como representação da natureza, por exemplo (16)).
Por outro lado, no plano político, não é com Maquiavel que estaríamos diante de uma forma propriamente moderna de pensar a relação do sujeito com a polis; com Maquiavel ainda estaríamos imersos no quadro da representação, da ordem, da série, da articulação. O Príncipe constitui-se como tal em decorrência daquilo que representa; é a uma Natureza Humana em oposição à Natureza que estamos falando. Se é certo que Maquiavel desloca sua abordagem para as práticas políticas com uma aparente dissociação destas ao plano ético, o certo é que ainda trata-se de um discurso sobre o território enquanto representação do corpo do Príncipe. Expliquemo-nos: Maquiavel ainda preocupa-se com as estratégias do Príncipe para manter e ampliar seu território (seu corpo político) e, por mera decorrência, acaba por elaborar alguns preceitos em relação à arte de ordenar o corpo social: não é ao Homem como lugar da representação que Maquiavel se refere. Não é, portanto, em termos antropológicos que as coisas estão colocadas, não é sobre o Homem que Maquiavel teoriza, mas sim, e isso é o mais importante, sobre a virtude do monarca.
Somente na dobra do século XVIII para o século XIX, quando surge o Homem como centro da preocupação do saber no ocidente é que abre-se propriamente a "era moderna".
Segundo Foucault, a partir do momento em que os seres humanos passaram a ser interpretados como sujeitos de conhecimento ao mesmo tempo que objeto deste mesmo conhecimento, seguindo um caminho aberto sobretudo por Kant, teve vazão aquilo chamado pelo nome de modernidade. Assim, o Homem passa a ser o centro de uma nova forma de investigação que tem início com as filosofias do sujeito (Fenomenologia, Hermenêutica, Estruturalismo) e com as ciências humanas.
A idéia central de Foucault, segundo atestam Rabinow e Dreyfus, é a de que, na dobra do século XVIII para o século XIX,
"Kant introduziu a idéia de que o Homem é o único ser totalmente envolvido pela natureza (seu corpo), pela sociedade (relações históricas, políticas e econômicas) e pela língua (sua língua materna), e ao mesmo tempo, encontra uma sólida base para todos estes envolvimentos em sua atividade organizadora e doadora de sentido." (17)
No nível arqueológico, isto é, no nível das investigações que buscam descobrir "[...] apenas as regras estruturais que dirigem o discurso"., (18) no nível do discurso, portanto (seguindo os limites propostos por nosso estudo), podemos distinguir com Foucault, duas formações epistêmicas (19) que darão lugar a duas figuras epistemológicas distintas: a da época clássica e a da modernidade.
No nível discursivo, o que caracteriza a modernidade é o surgimento das ciências empíricas; estas, por sua vez, têm sua condição de possibilidade naquilo que Foucault chamou de a priori histórico, i.é, no surgimento do Homem como representação, como objeto ao mesmo tempo que sujeito do conhecimento; sendo investigado como objeto pelas ciências humanas e servindo de fundamento de todo o conhecimento possível enquanto sujeito filosófico.
No plano do discurso científico (saberes) há uma descontinuidade entre a episteme clássica e a moderna. Enquanto esta é marcada pelo surgimento da biologia, da economia e da filologia (que estudam a vida, o trabalho e a linguagem), a primeira é voltada para a história natural, a análise das riquezas e a gramática geral. São duas formas de saber que, em que pese a aparente justaposição, não têm correlação epistêmica – a primeira será marcada pela primazia da representação enquanto mediação entre os objetos no mundo; a segunda, pelo desaparecimento da representação como mediação entre duas coisas, sendo colocada na relação do homem com o vivido, com a linguagem, etc.
Foucault desenvolve sua argumentação referente ao surgimento da modernidade estabelecendo uma oposição entre três saberes da era clássica (história natural, análise das riquezas e teoria do discurso) e suas correlatas ciências empíricas na era moderna ( biologia, economia e filologia) por um lado; por outro lado estabelece uma oposição entre a filosofia clássica (à que podemos chamar de filosofia da representação) e a filosofia moderna, ou analítica da finitude.
Enquanto saber clássico, a história natural desenvolve-se como representação do visível pela linguagem. Assim, o estudo dos seres vivos na época clássica se constituirá como observação e descrição dos seres. O conhecimento clássico dá-se na superfície, o que há de visível na natureza, é o que serve como classificação. O conhecimento não pretende penetrar nos objetos, i.é, dá-se de forma completamente bidimensional (reduz-se ao olhar e ao tato), desprezando a experiência sensível. O importante para a história natural são o analisar e o descrever (20) o objeto. A análise, por sua vez, dá-se por intermédio do conceito de estrutura, entendida esta como as formas primárias do objeto excluído todo o conteúdo empírico. Estas formas primárias podem ser traduzidas como a extensão visível essencial do objeto: linhas, superfícies e volumes.
Destarte, trata-se de um conhecimento analítico, que decompõe a estrutura em seus elementos constitutivos segundo quatro variáveis: figura ou forma, número ou quantidade, proporção ou grandeza, situação ou distribuição espacial; em outras palavras, o visível é dito pela colocação do objeto num espaço como num quadro classificatório (identidade/diferença). O saber clássico é um saber taxonômico, ideal e que procura descrever a ordem das coisas segundo uma incansável classificação em categorias, gêneros e espécies cada vez mais detalhadas. Resumidamente, poderíamos afirmar que a história natural, enquanto inscrita na ordem do saber clássico, é uma ciência taxonômica que analisa e classifica em gênero e espécie os seres vivos, a partir de sua estrutura visível (superficial e, portanto, bidimensional).
A mudança fundamental para a episteme moderna, no final do século XVIII, opera-se na relação entre o conhecimento e as dimensões de superfície e de profundidade (a representação e o objeto); assim, "[...]deixando de privilegiar a estrutura visível dos seres, o conhecimento torna-se empírico; não é mais a análise de uma representação, não tem mais idéias como objeto: torna-se sintético; seu objeto é uma coisa concreta, não mais ideal, mas real, tendo uma existência independente do próprio conhecimento." (21)
Na época moderna caráter e estrutura se dissociam. Enquanto a segunda diz respeito ao nível visível do objeto, o primeiro obedece a um princípio interno (a organização dos seres) e o conhecimento volta-se para o interior do objeto, para a profundidade – os objetos ganham uma profundidade, um sentido profundo a ser desvendado; há um deslocamento do visível para o invisível, deslocamento para o conhecimento da profundidade dos seres vivos: o plano bidimensional dá lugar ao tridimensional do volume.
Deslocando-se e alojando-se no invisível, o caráter não mais tem correlação com a estrutura visível, não mais sendo desta dependente, ele fundamenta-se numa organização interna (escapando à representação, portanto). Abre-se, assim, este espaço de opacidade, do volume da espessura constituída de órgãos e funções que dão vazão à vida. Quando se passa a relacionar o visível com o invisível, quando se passa a fazer depender o caráter de uma organização interna e profunda, há a viragem para a modernidade. Não há mais uma representação na superfície dos seres, o caráter não remete mais ao formal, mas sim à função do órgão dentro de um sistema, de uma totalidade. O conhecimento se desloca para o interior do espaço tridimensional e empírico da vida. A organização não depende da forma, mas sim é definida pela função que exerce dentro de um sistema ou aparelho mais geral: conhecimento que aloja-se no interior do vivido.
Ainda no plano das ciências empíricas, a economia moderna diverge totalmente da análise das riquezas da época clássica. Enquanto esta volta-se para uma teoria geral do valor de troca das mercadorias, classificando, segundo um quadro geral de classificação, equivalências entre um objeto de troca e outro, a economia enquanto ciência empírica, volta-se, desde Adam Smith e Ricardo, para o trabalho enquanto constitutivo de todo e qualquer valor. Isto significa dizer que, doravante, todas as mercadorias postas em circulação terão seu valor determinado em conformidade com o trabalho despendido pelo Homem para colocá-la em circulação. É o trabalho como atividade de produção que é a fonte de valor, ou seja, "[...] na economia o trabalho é o conceito fundamental capaz de explicar a troca, o lucro e a produção." (22)
Assim, as ciências empíricas somente são possíveis na medida em que tem surgimento um saber que volta-se para a profundidade de um ser que vive (biologia), trabalha (economia) e fala (linguagem). Só se pode falar em ciência empírica moderna, segundo Roberto Machado, "quando os seres vivos, riquezas e as palavras não são mais analisadas a partir da representação, mas tornam-se coisas, objetos que têm uma profundidade específica enquanto vida, produção e linguagem." (23) Ao penetrar na profundidade das coisas o conhecimento outrora analítico, transforma-se em conhecimento empírico.
Essa mudança fundamental é assim descrita por Foucault:
"Se se estuda o custo da produção e se não se utiliza mais a situação ideal e primitiva da troca para analisar a formação do valor, é porque, ao nível arqueológico, a produção como figura fundamental do espaço do saber substitui a troca, fazendo aparecer, por um lado, novos objetos cognoscíveis (como o capital) e prescrevendo, por outro, novos conceitos e novos métodos (como a análise das formas de produção). Como também, se se estuda, a partir de Cuvier, a organização interna dos seres vivos, e se, para faze-lo, se utilizam os métodos da anatomia comparada, é porque a vida, como forma fundamental do saber, fez aparecer novos objetos (como a pesquisa das analogias). Enfim, se Grumm e Bopp procuram definir as leis de alternância vocálica é porque o Discurso como modo de saber foi substituído pela Linguagem, que definiu objetos até então inaparentes (famílias de línguas em que os sistemas gramaticais soam análogos) e prescreveu métodos que não tinham ainda sido empregados (análise das regras de transformação das consoantes e das vogais)." (24)
O nascimento das ciências empíricas é uma das condições – em nível epistemológico – do surgimento da modernidade. Ao voltarem-se para este ser que vive, trabalha e fala, tais ciências colocam o Homem no centro de sua investigação; assim sendo, todo o saber moderno terá como objeto este ser. Mas não é só: estas ciências somente podem surgir na medida em que descobrem no homem a finitude que lhe é própria. Somente quando volta-se para o homem enquanto ser finito que tem em sua vivência sua existência é que pode surgir a biologia. Da mesma forma, a economia somente passa a existir quando passa a tematizar o trabalho como medida de todos os valores. O trabalho, por sua vez, somente pode ser ligado à necessidade de um ser finito que, buscando sua subsistência (buscando suprir suas necessidades) trabalha com o intuito de postergar seu fim: "O homem, do ponto de vista da economia, é este ser cuja vida é procurar escapar, pelo trabalho, à eminência da morte. A economia moderna se articula com uma ‘antropologia como discurso sobre a finitude natural do homem.’" (25) Com a linguagem se dá o mesmo, ela só tem surgimento quando faz referência ao ser que fala, que articula um sentido no uso dos enunciados e somente tem sentido enquanto a continuidade através da qual se articula o ser finito (o Homem).
A ruptura é patente, então. Se na época clássica, conforme afirmam Rabinow e Dreyfus, "...o homem não era o produtor, o artífice-Deus; mas enquanto foco do esclarecimento, ele era um dos artífices. E se "...havia um mundo em si criado por Deus". Sendo o papel do homem "...esclarecer a ordem do mundo" (26), na modernidade o homem com sua finitude passa a ser, por intermédio das ciências empíricas, objeto de conhecimento ao mesmo tempo em que, por intermédio da filosofia, o fundamento de todo o conhecimento possível, o fundamento de toda a representação possível.
No plano filosófico – o qual, de certa forma, orienta a ruptura operada pelas ciências empíricas – Foucault situa a crítica kantiana como ruptura com o discurso de Descartes. Foucault se detém num dos aspectos da filosofia de Descartes, o qual, segundo ele, caracteriza a filosofia clássica: a noção de que o conhecimento é, de modo geral, um ato de comparação pela ordem. Em outras palavras, para descartes conhecer é ordenar as coisas a partir do objeto mais simples até os compostos, por intermédio do procedimento da análise: a filosofia clássica é, portanto, uma filosofia analítica no sentido de que sua função primordial é ordenar os objetos no mundo e servir de base, de paradigma para todo o conhecimento, para todo o saber – inclusive para os saberes relativos à história natural, análise das riquezas e análise do discurso. Como bem chama a atenção Machado, "Foucault pretende encontrar na teoria cartesiana o fundamento não só de um conhecimento do tipo da matemática ou da física, mas de saberes como a história natural, a análise das riquezas ou a gramática geral. Descartes teria codificado as regras de conhecimento que serviriam de princípios metodológicos não só para as ciências, como a física e a matemática, mas até para saberes que não tivessem estatuto de cientificidade." (27) Assim, a filosofia clássica, conforme já salientado, é uma filosofia da análise, presa à superfície da representação: uma idéia representa outra que é condição de representação da idéia anterior, etc... O homem é, deste modo, mero espectador diante da representação em quadro. Vale dizer: perante a ordem do mundo o homem pretende ordenar suas idéias com o objetivo que as mesmas correspondam, da forma mais fiel possível, aquela que é preexistente. Destarte, o homem não coloca a si mesmo como objeto desta representação, não questiona-se sobre como é possível a ele representar a representação ao mesmo tempo em que não tem necessidade de fundar o conhecimento das coisas num sujeito de conhecimento onde supostamente se alojaria a representação.
Segundo Rabinow e Dreyfus, "...na opinião de Foucault, este sujeito emergirá com o surgimento do homem de Kant." (28), o que se dará somente com o surgimento da filosofia moderna como analítica da finitude. É quando Kant instaura o homem como sujeito transcendental, como condição de todo o conhecimento possível, é nesse momento que fecha-se o círculo da episteme moderna. Temos, então, por um lado as ciências empíricas que voltam-se para o homem como objeto de conhecimento e, a partir de seus temas, constatam a finitude própria do objeto de seu conhecimento. Por outro lado, a filosofia crítica vislumbra no homem, em que pese sua finitude, a condição de possibilidade de todo o conhecimento: "...o homem, conforme o compreendemos hoje, aparece na mudança essencial com a qual estamos preocupados, tornando-se medida de todas as coisas... Ele se torna o sujeito e o objeto do seu conhecimento". (29) Se, do lado das ciências empíricas, o homem se revela – pelo limite de sua finitude – como objeto de um saber anterior a sua própria existência que lhe atravessa como se ele fosse apenas um objeto da natureza, do lado da filosofia este limite é o que possibilita todo o conhecimento positivo:
"(...) O limite não se manifesta como determinação imposta do exterior ao homem (porque ele tem uma natureza ou uma história), mas como finitude fundamental que repousa apenas sobre o seu próprio fato e se abre sobre a positividade de todo limite concreto." (30) A partir do momento em que a linguagem não é mais a responsável pela representação, possibilitando o conhecimento, a função de representar se torna um problema. A tarefa de tornar possível a representação recai sobre o homem." (31)
O pensamento moderno é uma analítica da finitude justamente porque coloca o homem ao mesmo tempo como sujeito e objeto de todo o conhecimento e, além disso, coloca-o como organizador do espaço de representação onde surgem este sujeito e este objeto. A analítica da finitude é o que possibilita ao homem voltar-se para si mesmo e descobrir-se ao mesmo tempo como objeto de investigação, como portador de uma finitude que o escraviza, o sobrecarrega, bem como, e por isso mesmo, fonte de todo o conhecimento possível: "A Modernidade começa com a incrível e finalmente aproveitável idéia de um ser que é soberano precisamente pela virtude de ser escravizado, um ser cuja finitude lhe permite tomar o lugar de Deus. Esta idéia surpreendente, que aparece em Kant, de que ‘os limites do conhecimento fundam positivamente a possibilidade do saber.’" (32)
Destarte, o homem dá-se a si mesmo como objeto finito, ao mesmo tempo em que fundamenta a possibilidade do conhecimento sobre si justamente na finitude de seu ser. A vida, o trabalho e a linguagem vêm do exterior marcar o homem como finitude que somente é possível de existir enquanto constituído pela fala, pelo trabalho e pelo vivido. Por outro lado, sua própria finitude, ao denunciar suas limitações enquanto ser que fala, trabalha e vive, o constitui como sujeito constituinte da linguagem, do trabalho e da vida, enquanto soberano que dá sentido a estas dimensões da experiência: o surgimento do homem é a eterna repetição do Mesmo, na medida em que as positividades repetem seu fundamento e vice versa:
"De um extremo ao outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é, na figura do Mesmo, a Identidade e a Diferença das positividades e de seu fundamento. Vê-se como a reflexão moderna, desde o primeiro esboço dessa analítica, se inclina em direção a certo pensamento do Mesmo – em que a Diferença é a mesma coisa que a Identidade.. " (33)
Assim, a partir do momento em que coloca o homem como centro da reflexão da modernidade, Foucault é capaz de traçar a forma pela qual a episteme moderna sobrecarrega este ser fazendo-o passar de um extremo ao outro da representação, ou seja, das positividades empíricas ao fundamento transcendental sendo que um não cessará de tematizar e referir-se ao outro.
Ao voltar-se para esta analítica da finitude o que Foucault pretende, pondo entre parênteses o problema da verdade da teoria das ciências (vez que para ele o que estabelece a verdade são as práticas discursivas de uma disciplina específica), é voltar-se para a análise dos discursos fundamentais sobre o homem e mostrar de que forma eles estão fadados à desintegração. Conforme afirmam Rabinow e Dreyfus:
"Foucault desenvolve uma forte argumentação para esse pretenso declínio. Ele tenta mostrar que com a tentativa do homem de afirmar plenamente sua finitude e, ao mesmo tempo, negá-la totalmente, o discurso abre um espaço no qual a analítica da finitude, condenada desde o começo , debate-se numa série de estratégias fúteis. Cada nova tentativa deverá afirmar uma identidade e uma diferença entre finitude como limitação e finitude como fonte de todos os fatos, entre o positivo e o fundamental. Visto sobre este duplo aspecto, o homem aparece: (1) como um fato, entre outros fatos, para ser estudado empiricamente e, além disso, como a condição transcendental de possibilidade de todo conhecimento; (2) como cercado por aquilo que não pode se esclarecer (o impensado) e, além disso, como um cogito potencialmente lúcido, fonte de toda inteligibilidade; e (3) como o produto de uma longa história cujo início nunca poderá alcançar e, além disso, paradoxalmente, como a fonte desta mesma história." (34)
Daí a existência de três duplos (35) nos quais se estende toda a reflexão moderna: (a) empírico-transcendental; (b) cogito-impensado e (c) recuo-retorno da origem, "...todos característicos do modo de ser do homem e do discurso antropológico que tenta fundamentar uma teoria deste modo dual de ser." (36) Assim, conforme um lado de cada duplo absorve o outro, diferentemente funcionará o discurso da modernidade; em que pese esta diferença, ela se debate sobre o Mesmo que, ao discursar sobre o Outro, está sempre a referir-se ao homem como limite e transposição deste limite, ou como limitado/ilimitado.
Com a distinção kantiana entre o empírico e o transcendental, tem surgimento um inaudito problema para a reflexão filosófica: ao submeter o conteúdo empírico à forma a priori do conhecimento, Kant põe em evidência o problema do re-investimento do empírico sobre o transcendental, ou seja, das influências empíricas no conhecimento formal. (37)
Toda a "teoria do conhecimento" posterior a Kant procurou fundar o transcendental no empírico. É todo um positivismo acrítico que volta-se para a sensibilidade empírica como fonte de todo o conhecimento o qual deve seu fundamento à percepção: há uma verdade em si, somente acessível pela percepção. Seguindo o caminho aberto pela estética transcendental, teríamos, assim, um positivismo que procura estabelecer as bases do conhecimento, o acesso à verdade, numa intuição empírica a priori, uma Natureza Humana capaz de aplicar-se a todos os objetos do e no mundo. De outro lado, teríamos todo um conhecimento voltado para a fundação da verdade na história; um conhecimento que, seguindo as linhas gerais da dialética transcendental, procuraria tornar a verdade acessível pela história – que seria o transcendental onde se inscreve um empírico o qual reduplica o primeiro – pela dimensão histórica do homem: teríamos aí a verdade escatológica da dialética. Dialética e positivismo, deste modo, apresentam-se como alternativas uma a outra, mas, na verdade, não passariam de dois momentos da mesma tensão entre o empírico e o transcendental, operada pelo discurso antropológico moderno. Foucault aponta uma alternativa a estes discursos: a fenomenologia existencial a qual buscaria uma nova analítica do sujeito tentando conciliar o empírico e o transcendental "...uma disciplina que tem um conteúdo empírico e é, ao mesmo tempo, transcendental, um a priori concreto, que poderia descrever o homem como uma fonte auto-produtora de percepção, cultura e história." (38) Esta análise do vivido, por sua vez, antes de superar os discursos anteriores, insere-se nos mesmos deslocando para o corpo (finito) a condição de existência todo o conhecimento, de todo o saber.
O duplo cogito-impensado, por sua vez, perpassa a analítica da finitude moderna inscrevendo-se no caminho aberto por Kant no que pertine à forma e ao conteúdo do pensamento e da ação; Rabinow e Dreyfus assim descrevem a origem kantiana das reflexões sobre o pensado/impensado:
"Mais uma vez Kant estabelece as regras básicas do jogo, afirmando a clareza como forma do pensamento e da ação, e anunciando o imperativo para obter tanta clareza quanto possível no que concerne ao conteúdo." (39)
O ser que fala, trabalha e vive, somente o faz na medida em que pode e deve pensar este impensado que lhe constitui enquanto homem. A tarefa do pensamento moderno é, então pensar o impensado, refletir na forma do "Para-si" o conteúdo do "Em-si", descobrir a essência oculta do homem, desalienando-o, descortinando para ele as bases de seu pensamento e de sua ação. O ápice das reflexões sobre o impensado será encontrado na filosofia de Husserl como uma analítica do vivido. A tese é a de que Husserl procurou uma base de práticas fundamentais sobre as quais é garantido o surgimento dos objetos para a consciência; da mesma forma a experiência humana deveria ser completamente acessível ao conhecimento, deveria ser inteligível. A Epoché, ou redução fenomenológica, é capaz de situar o fenomenólogo fora de todo o conteúdo vivido, de todo o fundamento da experiência, o qual "...aparece originariamente como o impensado e o impensável, formando um conjunto de crenças verdadeiramente sedimentado, e que o fenomenólogo deve apenas ‘despertar’ para tratá-los como um sistema de crenças." (40) A virtude do fenomenólogo é situar-se no dentro/fora de seu campo cultural e perceptivo. Assim, o fenomenólogo pode situar-se como puro espectador de sua relação com o mundo e analisar o impensado que constitui suas práticas culturais. Na relação com o impensado, a Modernidade toca o solo da moral, na medida em que esta (a moral) consiste em "...obter uma clareza cada vez maior destas forças obscuras, seja na sociedade (como em Marx e Habermas), seja no inconsciente (como em Freud e Merleau-Ponty), que motivam a ação." (41) Elucidar o impensado através do conhecimento é o que constitui a ética moderna, ou melhor, constitui o conteúdo e a forma da ética moderna. Pensar, na medida em que pensar é pensar o impensado e procurar elucidar o fundamento (transcendental) das práticas sociais, constitui-se ele mesmo em prática política promissora de libertação. Nesta senda, o pensamento volta-se para duas direções que correm, ambas, sobre a mesma pista aberta pela analítica da finitude: (a) parte para a busca dos fundamentos impensados do pensado; (b) fundamenta o pensado justamente por poder estabelecer o que há de pensável no impensado, fundamenta as práticas sociais, mas, por outro lado, por advir do impensado – ou melhor, por ter sua condição de existência no impensado – coloca seu significado fora de controle. Remete-se, então na busca profunda do sentido do impensado que investe sobre um infinito de crenças que por sua vez remetem a outras crenças fundamentais e, assim, sucessivamente, à busca de um fundamento sempre mais profundo. Por outro lado, abandona a busca do sentido e cai num niilismo na medida em que descobre que, encontrado o fundamento, a superação destas crenças, estaria configurado o fim da ação significante. Em outras palavras, o discurso sobre o homem reconhece sua condição de possibilidade nesta tensão permanente entre o cogito e o impensado onde toda e qualquer prática carece de fundamento, sendo tarefa deste discurso escrutinar a base fundamental daquelas ações.
A outra duplicação do pensamento moderno constitui-se sobre a tensão inerente ao recuo e o retorno da origem. Quando a linguagem perde sua transparência o homem volta-se para as origens da mesma. O homem que fala, utiliza-se da linguagem que fundamenta a fala e o ser do homem. Entretanto, o surgimento desta linguagem, a origem da mesma, constitui-se num problema insolúvel. Daí um recuo ao passado em busca do fundamento último da significação. Por outro lado, justamente por fundar suas práticas discursivas sobre uma linguagem, o homem pré-existe a esta, vez que, se a compreende e a utiliza, existe algo em si que é pré-linguístico e que é condição da própria linguagem. A tensão dar-se-á entre um homem que descobre-se, como diz Heidegger, já no mundo, ou seja, descobre-se constituído por uma linguagem, rodeado de outros seres, da natureza e um homem que, utilizando a linguagem, preexiste à compreensão.
"Generalizando esta idéia de que a linguagem não pode ser conhecida objetivamente, precisamente porque já é um tipo de saber, a analítica da finitude tenta reapropriar a história, mostrando que o homem já tem sempre uma história, na medida em que suas práticas sociais lhe permitem organizar historicamente todos os acontecimentos, inclusive acontecimentos em sua própria cultura. E, de um modo ainda mais geral, acontece que a própria habilidade do homem de compreender a si mesmo e aos objetos, elaborando projetos baseados no que é dado, tem uma estrutura tripla que corresponde ao passado, presente e futuro." (42)
Tal abordagem dá ensejo à busca do fundamento do ser do homem em sua capacidade de elucidação racional de sua origem – em sua capacidade de descobrir o sentido profundo de suas práticas, de sua existência – remetendo-se a um futuro onde a origem, como retorno, seria acessível ao entendimento, à elucidação do sentido. "O homem descobre que ele não é a fonte do seu próprio Ser – que nunca poderá retroceder até a origem da história – e, ao mesmo tempo, tenta mostrar... que esta restrição não é algo que realmente o limita, mas antes a fonte transcendental da mesma história cuja gênese escapa à investigação empírica." (43)