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Mariposas que trabalham.

Uma etnografia da prostituição feminina na região central de Belo Horizonte

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08/10/2005 às 00:00
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A prostituição é a única forma honesta de amor, aquela que não se alimenta de mentiras. Na prostituição, o porco que está pagando sempre encontra o que procura, pois ele limita o seu desejo às coisas possíveis. Com uma amante desinteressada que se oferece com paixão, o homem nunca encontra aquilo que procura, pois ele sempre está procurando outra coisa.

(G. de la Fouchardière apud Adler, 1991: 200)


A mulher pública foi marcada com ferro em brasa: proscrita e entregue a seus perseguidores; apenas ela, mas nunca o homem – seu parceiro com igual responsabilidade

(Flexner apud Adler, 1991: 200)


Introdução

Inicio o presente texto destacando três argumentos: um, de ordem pessoal, refere-se ao encanto, curiosidade, respeito e resignação que tenho nutrido pelas prostitutas e pelo mundo em que vivem. Tenho dúvidas se a maioria dos homens não compartilham tais pensamentos comigo. É difícil a contenção do impulso sexual que elas produzem, e não são poucos os homens que optam por sua repressão. Obviamente, isso não impede a produção - pelo contrário - até auxilia -, de imagens, fantasias, pensamentos e reflexões em relação às chamadas "garotas de programa". O segundo argumento diz respeito à prostituição como uma relação de trabalho como outra qualquer. Na relação que tece com seus clientes ou "pacientes", defendo que podemos identificar as mesmas circunstâncias que encontramos em uma relação de trabalho considerada "normal".

Como entendo a relação sexual das prostitutas como relação de trabalho – e aqui já demonstro meu terceiro argumento – defendo que ela seja regulamentada e que disponha de todos os direitos e deveres garantidos e impostos aos trabalhadores e empregadores do mercado de trabalho formal.

O texto que se segue traça reflexões a respeito do fenômeno da prostituição. Para isso, visitei os hotéis do centro de Belo Horizonte. Poderia ter buscado apenas os livros e textos acadêmicos. Há muito a prostituição é enfoque de estudo de sociólogos, historiadores, antropólogos, assistentes sociais e psicólogos. Mas queria ver de perto o que muito ouvia de meus colegas. Em tais circunstâncias, decidi lançar mão do conteúdo e da forma de ver a realidade própria dos antropólogos. Creio que a observação participante me permitiu algumas reflexões no campo sociológico e, não tenho dúvida, valeu a experiência.


1 Novos locais de trabalho, sentimentos e formas de viver

Quem não tem ou mesmo não teve a curiosidade de perguntar, saber, pesquisar sobre, ou experimentar o mundo da prostituição? Dificilmente nos deparamos com pessoas que não passaram por essas experiências. É comum encontrar preconceitos recheados de religiosidade, moralismo, ignorância e má intenção acerca das mulheres e dos homens que vendem o sexo. Podem-se mesmo traçar quatro grupos: (1) os que condenam esta prática; (2) os que toleram e aproveitam, mas a criticam; (3) aqueles que a aceitam no intuito de explorar rendas e benefícios e (4) os que defendem a prática e sustentam a possibilidade de sua regulamentação. Entre prós e contras, algo surge de consenso: a vida de uma prostituta ou de um michê é, no mínimo, curiosa.

Já é lugar-comum falar que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. Sem dúvida esta asserção carrega um pouco de verdade. Já se sabe da existência de práticas prostitucionais na Antigüidade, bem antes de Cristo, que também esteve às voltas com uma das mulheres que vendem o sexo. Não é meu objetivo delinear a história e o desenvolvimento dessa prática [01], mas é importante ressaltar que a discussão desse fenômeno não é nenhuma novidade. Em última análise, discutir a prática prostitucional é debater a vida, a sexualidade, o amor, o sexo, as relações humanas e a sociabilidade.

Pintada das mais variadas formas, a prostituição vem resistindo às mudanças estruturais, guerras religiosas e viradas políticas. Desenvolvida em ruas, quartos particulares, casas de massagem, boates e bordéis, o ato da prostituição vem mudando, a despeito de preservar as marcas e alguns resquícios do passado. É possível, nos dias de hoje, observar belas mulheres na tela de um computador que recebe as fotos por um canal de telefone. Na Internet encontramos formas e maneiras de comprar sexo. Pode-se selecionar da mesma forma que se escolhe qualquer produto que também está à venda no mundo virtual. Loiras, morenas, ruivas, gordas, magras, altas e baixas. Existem mulheres de todos os perfis e estéticas apreciáveis pelo público masculino e feminino. Mas não pára por aí. Podem-se preferir universitárias, mulheres que não completaram o segundo grau ou que não tiveram a oportunidade de usufruir o ensino disponível em um banco escolar. Pode-se optar por bailarinas, advogadas, psicólogas, professoras, estudantes e secretárias. Também negocia-se o desenvolvimento do ato sexual. Nesse caso, é possível fazer uso do telefone e, ao mesmo tempo em que se assistem às mulheres na tela, pode-se conversar a ponto de solicitar que se virem, abaixem ou mostrem o que sabem e podem fazer (webcam). Porém, o importante a frisar é que existem mulheres para todos os gostos e taras existentes.

Para melhor entender este fenômeno observei o cotidiano das prostitutas em alguns hotéis ("zonas") localizados em ruas centrais de Belo Horizonte. Optei pela conhecida Rua Guaicurus e Rua São Paulo, vias que estão próximas à rodoviária e a mais importante avenida da cidade, Av. Afonso Pena. A Rua Guaicurus e sua esquina com a São Paulo é conhecida pelos belorizontinos por agrupar em grande quantidade os bordéis existentes na cidade. Todos: homens e mulheres as têm por referência. Local entendido como "perigoso", no qual as pessoas andam inseguras e apavoradas, não deixa, por isso, de ser movimentado. Lojas, cinemas, estacionamentos, farmácias, armazéns, igrejas evangélicas, pontos de ônibus e diversos bares formam aquele ambiente. Homens, mulheres e crianças "indigentes" se misturam a prostitutas, "perueiros", policiais, funcionários do comércio, mendigos, camelôs, "flanelinhas", desempregados, taxistas e trabalhadores informais.

O local recebe um grande número de pessoas, principalmente a partir das 18 e 19 horas, horário em que termina o expediente comercial da cidade. Evidentemente, os bordéis não abrem apenas neste horário. Mas é no início da noite que o movimento fica maior. É nesse período que homens casados e solteiros visitam os bordéis. Marquises e carros escondem rostos e personalidades. A noite é a melhor amiga daqueles que preferem o anonimato. Não são poucos os homens que procuram o trabalho das prostitutas: o início da noite é o momento e a hora oportuna de "dar uma passada na zona" e relaxar os nervos de um dia duro de trabalho.

Laure Adler (1991), competente historiadora francesa, busca na obra de Félix Regnaut, de 1906, quatro tipos de clientela:

- os libertinos, que gostam de novidades e cujos desejos exigem excitações que apenas as mulheres experientes podem oferecer;

- os tímidos e os iniciantes, que não têm coragem ainda de cortejar as mulheres;

- os desfavorecidos pela natureza;

- os homens casados com mulheres doentes que não podem recebê-los e principalmente a multidão daqueles que não possuem os meios para contrair matrimônio ou manter uma amante (Adler, 1991: 98 e 99).

Aos quatro segmentos, a autora acrescenta um quinto: "o grande número de homens casados cujas esposas não são doentes, mas com as quais o ato carnal tem como finalidade apenas a procriação, e como modo de execução, a rapidez. Sem esquecer aquelas mulheres que impõem ao cônjuge a abstinência sexual" (Adler, 1991:99).

A despeito da análise da autora estar situada nas práticas prostitucionais no início do século XIX, é possível salientar que, de lá para cá, pouco ou nada se modificou neste sentido. Mas eu acrescentaria a esses segmentos, o conjunto de mulheres que se interessam pelo mesmo sexo. Como não são aceitas pela sociedade, as lésbicas procuram as prostitutas para a satisfação dos seus desejos. Acrescento ainda o grande exército de homens, cujo comportamento beira a libertinagem, que utiliza os serviços das prostitutas como diversão e "sacanagem". Não estão preocupados com as conseqüências (como a contaminação com as DSTs) e sentimentos de culpa. Muitos são casados e preferem apostar no silêncio e na conivência da prostituta para satisfazerem os seus interesses.

No que diz respeito à minha observação, é preciso mencionar que não é difícil perceber os diversos "hotéis" localizados na Rua Guaicurus. Estão situados entre a Avenida Afonso Pena e a Rua Rio de Janeiro. São muitos, e oferecem diferentes tipos de trabalho. Ao contrário do que pensa o senso comum, a maioria dos hotéis é limpa. No entanto, não deixa de ser degradante o ambiente de alguns: um cheiro forte de desinfetante mistura-se no ar aos odores de perfumes, bebidas alcóolicas e cigarros. O local não é bem arejado. O calor insuportável chega a causar mal-estar e cansaço. Os quartos são localizados nos segundos e terceiros andares. Nos corredores não há janelas: grandes e pequenos ventiladores foram ali colocados no intuito de fazer circular o ar. Ao observar os quartos são observáveis algumas janelas, outros, sequer possuem espaço para que se construa alguma. As mulheres certamente são obrigadas a suportar o calor e o ambiente seco e abafado que invade o estabelecimento.

São muitos os quartos. Homens, jovens e adultos aglomeram-se nas portas. Grandes e pequenas filas se formam na entrada. Todos querem observar, negociar, às vezes somente olhar ou conversar. Os pretendentes esperam impacientes as possibilidades de observação. Demoram quando tem por objetivo a negociação do "programa". É na entrada, na porta entreaberta do quarto, que se desenrolam as negociações do labor que consiste nas práticas e serviços sexuais oferecidos pelas mulheres.

O acordo pode ou não ser fechado. Uma resposta negativa leva o homem a procurar alternativas. Uma resposta positiva resulta no rápido fechamento da porta e o reclamar constrangido e, muitas vezes enfurecido, daqueles que permaneceram à espera na fila. Entretanto, não são poucos os homens que permanecem na porta esperando a sua vez. Tudo indica que são clientes assíduos e não abrem mão da mercadoria adquirida. Mas é significativo observar o apelo estético de algumas prostitutas. As mulheres consideradas bonitas saem ganhando no jogo do mercado. Suas portas estão constantemente abarrotadas de pretendentes. Por outro lado, não é difícil observar portas que raramente estão fechadas. Ali estão as mulheres não atraentes pela beleza e vigor físico. Nesse jogo de mercado é claro que algumas prostitutas ganham mais dinheiro do que as outras. Obviamente, as mulheres mais bonitas, que atendem ao padrão estético ocidental, trabalham mais: o tempo de seu labor é recompensado pelos atributos estéticos, diferentemente das outras prostitutas que ficam horas e horas a esperar, muitas vezes, um cliente que não vem. Nesse caso, o ato de vender o corpo transforma-se em prejuízo. Daí não ser novidade as informações acerca de prostitutas que andam sempre endividadas.

No comércio dos serviços sexuais há demanda para todas as práticas. A procura constante dos homens pelos diversos quartos refere-se à busca da satisfação de necessidades sexuais e/ou emocionais. Também é nesse contexto que se discute o valor do programa. Nos lugares que observei, o valor mínimo de um programa era de R$ 05,00 e o máximo R$ 15,00. [02] No primeiro caso chega a causar mal-estar a situação vivenciada pelas mulheres. O baixo preço é o reflexo de sua aparência e condição humana. Muitas aparentam elevada idade, são mães solteiras ou casadas, obrigadas a se prostituírem por causa do dinheiro. Algumas já passaram por outros bordéis. Na juventude freqüentaram boates e motéis ou mesmo se aventuraram nas ruas. Não são poucas as que afirmam estar no final de "carreira", mas a condição social de penúria e necessidade as obriga a permanecer na "profissão".

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No segundo caso encontramos mulheres jovens: aparentam estar na casa dos 20 a 30 anos. Apesar de bonitas, as marcas da vida são facilmente percebidas no corpo e no olhar. Profundas olheiras, peles secas e rugas mostram que a vida não tem sido fácil naquele trabalho. O fato é que a maioria das prostitutas trabalha à noite. Na realidade, na maior parte da noite. Durante o dia tentam oferecer ao corpo o sono reparador e confortável. Mas sabemos que este sono não é o mesmo do descanso. Dormir com barulhos e incômodos – que não poucas vezes leva a um constante acordar - atrapalha a saúde corporal. O resultado é o envelhecimento precoce, a baixa imunidade do corpo e, durante boa parte da vida, a perda da saúde.

Um dos maiores problemas é que as prostitutas, ao contrário de boa parte dos trabalhadores formais, não têm seus direitos garantidos. Obviamente, não podem usufruir férias, garantia previdenciária e direitos assegurados pelo Estado a toda relação de trabalho formal. As que podem pagar conseguem freqüentar médicos e adquirir remédios em caso de doença. As que não podem continuam se arriscando, mesmo que o prejuízo maior possa ser a própria vida. Muitas se esforçam para pagar os serviços previdenciários como autônomas apelando para profissões como costureiras ou dançarinas. Essas se preocupam com o futuro e sonham com a aposentadoria. Voltarei a este assunto adiante.

1.1 Uma vida de marcas sociais

Na realidade não é necessário ir tão longe para perceber a que ponto chegou o mundo comercial do sexo. Jornais, revistas e CDs pornográficos são vendidos em várias bancas de jornal. Os classificados trazem telefone, descrição física, formas de pagamento e o tempo que o comprador pode usufruir caso opte pelo serviço oferecido. Como se vê, a prostituição, desde os tempos antigos – gregos ou romanos – para os atuais, têm se modificado e muito, e, como todas as atividades de trabalho, tem usufruído das novas tecnologias de informação. Para demonstrar ao leitor a veracidade dos fatos, telefonei para os serviços de uma das garotas. O rápido diálogo se desenvolveu da seguinte forma:

-- Alô! É sobre o anúncio no jornal.

-- Ah! Sim. Sou loira, tenho 1,70 de altura, peitinhos bem durinhos, pele macia, cintura fina, bundinha empinada e pernas torneadas. Cobro R$ 80,00 a hora e faço tudo inclusive sexo anal se for bem devagar.

-- Tudo isso?

-- Claro, querido, mas esqueci de dizer que o táxi é por sua conta.

-- Obrigado, vou dar mais uma olhada no mercado e volto a te ligar.

-- Meu nome é Ana Paula e estou à sua disposição.

O diálogo foi rápido, não passou de cinco minutos. Surpreende o profissionalismo, a velocidade e agilidade das palavras que as garotas de programas despejam sobre os interessados. Lembrei-me dos vendedores de seguros, carros e cartões de crédito. O domínio da palavra, a desenvoltura na venda do próprio corpo, da situação constrangedora, pelo menos de minha parte, não deixa de causar certa perplexidade, principalmente no que concerne ao avanço das técnicas de negociação da venda do sexo. Sabe-se que nada de novo estou apontando aqui. Abaixo demonstro como é estampado em jornais e revistas a venda do sexo alheio. [03]

CLÁUDIA

Morena, olhos azuis, 19 anos, cabelos longos, corpo perfeito. Linda e toda liberal. Faço loucuras com a boca. Bonita e meiga. Discreta e carinhosa. Alto nível. At. 24h. Casais. R$ 50,00 + táxi. Tel.: 3XXX – XXX. Se preferir ligue no celular 9XXX – XXXX.

A despeito das mudanças das formas de prostituição, está longe o dia em que a venda do sexo não será entendida como um ato sujo, feio, profano, pecador, imoral, mundano e danoso à ordem social. As marcas que a sociedade produziu para caracterizar o ato sexual que resulta em pagamento, demonstram perfeitamente como as prostitutas são entendidas. Os estigmas são diversos, alguns são até evitados em nossa comunicação diária, mas revelam com acuidade o imaginário social e o processo de estigmatização por que passa as prostitutas.

Dos mais conhecidos termos temos: prostituta, puta, meretriz, piranha, garota de programa, rapariga, vadia, libertina, mulher de vida fácil, vagabunda, mulher da vida, mulher de "vida alegre", mulher à toa, cortesã, camélia e quenga. Dentre os nomes menos conhecidos encontra-se marafona, boneca de trapos, mulher "horizontal", cocota, cocote, meretrícula, mariposa, dama da noite, "deusa" da noite, mulher de costumes fáceis, "decaída", que leva vida licenciosa, piranhuda, pistoleira, mundana, Maria Madalena, mulher pecadora, mulher manteúda, mulher teúda, mulher de vida silenciosa, marquesa das altas calçadas, damas de copas, boneca noturna, boneca vadia, concubina, gueixas, mulher desregrada, rameira, perra, barregã, bagaxa, rascoeira, cróias, bandarra, zabaneira, michelas, mulher livre, mulher tolerada, mulher da noite, mulher de paredão, imperatriz da alcova, deusa do asfalto, trabalhadoras e/ou profissionais do sexo.

As marcas, contudo, não se resumem às mulheres. Elas atingem o local de trabalho, o ambiente em que vivem e é neles que se encontra uma das mais interessantes formas de sociabilidade humana. Dentre as diversas nomenclaturas, temos: prostíbulo, zona, bordel, casinha, cabana, éden, meretrício, espelunca, casa de "sociedade", alcouce, covil, inferninho, casa de campo, curro, harém, lupanar, serralho, putaria, puteiro, casa da luz vermelha, cabaré, castelinho, pensão de mulher, putedo, putanheiro, açougue, castelo, conventilho, casa de pensão, casa de passe, casa de sexo, "pensão alegre", casa de lazer, "pregão de carne", casa de amor fácil, casa de massagem, casa proibida, casa de tolerância e casa de rendez-vous (call houses).

Certamente encontraria outras marcas e nomenclaturas. Mas acredito que já é o bastante para demonstrar o difícil caminho para reverter estigmas produzidos há séculos.

O estigma [04] que pesa sobre as mulheres e sobre os locais que trabalham parece ser resultado da tolerância social que perpassa a historicidade e a estrutura da cultura ocidental judaico cristã. Sabe-se que não foram poucos os profissionais que insistiram na prostituição como o "mal necessário" que habita o corpo social (Moraes, 1921; Engel, 1988). Para manter as aparências em uma sociedade cínica, a prostituta serviu muito bem aos interesses dos machos e das donzelas que não queriam perder a honra, a moral, a castidade e o pudor "existente" no seio familiar.

Freitas Júnior (1962) chamou atenção para o papel desempenhado pela prostituta em contrapartida ao casamento monogâmico e selado por "deus". Em seu texto, nos lembra de Gilberto Freyre, que narra com acuidade os incansáveis coitos, a depravação sexual propiciada pelos senhores, filhos e sobrinhos de engenho que não se cansavam de "comer" as negras e índias da localidade. É na obra de Gilberto Freyre, notadamente Casa Grande e Senzala (1994) e Sobrados e Mocambos (1951), que encontramos a origem rural e patriarcal de nossa sociedade. De lá para cá, muito se modificou. Os donos das escravas "comiam" de graça, afinal o material era deles. Não se tratava de seres humanos. Depois, trataram de "comê-las" nos primeiros prostíbulos, resultado da libertação dos escravos e do êxodo rural das mulheres solteiras e com muitos filhos. Contudo, os tabus atravessaram as fronteiras da história. Se, por um lado, a virgindade foi valorizada, e com ela nasceu a "mulher direita", mãe decente e equilibrada, apesar de submissa ao poder do patriarca, por outro, restaram as mulheres "perdidas", as "mulheres horizontais", de baixo valor social e passíveis de compra por homens desejosos por serviços sexuais.

Os tabus sexuais, sobretudo os referentes à virgindade, em nosso meio, desempenharam papel de bem maior importância, no tomar o rumo da prostituição. Isto se verifica sobretudo nos meios rurais, onde as relações comunitárias de vizinhança tornam cada pessoa muito exposta ao julgamento coletivo. A mulher "deflorada" perdia, com o hímen, sua perspectiva de futuro. Quando se diz que "Fulano fez mal a Sicrana", se sabe que "Sicrana se perdeu". Perdeu aquela intencionalidade de pessoa latente, a poder desabrochar em pessoa existente. O fruto não mais virá desde que a flor acabou. A flor que a moral burguesa enfiou entre as pernas da donzela. E quando da flor machucada nasce o fruto, ainda pior a coisa é. Mais indisfarçável. A barriga crescendo e em torno dela, as suspeitas, as perguntas, a inquisição. Até que a revelação se faz. E bruscamente se rompe outra membrana, a que joga "na vida". Será mãe, talvez, mas dum filho da mãe. De todo modo se extinguiu a continuidade prospectiva. Somente o dinheiro ainda lhe restituirá o tempo definitivamente perdido. Virou a cabeça, não é mulher direita, se rebaixou. Tornou-se uma "horizontal" (Freitas Júnior, 1962: 34).

Sem exagero, as prostitutas tornaram-se verdadeiros depósitos do prazer masculino. Sobre a responsabilidade dos homens nada pesa. Pelo contrário, a cultura patriarcal, que legitimou perversamente o poder viril do macho, aprovou os comportamentos que levaram os homens a se mostrarem bons reprodutores. Essa figura, valorizada ainda nos dias atuais, tem fortalecido a dominação masculina. Está longe o tempo em que as mulheres poderão se equivaler ao poderio que o macho construiu em séculos na cultura ocidental. Porém, creio que não podemos deixar de lado as mulheres que foram adaptadas e domesticadas neste cenário. Sobre a roupagem da "virtude", as mulheres "direitas" toleraram as "horizontais". Acreditavam, desta forma, estarem livres do pecado e do "amor grotesco" e não desejado por Deus [05]. Esta cultura, impregnada nas mentes humanas, dificilmente será modificada, principalmente porque está imbricada com alicerces religiosos, morais e até filosóficos. Princípios que homens e mulheres dificilmente abrem mão. Gabriela Silva Leite, prostituta de profissão, que trabalhou durante anos no baixo meretrício da cidade do Rio de Janeiro, com suas palavras, sintetiza algumas indagações:

(...) temos que mexer com estruturas culturais enraizadas e com o conceito que permeia a vida e as atitudes das mulheres e homens de nossa sociedade: a terrível ambigüidade da pureza e não pureza. E pureza, bem lá no fundo da nossa consciência, tem a ver com a abstinência sexual, tem a ver com a divisão das mulheres em duas categorias: as nossas esposas – alicerces da família, mães de nossos filhos, para quem o sexo é pecado, a não ser para a procriação – e as "outras" que, devido à educação diferenciada, precisam existir para preservar a virgindade das futuras mães e ao mesmo tempo para satisfazer os "apetites sexuais" dos "honestos" senhores casados, "pais de família" (Leite, 1986: 25 - Grifos da autora).

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Sobre o autor
Lúcio Alves de Barros

sociólogo, professor e escritor em Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Lúcio Alves. Mariposas que trabalham.: Uma etnografia da prostituição feminina na região central de Belo Horizonte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 827, 8 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7356. Acesso em: 28 nov. 2024.

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