Embora deite raízes na Revolução Francesa e no Terror jacobino, o terrorismo, tal como o conhecemos, pode ser considerado um fenômeno moderno, característico do século XX. Mas foi o século XXI a testemunhar o mais letal ataque terrorista de todos os tempos, a saber, a destruição das torres do World Trade Center, consumada no fatídico dia 11 de setembro de 2001. Tornou-se, desafortunadamente, um marco negativo na História da Humanidade ― a ponto de se difundir, desde então, o emprego da expressão "pós-Onze de Setembro" para designar fenômenos muito recentes da pós-modernidade. Mas não bastou. Ao "Onze de Setembro" seguiram-se outros atentados com igual alarido internacional, como o "Onze de Março", no metropolitano de Madrid (11.03.2004), e há pouco os atentados na Inglaterra (Londres, 07.07.2005 e 21.07.2005) e no Egito (Sharm el-Sheik e Naama Bay, 23.07.2005). Omitem-se, por evidente, inúmeros outros atentados de menores proporções, que se fossem arrolados, um a um, esgotariam o espaço útil deste texto.
A apreensão pública e a disseminação dos atentados terroristas pelos diversos países do globo suscitaram reações institucionais severas. No plano interno, os Estados instrumentalizaram o combate ao terrorismo pela via do Direito Penal, recrudescendo penas e privando terroristas do benefício de inextraditibilidade por crimes políticos. No plano internacional, sobreveio o fenômeno da cooperação policial e judiciária (bilateral, regional, comunitária, global). Numa panóplia aleatórica, citem-se, v.g, a Convenção para a prevenção e a repressão do terrorismo de 1937 (que sequer entrou em vigor), a 4ª Convenção de Genebra sobre a proteção de civis em tempo de guerra (12.08.1949 ¾ vide artigo 33), as Convenções de Tóquio (14.09.1963), Haia (16.12.1970) e Montreal (23.09.1971) sobre apoderamento ilícito de aeronaves, a Convenção para prevenir e sancionar atos de terrorismo configurados em delitos contra pessoas e extorsão conexa (Organização dos Estados Americanos ― Washington, 02.02.1971), a Convenção européia para a repressão do terrorismo (Comitê de Ministros do Conselho da Europa, 10.11.1976) e o próprio Tratado da União Européia que, no seu Título VI ("Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal"), inclui entre os novos objetivos da União a prevenção e a luta contra o racismo, a xenofobia e o terrorismo.
Neste trabalho, entretanto, interessa-me tão-só isolar os contornos sociojurídicos fundamentais da figura, com vistas à tipificação mais adequada do delito de terrorismo nos lindes do Direito Penal interno universal, e mesmo nas esferas do Direito Penal Internacional (i.e., nos lindes dos tratados internacionais de cooperação para persecução transnacional e aplicação do Direito Penal interno) ou do próprio Direito Internacional Penal (i.e., nos lindes dos tratados de instituição de tipos penais universais sob jurisdição penal internacional, como se deu com o Tratado de Roma e a criação do Tribunal Penal Internacional).
O propósito é relevante, uma vez que nem todos os Estados Democráticos de Direito possuem tipificação penal para o terrorismo no âmbito de suas legislações internas. Pode-se citar o caso brasileiro, em que a Constituição vigente considera o terrorismo um crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia (artigo 5º, XLIII, da CRFB), e o equipara aos chamados crimes hediondos (Lei 8.078/90), mas perde eficácia à mercê da inércia do legislador ordinário, que não autonomizou esse delito mediante tipos penais próprios. Cumpria-lhe fazer tal autonomização, pois é da competência do Poder Legislativo da União (artigo 22, I, da CRFB), e não do Poder Constituinte original ou derivado, legislar sobre Direito Penal e tipificar condutas humanas antijurídicas. A rigor, o Direito interno brasileiro possui apenas o artigo 20 da Lei 7.170, de 14.12.1983 (dita "Lei de Segurança Nacional"), sancionada no final do período político autoritário vicejante no país após 31.03.1964. Esse dispositivo penal faz menção, em seu preceito primário, aos "atos de terrorismo" em geral, mas não os define ou exemplifica, o que inspira insegurança (norma penal em branco):
"Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privadeo, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas. Pena ― reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos".
Ademais, a Lei 7.170/83 não participa do espírito ideológico que informa a atual previsão constitucional da figura, mesmo porque antecede a Constituição de 1988 e a própria (re)fundação do Estado Democrático de Direito. Logo, não atende ao programa penal da Constituição em vigor, merecendo, na melhor hipótese, reformulação legislativa.
Por outro lado, mesmo nos países que já tipificaram e autonomizaram o crime de terrorismo (como ocorre em Portugal, onde a matéria é regida pela Lei n. 52/2003, de 22 de agosto, que definiu penalmente o terrorismo nos seus artigos 2º a 5º, revogando os artigos 300º e 301º do CP), um estudo científico cuidado dos principais traços identificadores desse delito serve tanto à interpretação da norma penal quanto às proposições "de jure constituto", quando o caso.
Passemos, portanto, à análise do paradigma universal.
Desde logo, algumas ponderações iniciais são de rigor para a classificação jurídica do crime de terrorismo. Consoante a melhor doutrina, os crimes comuns vulneram interesses e bens jurídicos do indivíduo, da família, da sociedade civil ou do Estado (personalizado internamente através dos entes da Administração Direta e Indireta: União, Estados, Municípios, autarquias). Opõem-se aos crimes políticos, que lesam ou expõem a perigo de lesão a segurança interna ou externa do Estado, ou a própria personalidade deste.
No entanto, a criteriologia utilizada pela doutrina tradicional para preconizar aquela distinção é imprecisa. São de freqüente menção o critério objetivo (que leva em conta apenas a natureza do interesse jurídico lesado ou exposto a perigo de dano pela conduta do sujeito) e o critério subjetivo (que se resume na aferição de motivos de natureza política). Há ainda o critério misto "proprio sensu" ou cumulativo (que exige a verificação cumulativa daqueles elementos subjetivo e objetivo) e o critério alternativo (pelo qual o crime será político em se verificando o elemento objetivo ou, alternativamente, o elemento subjetivo). A Lei brasileira de Segurança Nacional (7.170/83) adotou o critério cumulativo, ao contrário do Código Penal italiano (artigo 8º), que deu guarida ao critério alternativo.
Originalmente, o terrorismo era reputado um crime político. Nada obstante, textos legislativos mais modernos (Strafgesetzbuch, § 129a; Código Penal espanhol, artigos 571 a 578; Código Penal português, artigos 300o e 301º; Código Penal francês, artigos 421-1 e 421-4 etc.) vêm consagrando, com vantagens, um conceito amplo de terrorismo, sem expressão política, por um lado privando os terroristas do direito à não-extradição e, por outro, desvencilhando o tipo penal do fim de agir político (conquanto se reconheça, à parte, a figura do terrorismo político).
Diz-se com vantagens, no aspecto conceitual, porque a observação metódica dos fatos revela que táticas terroristas têm sido utilizadas por grupos radicais indiferentes às ideologias políticas ou ao modelo político pelo qual o Estado se referencia. Arvoram bandeiras outras, como o fundamentalismo religioso (cuja letalidade já superou os parâmetros médios do terrorismo político tradicional) e até mesmo ideários positivos como o humanitarismo ou o ambientalismo, numa clara concessão à máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios.
Nessa senda, interessa identificar, a uma, o terrorismo político "stricto sensu", que ora se insurge contra a ordem político-institucional vigente, tentando por meios ilícitos subvertê-la ou modificá-la, ora adere mesmo àquela ordem, almejando mantê-la ou reforçá-la sob o império do medo e da violência sub-reptícia (como ocorre nos diversos "terrorismos de Estado"). Mas também exsurge, a duas, a figura inacabada do terrorismo social, que não tem expressão ou sentido estritamente político. A essa locução deve-se reservar uma definição negativa, compreensiva de todas as formas de terrorismo que não se vinculam a motivações políticas. Isso inclui o terrorismo religioso, o terrorismo ambiental (como se viu na década de noventa, com a detonação de explosivos em redes de fast-food à base de carne vermelha), o terrorismo humanitário (como nas cartas-armadilha enviadas, há alguns anos, a diversas clínicas norte-americanas de interrupção voluntária da gravidez), o terrorismo econômico (contrário à hegemonia do capital financeiro e às suas conseqüências) e todas as outras espécies que venham a se firmar na sociedade global pós-moderna.
Nesse diapasão, se bem que a norma penal em branco e o tipo penal aberto não sejam recomendáveis nessa matéria (supra), uma definição suficientemente ampla do terrorismo parece mais oportuna no campo jurídico-penal e político-criminal, por diversas razões. Vejamos:
- um conceito estrito de terrorismo, com vocação exclusivamente política, inviabilizaria a especialização e majoração das penas nas hipóteses em que, conquanto não haja motivação política, a conduta delitiva se arrima na estratégia do terror para a consecução de objetivos preordenados;
- prevalecendo a tônica político-criminal da reprimenda mais severa aos atos terroristas, o conceito estrito de terrorismo ensejaria uma dicotomia conceitual desnecessária e anti-científica entre o terrorismo (político) e um "não-terrorismo" que a ele ontologicamente se equipara, mas que dele legalmente discreparia;
- a estratégia do terror como método de condicionar comportamentos sociais tem se difundido entre grupos radicais que pugnam por interesses socialmente valiosos (humanitários, ecológicos, econômicos, etc.), merecenco igual tratamento pela lei penal, à mercê de uma ética de princípios que deve dirigir a legiferência penal e que não vingaria à luz de um conceito estrito;
- o estudo atual do Direito comparado parece recomendar a conceituação ampla;
- o conceito ampliado atende às reivindicações de desqualificação do terrorismo enquanto crime político, para que seus agentes não se favoreçam com certos privilégios (especialmente a inextraditibilidade).
Ao mais, a tipificação penal dos fatos sociais amiúde designados pela expressão "terrorismo" deve sempre contemplar certas notas fundamentais sociológicas, que também se extraem da experiência estrangeira e do Direito comparado e relevam-se por tudo idôneas na perspectiva da construção legislativa dos tipos criminais e/ou da sua interpretação conforme. Intronizá-las contribui para prevenir confusões e garantir, numa ótica garantista, suficiente precisão a um tipo penal necessariamente amplo (princípio da "lex certa").
Tais notas são as seguintes:
(a) a indiscriminação das vítimas a atingir (= efeitos difusos do crime de terrorismo);
(b) a tranqüilidade pública e/ou a ordem pública como objetividade(s) jurídica(s) principal(is), a despeito do caráter geralmente pluriofensivo;
(c) uma descrição formal-objetiva abrangente, a um tempo, da lesão e da ameaça de lesão a direito ou interesse juridicamente protegido (sem prejuízo da objetividade jurídica primeva);
(d) o caráter pluriofensivo diferenciado: as ofensas às objetividades jurídicas "secundárias" (vida, integridade física, liberdade, saúde pública, segurança dos meios de transporte, etc.) são apenas um meio para atingir eficazmente a objetividade jurídica principal, o que significa que, por um lado, não podem engatilhar punições autônomas (princípio da consunção) e, por outro, devem influenciar a fixação da pena-base, o que pressupõe amplo espectro dosimétrico nos preceitos penais secundários (no Brasil, à vista das penas previstas nos artigos 121, 129 e 250-278 do CP ― crime de homicídio, crime de lesões corporais e crimes contra a incolumidade pública ―, sugerem-se penas reclusivas de um a vinte anos, com subtipos qualificados em função do resultado, chegando a penas de trinta anos);
(e) o elemento subjetivo complexo, abrangente do dolo genérico na realização da conduta típica (que poderá coincidir naturalisticamente com as condutas típicas de outras normas penais incriminadoras, como explicitamente se verifica no ordenamento alemão ¾ § 129a do StGB) e do dolo específico para a consecução de um fim especial, fora do fato material em si mesmo, que é a intimidação difusa (volte-se ela aos Poderes Públicos ou a segmentos da sociedade);
(f) a ideação de tipos penais de ação múltipla (i.e., tipos que descrevam uma variedade de condutas específicas tendentes à vulneração de mesma objetividade jurídica, como se vê, p. ex., no artigo 260 do Código Penal brasileiro) associados a cláusulas gerais que permitam a interpretação analógica ou extensiva, não só como decorrência do caráter pluriofensivo dos atos terroristas, mas também em função da mórbida criatividade humana no que se refere às formas possíveis de atentados, e ainda para que não haja, em contextos de novidade, ofensa sensível ao princípio constitucional da legalidade estrita (artigo 5º, XXXIX, da CRFB; artigo 29º da CRP);
(g) o substrato ideológico compartilhado da conduta incriminada, no sentido de que os atos de terrorismo consubstanciam uma guerra ideológica invisível de certo(s) grupo(s) aos comportamentos estatais, sociais e individuais que obstem à perpetuação da "causa" eleita (conquanto seja prescindível, em todo caso, a base organizacional ― i.e., a existência de uma organização criminosa ―, como se exige no artigo 571 do Código Penal espanhol e em outros ordenamentos internos).
Observadas essas notas, a persecução penal dos atos de terrorismo far-se-á em maior sintonia com as exigências do garantismo penal, sem transigir com a violência e a virulência da atividade terrorista no limiar do século XXI. Funda-se o "jus puniendi" em padrões rigorosamente científicos, profligando qualquer predisposição contra-ideológica do Estado-legislador.