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Apontamentos para uma teoria dos entes despersonalizados

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Em regra, o que se lê é que "sujeito de direito" é sinônimo de "ente personalizado". A doutrina se ressente da falta de desenvolvimento da teoria dos entes despersonalizados, que podem ser encontrados em nosso direito positivo.

Sumário:1. Introdução. 2. O Conceito Tradicional de Pessoa (como sujeito único de direitos). 3. As perplexidades da Doutrina. 3.1. A Capacidade de ser parte dos Entes Despersonalizados. 4. Câmaras Municipais e os órgãos públicos despersonalizado. 5. Aspectos de uma Teoria dos Entes Despersonalizados. 5.1. Os Entes Despersonalizados e sua definição (gênero próximo e diferença específica). 5.2. A Legitimação e a Representação dos Entes Despersonalizados. 5.3. Outros Pontos. 6. Conclusão. 7. Bibliografia Referida.


1. Introdução

            Dentre as categorias técnicas e dogmáticas que compõem o sistema jurídico, reconhecidamente, o "sujeito de direito" tem ocupado uma posição central e basilar. Consideradas suas relações com outras categorias de grande importância, como a relação jurídica [01] e o próprio direito subjetivo, ainda mais se acentuam o interesse e a necessidade de se estabelecerem o conceito, a "natureza", e outros elementos úteis para a aplicação e articulação do instituto no sistema. Tanto assim que, em praticamente todas as obras didáticas acerca da parte geral do direito privado e da teoria geral do direito, um dos primeiros assuntos tratados se refere justamente às questões fundamentais concernentes a estes sujeitos.

            Todavia, o que se tem é que, como objeto desta "teoria dos sujeitos de direito", costumam os autores, com honrosas e raríssimas exceções, apontar apenas duas espécies de sujeitos de direito, quais sejam as pessoas naturais e as pessoas jurídicas. Em regra, o que se lê é que "sujeito de direito" é sinônimo de "ente personalizado". E é assim que a maioria esmagadora dos manuais e tratados enfrenta a questão, o que se reproduz em grande número de salas de aula, e perpetua certas concepções que, absolutamente, não têm mais lugar na teoria do direito.

            É neste ponto que se pode ressentir da falta de um maior desenvolvimento da teoria dos entes despersonalizados (que também são sujeitos de direito), figuras de que podem ser encontrados diversos exemplos em nosso direito positivo, mas em relação às quais nossa doutrina tem se negado a formular uma teoria (sempre ressalvando as raras exceções) verdadeiramente sistemática. Tal teoria, como entendemos, haveria de se inserir no contexto de uma teoria mais ampla, a dos sujeitos de direito, com a explicação de aspectos como a representação (ou "presentação", como possa preferir Pontes de Miranda) dos sujeitos de direito não dotados de personalidade, a legitimação, a diferença específica em relação aos entes personalizados, a distinção entre os entes personalizados em geral e o ente despersonalizado humano, etc.

            A proposta deste pequeno texto, qual seja, a de propor pontos básicos em torno dos quais se possa erigir uma "teoria dos entes despersonalizados", é feita não com a intenção de que dela resultem maiores novidades na aplicação do direito positivo, mas somente com objetivo de estimular uma discussão que propicie um melhor entendimento do sistema, e a erradicação de certas perplexidades, baseadas tão-somente em entendimentos decorrentes do argumento da autoridade e em nossa própria inércia.


2. O Conceito Tradicional de Pessoa (como único sujeito de direitos)

            Consolidada no início do século XX a teoria da personalidade jurídica, assentou-se na doutrina pátria um conceito de pessoa que, apesar das perplexidades em que resultaria, foi sendo reproduzido por nossos autores quase que, digamos assim, a partir da autoridade tanto de juristas brasileiros quanto de outros tantos europeus. Referimo-nos, aqui, ao entendimento segundo o qual pessoa é sinônimo de sujeito de direitos.

            Trata-se de entendimento que, aliás, continua presente em porção preponderante das obras didáticas destinadas aos cursos de graduação em direito e aos profissionais da área, considerados não apenas autores tradicionais nos bancos universitários (como Sílvio Rodrigues, Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, Washington de Barros Monteiro, Maria Helena Diniz), mas também aqueles que, nos dias que correm, têm estabelecido seu espaço no mercado editorial (Sílvio de Salvo Venosa, Carlos Roberto Gonçalves, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, etc.).

            Maria Helena Diniz, por exemplo, informa aos estudantes, desde o seu Compêndio de Introdução à Ciência do Direito (livro com o qual, aliás, costuma-se ter contato no primeiro ano da graduação em direito), que "para a doutrina tradicional pessoa é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito" [02]. Contrapõe, na seqüência, à teoria da equiparação (sujeito = pessoa), a opinião, que atribui a Kelsen, de que o conceito de sujeito jurídico seria uma mera unidade de direitos e obrigações a que se denomina pessoa, e, enfim, opta pelo primeiro destes entendimentos. "Entre essas duas concepções ficamos com a primeira (...)". [03]

            Em Orlando Gomes, "sujeito de direito é a pessoa a quem a lei atribui a faculdade ou a obrigação de agir, exercendo poderes ou cumprindo deveres" [04], conceito este que, além do perigo em que incorre ao tratar a titularidade dos direitos como legitimação para agir, claramente restringe a noção de sujeito à de pessoa. O que, aliás, deixa muito mais claro o autor quando passa a enfrentar, na mesma obra, páginas adiante, o problema da condição jurídica do nascituro.

            Para Washington de Barros, "na acepção jurídica, pessoa é o ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. Nesse sentido, pessoa é o sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica" [05]. E, para não deixar dúvida quanto à equiparação entre as noções de pessoa e de sujeito de direito, o autor ainda afirma que "direito é relação que se estabelece exclusivamente de pessoa para pessoa. (...) O direito rege relações de pessoas entre si". [06]

            Venosa, por exemplo, ao expor em seu curso de direito civil a disciplina dos sujeitos de direito, apresenta-nos dois deles, a pessoa natural e a pessoa jurídica. Além disso, ensina que "no estágio atual do direito, entendemos por pessoa o ser ao qual se atribuem direitos e obrigações. (...) A personalidade, no campo jurídico, é a própria capacidade jurídica, a possibilidade de figurar nos pólos da relação jurídica". [07]

            No mesmo sentido Gagliano e Pamplona Filho, de acordo com quem "a personalidade jurídica, portanto, para a teoria geral do direito civil, é a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de direito". [08]

            Também Marco Aurélio Viana, para quem a "personalidade é a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações, que a ordem jurídica reconhece ao ser humano considerado individualmente (pessoa natural) ou em grupo (sociedade, associação, fundação)." [09]

            Ou ainda, de forma mais contundente, Carlos Roberto Gonçalves, partindo da concepção segundo a qual as relações jurídicas só se constituem entre pessoas, enuncia, valendo-se de Washington de Barros, que "no direito moderno, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica". [10] E esta opinião, que talvez seja mesmo acertada em relação ao direito moderno, não nos parece servir em relação ao hodierno.

            Este arrolamento de autores poderia ir ainda muito além, mas, ao que nos parece, a autoridade, quando não a tradição dos já apontados, é suficiente para demonstrar a ampla aceitação e reprodução da doutrina segundo a qual pessoa e sujeito de direito são uma única e mesma coisa. Trata-se do entendimento ao qual denominaremos teoria da equiparação, e que, por si só, de duas uma: ou impossibilita a elaboração de uma teoria dos entes despersonalizados ou a autoriza, desde que, em tal teoria, os entes despersonalizados não sejam alçados à qualidade de sujeitos de direito.

            O problema é que a aceitação de uma teoria que não reconheça a aptidão que certos entes não dotados de personalidade têm para a titularidade de direitos, não teria nenhuma função senão a de reproduzir a noção, tão equivocada quanto preponderante, que é a da "equiparação". Não teria, portanto, a qualidade de superar alguns entendimentos contraproducentes já incrustados na doutrina, nem a de dar resposta a certas perplexidades.


3. As perplexidades da Doutrina

            A equiparação dos conceitos de pessoa e sujeito de direitos tem gerado, em doutrina, algumas perplexidades, que, ainda que na maior parte das vezes não resultem em imbróglio ou insegurança na solução de casos concretos, têm colaborado para eternizar questões e debates já totalmente superados. Desta espécie são, a título de exemplo, certas discussões acerca da personalidade dos nascituros, da legitimidade processual de alguns entes despersonalizados ou mesmo o debate sobre os "direitos dos animais". Vejamos:

            Seria cômico, se não fosse quase trágico, o debate em que se perderam e ainda se perdem os autores, sobre a existência ou não da personalidade no nascituro. O nó górdio desta questão, que parte sempre da premissa de que só as pessoas são sujeitos de direitos (equiparação), reside na impossibilidade de aceitar o inegável fato de que o sistema atribui direitos aos nascituros (art. 2°, segunda parte, CC/2002 [11]; e art. 4°, segunda parte, CC/1916 [12]) no mesmo artigo do Código Civil em que lhes nega a personalidade. Como conciliar tais dispositivos sem atribuir direitos a quem não tem personalidade? Não sabemos.

            Não reconhecemos, em todo o ordenamento, dispositivo mais claro no sentido de estender a qualidade de sujeito de direitos a um ente despersonalizado. Diz, literalmente, não só que quem não nasceu não é pessoa, mas também reafirma que, ainda assim, (não sendo pessoa) tem seus direitos reconhecidos. Mas, como o dogma da equiparação (pessoa = sujeito de direitos) já houvesse se estabelecido entre os doutrinadores, dividiram-se estes entre os que conferiram personalidade ao nascituro (já que tem direitos), e os que tentaram, através de categorias jurídicas gerais (condição), explicar que o nascituro não tinha direitos, mas apenas expectativas ou direitos sob condição suspensiva [13].

            Em face das correntes doutrinárias originadas da falta de uma teoria dos entes despersonalizados, é cabível a seguinte classificação, já tradicional quanto ao assunto, que divide as teorias em: a) natalista, b) da personalidade condicional, e c) concepcionista. Para a teoria natalista, mais aproximada de nosso entendimento, devem ser reconhecidos os direitos do nascituro, sem que isto resulte em sua personalização. Já os adeptos da teoria da personalidade condicional admitem a personalidade desde a concepção, sob a condição de que se dê o nascimento com vida. E, por fim, para os concepcionistas, o nascituro é dotado de personalidade.

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            Ao nosso ver, se, aos adeptos da teoria natalista, a falta de uma teoria dos entes despersonalizados (conjugada com a teoria da equiparação) fez buscar outras categorias referentes ao plano da eficácia (as condições) para explicar como o despersonalizado poderia ter "direitos", aos seguidores da teoria concepcionista, os mesmos motivos fizeram desconsiderar a literalidade da lei, quando esta enuncia que a personalidade da pessoa natural começa com o nascimento com vida, e declarar que o nascituro é dotado de personalidade.

            Garcia Rodrigues nos dá notícia destas teorias em texto no qual explica que "a teoria da personalidade condicional consiste na afirmação da personalidade desde a concepção, sob a condição de nascer com vida. Desta forma a aquisição de direitos pelo nascituro operaria sob a forma de condição resolutiva, portanto, na hipótese de não se verificar nascimento com vida, não haveria personalidade". E apresenta a posição do respeitável romanista, Francisco Amaral, como ilustrativa da tese concepcionista. "Francisco Amaral entende que, da análise sistemática do código civil de 1916 é possível concluir que existem hipóteses em que o feto, desde a sua concepção, pode figurar como sujeito de direitos em uma dada relação jurídica, posição esta que só poderia ser ocupada por uma pessoa. Assim, segundo tal posicionamento, nascituro é a pessoa que está por nascer, já concebida no ventre materno" [14].

            Já Caio Mário utiliza, com fulcro em Windscheid, a idéia de direitos potenciais. Para nosso civilista, "o nascituro ainda não é uma pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire a personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto, relação jurídica; mas, se se frustra, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já é ele sujeito de direitos" [15].

            Ao nosso ver, não é dos mais satisfatórios o entendimento, inarredável sob a égide da equiparação, de que o nascituro não seja sujeito de direitos simplesmente pelo fato de não ser pessoa. Se for possível que a teoria condicional dos direitos possa ser útil para explicar certos direitos patrimoniais, não é menos certo que alguns direitos, como o direito à vida, por exemplo, o nascituro os tem incondicionalmente, desde que exista [16]. Ainda sendo possível que alguns direitos do nascituro estejam sob pendência de condição, não é correto entender que todos os direitos o estejam. [17]

            Mas é o que pensa Washington de Barros, para quem o nascituro é "pessoa condicional" ou, ainda, com Planiol, objeto de "antecipação de personalidade". [18] Na mesma linha está Viana, para quem, "na verdade os direitos assegurados ao nascituro encontram-se em estado potencial, na dependência do nascimento com vida para que se cristalize. Se ele nasce morto, aqueles direitos não se constituem. Assim, antes do nascimento o nascituro não é sujeito de direito, nem se reconhece personalidade. (...) Estamos diante daquilo que alguns denominam personalidade fictícia. O nascituro não tem personalidade, mas como adquire direito se nascer com vida, o direito age como se ele a tivesse". [19]

            Em Orlando Gomes, "a lei assegura direitos ao nascituro, se nascer com vida. Não tem personalidade, mas, desde a concepção, é como se tivesse. (...) Estas ficções atribuem personalidade porque reconhecem, nos beneficiados, a aptidão para ter direitos, mas é logicamente absurdo admitir a condição de pessoa natural a quem ainda não nasceu ou já morreu." [20]

            Exemplo expressivo do problema a que leva a equiparação (pessoa = sujeito de direitos) também pode ser encontrado em Sérgio Abdalla Semião, e em sua análise do art. 4° do Código Civil de 1916 (correspondente ao art. 2° do Código Civil de 2002), motivo pelo qual tomamos a liberdade de transcrever parte do raciocínio desse autorizado magistrado.

            "À primeira vista, tudo faz crer que na primeira parte do artigo o Código adere à escola natalista, para logo a seguir, na segunda parte, aderir à escola concepcionista. Considerando-se que, juridicamente, são pessoas apenas aqueles que são sujeitos de direitos e que a personalidade é um atributo das pessoas, o artigo estabelece normas contraditórias entre si [21]. Uma ao reverso da outra. Esta repele aquela, anulando-se mutuamente. Diante disso, impõe-se uma interpretação sistemática, sob pena de se negar vigência ao próprio artigo da lei." [22]

            Por fim, temos também Maria Helena Diniz, que une, em sua teoria, à noção concepcionista a da personalidade condicional. Sobre o nascituro diz que: "Se as normas o protegem é porque tem personalidade jurídica. Na vida intra-uterina ou mesmo in vitro, tem personalidade jurídica formal, relativamente aos direitos da personalidade, consagrados constitucionalmente, adquirindo personalidade jurídica material apenas se nascer com vida, ocasião em que será titular dos direitos patrimoniais que se encontravam em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e patrimonial por ele sofrido." [23]

            Digno de atenção é que Maria Helena, ao combinar as duas noções, aponte para o reconhecimento de que nenhuma delas é suficiente para explicar a condição jurídica (ou mesmo a natureza) do nascituro. Mas, como a teoria condicional não oferecesse explicação para os direitos plenos de eficácia já titularizados pelo nascituro, valeu-se a referida autora de uma distinção que, ao nosso ver, não se justifica, entre personalidade jurídica formal e personalidade jurídica material, e que, na obra, não se aprofunda nem se explica. E nem aqui o tentaremos fazer, já que não comungamos do pressuposto conceitual que eventualmente faria as vezes de fundamento legitimador da distinção proposta.

            Notável que estas teorias, ainda que consideradas contrárias, tenham todas partido de uma mesma e equivocada premissa fundamental: a equiparação. Tudo isto, portanto, em função da falta de uma teoria dos entes despersonalizados que assentasse o princípio de que sujeito de direitos é gênero, cujas espécies são a pessoa e o ente despersonalizado.

            O nascituro, portanto, tem direitos não condicionais? Tem. E é, por acaso, dotado de personalidade? Não, e nem é como se fosse, ainda que, como ser humano, seja tratado de acordo com tal especificidade.

            Mas não é só em relação ao nascituro que a equiparação oferece problemas. Vejamos:

            A existência, no ordenamento jurídico, de normas que estabelecem regras de conduta para os seres humanos em relação aos animais não é novidade nenhuma. E nem quer significar, com isso, que se trate necessariamente de direitos cujos titulares sejam os animais (irracionais).

            O fato de que nos seja vedada determinada conduta em relação a um ser ou uma coisa não quer significar por si só que o ser ou coisa tenha o direito à omissão de minha conduta. A proibição que incide sobre a conduta de Luciana de destruir uma coisa objeto de propriedade de Elizabeth, por exemplo, existe em respeito a um direito de Elizabeth, e não da coisa. Esta, aliás, é a hipótese que se verifica em larga parcela da legislação que regula a conduta humana em relação aos animais.

            Nos últimos tempos, contudo, e com a evolução legislativa e doutrinária que tem sofrido o direito ambiental, a explicação segundo a qual as condutas determinadas em relação aos animais assim o são em respeito ao direito de pessoas parece não estar sendo suficiente.

            Em 1978 foi proclamada, em assembléia da Unesco, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Dentre outros direitos, arrolou, em favor dos animais, o direito à existência, ao respeito, à cura, à proteção do homem e a não ser submetido a maus-tratos e atos cruéis. Sendo sua morte necessária, há de ser instantânea, sem dor ou angústia. Neste texto legislativo, o mais interessante para nossos objetivos é que nem toda conduta vedada ou obrigatória em relação aos animais pode ser justificada sob o argumento de que tal conduta (ou sua omissão) se dê em favor do direito de uma pessoa.

            A Constituição Federal de 1988 traz dispositivo que, estabelecendo o direito de todos a um meio ambiente equilibrado (no qual se inclui a fauna), determina ao poder público que proteja a fauna e a flora, vedando as práticas que colocam em risco a sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (CF, art. 225, § 1°, VII). Da análise desta norma, assim como de diversas outras contidas em legislação ordinária, é possível perceber que a maioria das regras de conduta a respeito dos animais tem como fundamento o direito difuso ao meio ambiente (no qual se insere a fauna), ou outros direitos individuais das pessoas. São regras como as que estabelecem sanção penal para os atos danosos à fauna (Lei 6.938/81, art. 15), as que tratam da guarda e circulação de cães em logradouros públicos, as que proíbem certo comércio de espécimes da fauna silvestre (Lei 5.197/67, art. 3°), ou limitam as espécies passíveis de serem objeto de caça, ou mesmo proíbem a caça em certos locais (Lei 5.197/67, art. 10, "e", "f", "g", "h", "i" e "j").

            Em relação a isto, Caio Mário, por exemplo, com apoio em Planiol, Ripert e Boulanger, ao explicar que as regras que determinam certas condutas em relação aos animais não constituem direitos destes, assim expõe o raciocínio: "Certo, também, que os animais são defendidos de maus-tratos, que a lei proíbe, como interdiz também a caça na época da cria. Mas não são, por isso, portadores de personalidade, nem têm um direito a tal ou qual tratamento, o qual lhes é dispensado em razão de sua utilidade para o homem, e ainda com o propósito de amenizar os costumes e impedir brutalidades inúteis". [24]

            Washington de Barros concorda que "existem, sem dúvida, leis de proteção aos irracionais (...). Por meio de seus dispositivos, estão eles a salvo contra atos de crueldade, de destruição, de perseguição ou de extinção. Nem por isso, entretanto, tornam-se sujeitos de direito. Como dizem Ruggiero-Maroi, os animais são tomados em consideração apenas para fins sociais, pela necessidade de se elevar o sentimento humano, evitando-se o espetáculo degradante de perversa brutalidade". [25]

            E também Viana, entendendo que "os animais não conhecem a personalidade. A legislação que os protege visa resguardá-los de maus-tratos, de atos de crueldade, sem que isso signifique que lhes seja atribuído um direito." [26]

            Mas, desde a própria constituição, há regras outras que não se encaixam em tal noção majoritária. São regras em que o único beneficiado (salvo, em prol da sociedade, a manutenção de um relativo nível de "humanidade") por sua observância é o próprio animal, não a fauna, e muitas vezes em conflito com os direitos do próprio proprietário. Desta espécie é a regra que veda a prática de atos cruéis contra os animais (CF, art. 225, § 1°, VII). Não me parece, no caso, que a proibição ao tratamento cruel exista em prol de um meio ambiente equilibrado ou do direito de propriedade (pois pode se opor a este). Da mesma forma quando se estabelecem regras que proíbem que a caça ou apanha do animal se dê por meio de atiradeiras, fundas, veneno ou armadilhas que maltratem a caça [27] (Lei 5.197/67, art. 10, "a"); e também grande parte das normas contidas na Declaração Universal dos Direitos dos Animais.

            Mas a atribuição de direitos aos animais não pode se dar em uma doutrina que vê a pessoa onde a lei apresenta apenas o sujeito de direitos. Outras questões, como a legitimação extraordinária para agir em benefício dos animais e a extensão de seus "direitos", são facilmente resolvíveis com o instrumental de que dispomos em nosso direito positivo. O nó "lógico" está na equiparação.

            O que queremos deixar estabelecido é que tanto quanto há normas de conduta referentes aos animais, as quais se justificam em função de direitos - que podem ou não ser difusos - das pessoas, há também regras que só se justificam em face de certas prerrogativas atribuídas ao próprio animal. Em confronto com o problema, é forçosa a opção dos que entendem que só as pessoas podem ser sujeito de direitos, no sentido de excluir a possibilidade de existirem direitos titularizados pelos animais, pois estender a personalidade aos mesmos seria algo muito menos palatável, sendo mesmo inaceitável em face de nosso ordenamento (ponto este com o qual, aliás, concordamos).

            Ocorre que, se, para um ativista dos direitos dos animais, cogitar sobre a existência ou não de direitos (no sentido técnico) titularizados por estes pouco importa, contanto que o tratamento dado a eles seja digno e condizente com sua natureza, para o jurista resta o dever de dar explicação técnica para a figura que se apresenta, sem cair na tentação de equiparar os animais às pessoas, ou incidir no silogismo, tão equivocado quanto divertido, segundo o qual sendo os homens animais, são também os direitos dos animais direitos humanos.

            Construção teórica que, nos limites da teoria da equiparação (sujeito de direitos = pessoa) apresente solução razoável à questão em comento, ao que saibamos, não existe, ou melhor, não foi publicada. E não nos parece, inclusive, tal solução ser possível, senão através de uma teoria dos sujeitos de direito que reconheça direitos também a certos entes despersonalizados. Neste caso, a problemática seria transferida, ao nosso ver, para outros aspectos da questão, quais sejam, por exemplo, o da possibilidade de que um objeto (animal irracional) possa ser também sujeito de direitos, e o da diferenciação entre os entes despersonalizados irracionais de outros de tipos diversos. Poder-se-ia, por este caminho, colocar em xeque outros aspectos da teoria dominante acerca dos sujeitos de direito, mas não sem prejuízo dos limitados objetivos deste ensaio.

            3.1 A Capacidade de ser parte dos Entes Despersonalizados

            Se, como tentamos demonstrar, como regra, a doutrina tem desconsiderado a categoria dos entes despersonalizados, há juristas que, ao se debruçarem sobre o estudo dos sujeitos do processo, mais especificamente das partes no processo, têm identificado a existência destes sujeitos de direito. Ainda que não nos proponham, os processualistas, uma verdadeira teoria dos entes despersonalizados, não lhes pode ser negado o mérito de reconhecer a estes a qualidade de sujeitos de direito, inclusive no plano material.

            De acordo com Cândido Rangel Dinamarco, "capacidade de ser parte é a qualidade atribuída a todos os entes que possam tornar-se titulares das situações jurídicas integradas na relação jurídica processual". [28] Em regra, a parte é quem, no plano do direito material, se apresenta como titular dos direitos discutidos no processo: trata-se do que se conhece como legitimação ordinária. Mas hipóteses há, também, em que quem demanda o faz em nome próprio, a respeito dos direitos de outrem (sem que seja o caso de representação), e neste caso a legitimação processual do demandante (ou do demandado) é chamada extraordinária. Em suma, se quem está no pólo da relação processual o ocupa para tratar de direito próprio, trata-se de legitimação ordinária, e se de direito alheio, mas ainda assim em nome próprio, de legitimação extraordinária.

            A ciência do processo tem estabelecido o conceito de parte com fundamento exclusivo na relação jurídica processual, o que significa dizer que a parte no processo não será necessariamente a parte legítima e, ainda que o seja, poderá não ser dotada da titularidade da relação jurídica de direito material correspondente (legitimação extraordinária). E porque os processualistas [29], de longa data, já não equiparam as partes aos titulares do direito versado no processo (embora seja esta a regra – legitimação ordinária), não lhes parece estranha a idéia de entes despersonalizados dotados de capacidade processual. Até porque, como veremos, é o próprio direito positivo que assim o estabelece.

            A doutrina processual tem reconhecido aos entes despersonalizados a qualidade de legitimados ordinários para figurarem na relação processual, até mesmo pela inviabilidade de se aplicar a hipótese de legitimação extraordinária a todas as situações em que se pode deparar com um ente despersonalizado no pólo da relação processual [30]. Assim, sendo, ainda que sem aprofundar as conseqüências do entendimento, a doutrina processual vem reconhecendo, muito mais do que a material, que certos entes despersonalizados são sujeitos de direitos, e, nesta qualidade, aptos a figurar em um dos pólos da relação jurídica processual.

            E não poderia ser de outra forma, pois é o próprio código de processo, na enumeração contida em seu art. 12, que traz referência a alguns entes despersonalizados em relação aos quais reconhece e atribui capacidade processual. É o caso da massa falida, da herança jacente, do espólio, das sociedades sem personalidade jurídica e do condomínio especial [31].

            Vicente Greco Filho, por exemplo, dentre as "exigências" para a existência da capacidade processual, enumera a "capacidade de ser parte", entendida como a aptidão para figurar em um dos pólos de uma relação jurídica de direito material, ou ter direitos. Explica que tal exigência "refere-se à chamada capacidade de direito, isto é, a condição de ser pessoa natural ou jurídica, porque toda pessoa é capaz de direitos. É capaz de ser parte quem tem capacidade de direitos e obrigações nos termos da lei civil. Todavia, em caráter excepcional, a lei dá capacidade de ser parte para certas entidades sem personalidade jurídica" [32] (grifo nosso). E Arruda Alvim aduz que: "Vários conflitos de interesses poderão surgir relacionados com os entes despersonalizados, nominados no Código de Processo Civil, como a massa falida, a herança, por exemplo, e outros, ainda que não referidos no Código de Processo Civil." [33] E, para concluir o raciocínio, Ovídio Baptista: "Assim, poderão eventualmente comparecer em juízo, como autores ou como réus, certos organismos ou coletividade não personalizadas, tais como as mesas dos corpos legislativos, para as ações de mandado de segurança, o condomínio, a herança jacente, a massa falida, os consórcios de consumidores, etc." [34]

            Mas como a do processo não é uma ciência estanque, e compartilha de conceitos básicos com o "direito material", em alguns doutrinadores pode ser encontrada, bem na base, a teoria da equiparação. Tal como em Dinamarco, para quem "a lei do processo vai além e confere mera personalidade processual a alguns outros entes que, sem serem pessoas físicas ou jurídicas em sentido integral, são admitidas no processo como partes. (...) O que há em comum entre as pessoas físicas, as jurídicas e esses entes personalizados exclusivamente para fins processuais é a sua capacidade de serem titulares das situações jurídicas processuais – e, daí, a capacidade de serem partes" [35].

            O que não nos parece correto neste exemplo é que, como na proposta de Dinamarco, se atribua "personalidade processual" para que se explique a aptidão do ente despersonalizado para a titularidade das situações processuais. De duas uma, ou o ente despersonalizado seria substituto processual e, portanto, não necessariamente o titular da relação jurídica de direito material, ou, caso contrário, sua "personalidade" não poderia ser meramente processual. O que se dá, pelo que nos parece, é que, sendo o ente despersonalizado sujeito de direitos, eventualmente poderá integrar, legitimamente, um dos pólos da relação processual, em regra, demandando ou sendo demandado em hipótese de legitimação ordinária.

            Nada disso, porém, tira dos processualistas o mérito de apontar, com muito mais constância, para a existência de sujeitos de direitos não dotados de personalidade.

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Sobre o autor
Claudio Henrique Ribeiro da Silva

mestre em Direito Civil pela UFMG, doutorando em Direito Civil pela UFMG, professor de Direito do Unicentro Izabela Hendrix, em Belo Horizonte (MG) e da FDCL, em Conselheiro Lafaiete (MG), Professor de Direito Empresarial do Curso de Pós Graduação Lato Sensu em Direito Civil do IEC-PUC/MG, Professor de DParte Geral do Curso de Especialização em Direito Civil do CAD/GAMA FILHO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Claudio Henrique Ribeiro. Apontamentos para uma teoria dos entes despersonalizados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 809, 20 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7312. Acesso em: 29 mar. 2024.

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