Não havendo mais nenhuma dúvida a respeito da obrigatoriedade de indenização por danos morais à pessoa física, surge uma outra grande discussão paralela sobre a possibilidade da pessoa jurídica situar-se no pólo ativo de uma ação por danos morais.
As pessoas jurídicas, a exemplo das pessoas físicas ou naturais, também possuem bens patrimoniais e extrapatrimoniais. Dentro dos bens patrimoniais, nem todos são corpóreos, como as máquinas, instalações, materiais de escritório, etc. Também existem os bens patrimonais incorpóreos, que cada vez mais vêm aumentando sua participação no patrimônio total das pessoas jurídicas. São inúmeros os exemplos de empresas em que a grande parte do seu patrimônio é composto por bens imateriais. Em muitos casos, somente o nome vale bilhões de dólares (Coca-Cola, Marlboro, Nike, etc).
Obviamente esse patrimônio imaterial não cai do céu. Ele é resultado da tradição, qualidade dos produtos, eficiência organizacional, pontualidade nos pagamentos, etc. Muitas vezes é resultado de maciços investimentos em imagem, realizado por campanhas sistemáticas de propaganda.
Não há dúvida que esses fatores agregam substancial valor à empresa, e não são raros os exemplos de empresas que valem bilhões mas possuem pouco patrimônio material. Essa regra é válida tanto para as gigantescas corporações multinacionais quanto para o pequeno comerciante de esquina.
Além de possuir bens patrimoniais, é indiscutível que as pessoas jurídicas possuem também bens extrapatrimoniais como a credibilidade, reputação, confiança do consumidor, etc., todos ligados à sua honra subjetiva. Dependendo do grau da lesão a esses bens, uma empresa pode ser levada até à bancarrota, especialmente se ocorrer num mercado aberto e de grande concorrência.
Todos aqueles que negam que a pessoa jurídica porssa sofrer dano moral partem do pressuposto evidente e incontestável de que a mesma não é um ser vivo, portanto não sofrem padecimentos espirituais.
SILVA, um dos autores que encontra-se entre os que negam a existência do dano moral em relação a pessoa jurídica, escreveu com maestria:
Ora, a pessoa jurídica não é um ser orgânico, vivo, dotado de um sistema nervoso, de uma sensibilidade, e, como tal, apenas poderia subsistir como simples criação ou ficção de direito. ( ... )
Seriam, pois, assim, para os efeitos dos danos morais, as pessoas jurídicas meras abstrações, não tendo mais vida que a que lhes é emprestada pela inteligência ou pelo direito. Seriam vivas apenas para os juristas que lhes não podem comunicar, ao corpo, o quente calor animal e a divina chama da alma, não tendo, pois, capacidade afetiva ou receptividade sensorial.
Não se angustiam, não sofrem.
Não seriam, jamais, suscetíveis dos danos anímicos que lhes não poderia insuflar a mais sutil casuística (1).
Mas se não sofrem dano moral, como dizem, de que natureza seriam os danos cometidos à sua honra objetiva, como o bom nome, a imagem, a reputação, e o conceito que as pessoas jurídicas desfrutam na sociedade?
A saída encontrada pela maioria dos que negam o dano moral da pessoa jurídica é a utilização da tese da indenização do dano patrimonial indireto, ou seja, indeniza-se somente se ocorrer um dano patrimonial. O absurdo dessa tese é associar um primeiro fenômeno a ocorrência de um segundo, de forma a anular esse primeiro fenômeno. Assim, o dano moral na verdade nunca é considerado, pois o que se indeniza é tão somente o dano patrimonial. Relembrando aquele velho slogan repetido por comerciantes ambulantes, é o mesmo que dizer "mulher bonita não paga, mas também não leva!". Significa que se a mulher for bonita, pode levar a mercadoria de graça, desde que pague, mas se a mulher for feia...
Essa tese, além de ser um verdadeiro absurdo lógico, encontra uma grande dificuldade em explicar o dano moral a uma pessoa jurídica sem fins lucrativos, como as associações beneficentes, fundações, clubes, organismos internacionais, governos, etc. Ficariam essas pessoas absolutamente desprotegidas pelo direito somente porque não visam ao lucro, e seus agressores poderiam ficar absolutamente tranqüilos, sem medo de serem obrigados a indenizar ou de serem punidos por suas atitudes anti-sociais?
No próprio ordenamento constitucional podemos observar que o dano moral às pessoas jurídicas é perfeitamente cabível, pois os incisos V e X ,do artigo 5º da Constituição Federal prescrevem que:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
É interessante notar que no inciso X não existe qualquer distinção entre pessoa natural ou jurídica, o que desautoriza qualquer tentativa de fazê-lo.
Mas mesmo se não houvesse essa garantia constitucional, seria correto que uma pessoa jurídica vítima de um dano moral somente pudesse deduzir uma pretensão em juízo de natureza indenizatória se houvesse dano material?
Se a resposta a essa indagacão for positiva, estaríamos ferindo um princípio constitucional positivado no inciso XXXV do artigo 5º: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", ou mesmo o artigo 75 do Código Civil: "A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura".
Negar esses princípios seria deixar as pessoas jurídicas à mercê de toda espécie de abusos e violações aos seus direitos que nem sempre são de ordem patrimonial.
Felizmente, a tendência atual é considerar que todas as pessoas, tanto as físicas quanto as jurídicas, possuem honra objetiva que devem ser tutelada pelo direito, independentemente da ocorrência de danos patrimoniais.
Essa visão baseia-se no fato de que, para a ciência do direito a noção de pessoa é sobretudo uma noção jurídica, e não filosófica ou biológica.
Para saber se certos entes são sujeitos de Direito, não é necessário examinar se constituem pessoas no sentido filosófico da palavra, mas perguntar somente se são de uma natureza tal que devam ser-lhes atribuídos direitos subjetivos. Em conseqüência, estabelecer quais são esses entes é um problemas eminentemente técnico, que a ciência jurídica deve resolver, estabelecendo a quais fenômenos da vida jurídica deve ser aplicado (2).
Não há como negar que mesmo as pessoas jurídicas possuem um conceito social baseado em valores estabelecidos pela própria sociedade, como por exemplo, a respeitabilidade, a confiança, a reputação, a honra, e até mesmo a afetividade que as pessoas mantêm em relação a elas. Mas também não há como negar que qualquer ataque a esse patrimônio ideal, por maior que seja esse ataque, não tem o poder de produzir dor moral, muito menos dor psíquica, pois falta à pessoa jurídica vida orgânica. Nenhuma pessoa jurídica é um ente biológico, mas um sistema organizacional criado pelo próprio homem em sociedade.
Assim, ficamos em uma situação aparentemente sem saída: por um lado não podemos negar que a pessoa jurídica possui valores morais que devem ser tutelados pelo direito, mas de outro lado ficamos sem possibilidade de aplicação da indenização por danos morais ao ofensor, uma vez que esse tipo de indenização tem um objetivo muito restrito que é mitigar e compensar a dor, e a dor não pode ser sentida pela pessoa jurídica pela ausência de um substrato biológico.
Nem ao menos podemos aceitar a tese do dano patrimonial indireto, que além de absurda, também tem o grave inconveniente de não proteger a pessoa jurídica sem fins lucrativos.
Restou-nos somente a pena civil.
Assim, a única possibilidade que nos resta para não deixar passar in albis o dano moral à pessoa jurídica, é considerar os valores desembolsados pelo causador do dano não como indenização, mas como pena civil.
Mas na imensa maioria dos casos, o dano moral à pessoa jurídica acaba trazendo algum tipo de dano patrimonial em cumulação remota, ou seja, num primeiro momento causa um dano não patrimonial, mas que logo em seguida transforma-se num dano patrimonial. Assim, uma informação inverídica e maliciosamente divulgada a respeito de um produto, por exemplo, pode fazer com que o consumidor deixe de comprar esse produto, provocando uma conseqüente queda no faturamento da empresa, o que nada mais é do que um dano patrimonial. Primeiro ocorre um dano moral, para algum tempo após surgir o dano patrimonial.
Esse fenômeno ocorre com muito mais freqüência do que ocorreria com as pessoas físicas, isso porque o objetivo básico da existência da pessoa jurídica com fins lucrativos (empresa) é a circulação da mercadoria com o objetivo de lucro. É claro que qualquer ação que interfira negativamente nessa circulação, acaba por refletir-se na queda dos lucros.
Esse dano patrimonial pode ser quantificado e expresso em dinheiro, e o seu quantum pode ser estabelecido de maneira objetiva pelo juiz.
Mas a função social da empresa assume grande relevância nos dias atuais, e não se pode mais pensar a empresa somente como uma máquina de produzir lucro.
A empresa, assim como as pessoas jurídicas sem fins lucrativos, também tem direitos e deveres análogos à pessoa física, excetuando-se, é claro, aqueles que relacionam-se com a existência biológica.
Como não há no que se falar em indenização pelo padecimento espiritural e muito menos corpóreo, a pena civil cumpriria o papel de punir o agressor, que em última análise feriu toda a sociedade através de sua ação mesquinha.
CONCLUSÃO
A pessoa jurídica pode ser vítima de um dano em sua honra subjetiva, e esse dano quase sempre transforma-se num dano de natureza patrimonial. As pessoas jurídicas sem fins lucrativos, obviamente, não sofrem esse abalo patrimonial, mas mesmo assim podem ser vítimas de um dano moral. Não existe propriamente indenização por danos morais no caso das empresas jurídicas, por ser impossível a ocorrência de dor psicológica a ser mitigada. Os valores desembolsados pelo causador do dano devem ser considerados como uma penalidade com função retributiva, pedagógica e exemplar, mas não como indenização strictu sensu.
NOTAS
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