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Liberdade e vida: a recusa à transfusão de sangue à luz dos direitos fundamentais

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11/12/2005 às 00:00
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Resumo: O presente trabalho tem por objeto a recusa à transfusão de sangue manifestada pelos adeptos da religião Testemunha de Jeová, mediante análise dos direitos fundamentais à liberdade religiosa e à vida, garantidos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Tem por objetivo mostrar o campo conflituoso criado quando a recusa é feita perante iminente risco de vida ao paciente. Neste sentido, cabe ao intérprete-aplicador do direito analisar se está diante de um conflito real ou aparente de direitos fundamentais e, deste modo, apresentar uma solução ao caso concreto, uma vez que não existe lei que regule tal situação. O intérprete adotará critérios de solução de conflito utilizando-se de princípios e ponderação de valores. Longe de mostrarmos um consenso, trabalhamos justamente no sentido de apresentar a discussão e propor uma reflexão sobre a intervenção do Estado na esfera dos direitos individuais do cidadão. Abordamos a questão sob dois enfoques: a recusa manifestada por paciente maior e capaz e por representante legal de menor ou incapaz.Não conhecendo livros específicos sobre o assunto, a pesquisa foi realizada com base em bibliografia variada incluindo internet, artigos de revistas jurídicas e pareceres de juristas renomados. Respeitar os direitos fundamentais do cidadão é também uma obrigação do Estado, de modo que posturas intervencionistas devem ser revistas frente ao papel do Estado Democrático de Direito e os diversos grupos sociais que o compõem.

Palavras–chave: Direitos fundamentais – Liberdade e vida – Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová – Conflito de direitos fundamentais

Sumário: Introdução. 1. Dos direitos fundamentais. 1.1. Conceito e fundamentos. 1.2. Evolução histórica. 1.3. Gerações de direitos fundamentais. 1.4. Características. 2. Do direito à liberdade religiosa e do direito à vida. 2.1. Do direito à liberdade. 2.1.1. Do direito à liberdade religiosa. 2.1.1.1. Subdivisão da liberdade religiosa. 2.1.2. A religião Testemunha de Jeová. 2.2. Do direito à vida. 3. Da colisão entre o direito à liberdade religiosa e o direito à vida. 3.1. A recusa ao tratamento com sangue. 3.2. A recusa ao tratamento e o conflito de valores. 3.3. Solução de conflitos de direitos fundamentais. 3.3.1. A recusa à transfusão de sangue invocada por maior capaz. 3.3.2. A recusa à transfusão de sangue manifestada por representante legal de menor ou incapaz. Considerações finais. Referências.


INTRODUÇÃO

Apresentados por vários autores como resultado de lutas e conquistas sociais em determinadas épocas, os direitos fundamentais sempre se vinculam a uma pretensão do cidadão em relação ao poder estatal. Essa pretensão gira em torno do não agir e do agir do Estado, no intuito de resguardar os direitos do seres humanos individualmente considerados. Desde épocas remotas já se falava em proteger direitos individuais - existem registros até mesmo antes de Cristo.

A inserção de direitos fundamentais na ordem constitucional de um Estado demonstra sua projeção democrática. A nossa Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, traz no Título II os direitos e garantias fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos, direitos sociais, direitos de nacionalidade, direitos políticos e dos partidos políticos.

Neste trabalho abordaremos os direitos previstos no artigo 5º da nossa Constituição, especificamente os direitos à liberdade e à vida. Esses direitos merecem uma atenção especial por estarem intimamente ligados à recusa ao tratamento médico com transfusão de sangue, expressamente manifestada com base em convicções religiosas.

A religião desempenha um papel muito importante ao ditar normas de valor moral contributivas para a organização social do Estado. Já chamada de ópio do povo, exerce sem dúvida um domínio sobre seus fiéis, fornecendo-lhes explicações para questões terrenas e sobrenaturais que, principalmente no ocidente, acalmam as angústias e pacificam o fiel para viver em sociedade.

A liberdade religiosa é um dos pilares da democracia e uma extensão do direito de liberdade no sentido amplo. Ao abordarmos a negativa a tratamento hemoterápico, motivada por convicção religiosa, pretendemos demonstrar a invocação deste direito ante uma situação muito freqüente, mas, em geral, tratada com preconceito e um certo grau de intolerância pela sociedade.

Não poderíamos dar outro enfoque ao tema, senão sob a luz dos direitos fundamentais. Sabemos que estamos trabalhando uma questão extremamente delicada, que envolve valores de grande importância no ordenamento jurídico, e causa uma profunda reflexão sobre conflito e eficácia dos direitos fundamentais no que se refere às convicções minoritárias dentro da sociedade democrática.


1. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1. Conceito e fundamentos

Conceituar direitos fundamentais pode ser considerada uma árdua tarefa, pois as diversas designações dadas ao tema causam, à primeira vista uma confusão conceitual.

Entre as diversas expressões empregadas em relação ao tema, é possível destacar as seguintes: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, direitos humanos fundamentais, liberdades públicas, direitos fundamentais do homem e direitos fundamentais.

No entanto, apesar das dissidências terminológicas, todas as expressões almejam apresentar e representar direitos que visam criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana.

Afirma Sarlet que "os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoas humana"1. Desta forma também se posiciona a maioria dos autores que se dedica a estudar o apaixonante tema.

Para Pinho:

Direitos fundamentais são os indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual. Não basta ao Estado reconhecê-los formalmente; deve buscar concretizá-los, incorporá-los no dia-a-dia dos cidadãos e de seus agentes.2

Alexandre de Moraes, apesar de utilizar a terminologia direitos humanos fundamentais, apresenta a seguinte conceituação:

O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade da pessoa humana [...]3

Do conceito apresentado por Perez Luño, sobre os direitos fundamentais do homem, colhe-se o seguinte:

[...] considerando-os um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional.4

Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizaremos a expressão direitos fundamentais pois, de acordo com Edílson Pereira de Farias5, esta locução é utilizada para se referir aos direitos positivados na constituição de um determinado Estado.

Usando como suporte os conceitos destacados, elaborados pelos autores citados, propomos o seguinte significado para a expressão doravante adotada:

Conjunto institucionalizado de direitos e garantias, que visa à limitação do arbítrio do poder estatal, assegurando ao ser humano uma vida digna, livre e pautada na igualdade entre os homens, de acordo com um determinado momento histórico e os valores nele inseridos.

Destacamos o fator histórico por acreditarmos que os direitos fundamentais não surgem ao acaso e nem a qualquer tempo. Desta forma, se posiciona Bobbio:

Do ponto de vista teórico, sempre defendi – continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.6

Salientamos, no entanto, que não há unanimidade teórica a respeito da justificativa dos direitos fundamentais, sendo possível encontrarmos uma variedade de correntes filosófico-jurídicas, abordadas por Paulo Gustavo Gonet Branco da seguinte forma:

[...] para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural, anteriores e superiores à vontade do Estado. Já para os positivistas, os direitos do homem são faculdades outorgadas pela lei e reguladas por ela. Para os idealistas, os direitos humanos são idéias, princípios abstratos que a realidade vai acolhendo ao longo do tempo, ao passo que, para os realistas, seriam o resultado direto de lutas sociais e políticas.7

O que ocorre, segundo Bobbio, é uma crise dos fundamentos dos direitos do homem, sendo que "deve-se reconhecê-la, mas não tentar superá-la, buscando outro fundamento absoluto para o que se perdeu"8, considerando que "o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los".9

1.2. Evolução histórica

Os direitos fundamentais, apresentados por vários autores como fruto de reivindicações sociais em determinadas épocas, sempre se vinculam à imposição de limites à arbitrariedade do poder governante e seus agentes, no intuito de resguardar os direitos do seres humanos individualmente considerados. No entanto, definir como nasceram os direitos humanos fundamentais é matéria que ainda hoje suscita controvérsias.

Aduz José Afonso da Silva: "mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como reconquista de algo que, em termos primitivos, se perdeu quando a sociedade se dividira entre proprietários e não proprietários". 10

Desde épocas remotas, como no Antigo Egito e Mesopotâmia, já no terceiro milênio antes de Cristo se falava em proteger direitos individuais. Neste tocante, destaca-se o Código de Hammurabi (1690 a.C), como sendo talvez a primeira codificação a apresentar um rol de direitos direcionados a todos os homens. Este código, tal como ao atuais, consagrava o direito à vida, à propriedade, à honra, à dignidade, à família, ressaltando a supremacia das leis em relação aos governantes. 11

Influências filosófico-religiosas podem ser entendidas como alicerces na construção dos direitos individuais de igualdade e liberdade do homem, considerando-se a propagação da doutrina Budista (500 a.C) e posteriormente, os estudos desenvolvidos na Grécia. Os gregos já se preocupavam em garantir a participação política dos cidadãos, e a crença na existência de um direito natural anterior às leis escritas.

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Porém, para Alexandre Moraes,

[...] foi o direito Romano que estabeleceu um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos arbítrios estatais". A lei das doze tábuas pode ser considerada a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão. 12

Segundo Moraes, "tais mecanismos de proteção individual em relação ao Estado podem ser apontadas como a origem dos direitos individuais do homem, apesar de apresentarem uma concepção muito diferente da atual sobre tais direitos". 13

Para Ingo Wolfgan Sarlet 14, não se consagrou a idéia de que foi na Antigüidade que surgiram os primeiros direitos fundamentais, porém, foi nesta época que apareceram algumas das idéias-chaves que, posteriormente, vieram a influenciar diretamente o pensamento jusnaturalista e a sua concepção de que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos naturais e inalienáveis.

Com o surgimento do Cristianismo, os ideais de direitos individuais ganharam força pela propagação da mensagem de igualdade entre homens, independentemente de origem, raça, sexo ou credo, vindo contribuir diretamente para a formação de um entendimento sobre a dignidade da pessoa humana.

Também, segundo Gonet Branco, "a concepção de que os homens, por serem criados à imagem e semelhança de Deus, possuem alto valor intrínseco e uma liberdade inerente à sua natureza anima a idéia de que eles dispõem de direitos que devem ser respeitados por todos e pela sociedade política". 15 Foi sobre este fundamento que se edificou a teoria do direito natural defendido pela doutrina de Santo Tomás de Aquino.

Existem registros de que, na Idade Média, diversos documentos reconheceram direitos individuais, sempre com o escopo de limitar o poder do Estado, sendo que o forte desenvolvimento destes direitos se deu entre meados do século XIII e meados do século XX.

Vários documentos ao longo da história podem ser destacados como antecedentes das declarações de direitos fundamentais. A Inglaterra foi pioneira neste sentido, com documentos como a Magna Charta Libertatum, em 1215, outorgada por João-sem-Terra, que assegurava alguns privilégios feudais ao nobres, mas não chegava a alcançar o conjunto da população. Mais tarde, renomadas declarações vieram consagrar direitos que reconheciam aos indivíduos uma esfera autônoma de atuação frente ao poder soberano, destacando-se a Petition of Rights de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679, o Bill of Rights de 1689 e o Act of Seattlemente de 1701.

Muitos dos direitos trazidos por estas declarações, como a proporcionalidade entre delito e sanção, a proibição de prisão arbitrária, o habeas corpus, o direito de petição, a previsão do devido processo legal, o livre acesso à justiça, e a liberdade de comunicação e livre entrada e saída do país, são direitos hodiernamente reconhecidos com fundamentais, fazendo parte da atual ordem constitucional em grande parte dos Estado democráticos.

Cabe-nos, no entanto, destacar a importância da Revolução dos Estados Unidos como fato histórico de alto relevo na evolução dos direitos fundamentais, já que após esta revolução surgiram documentos de grande valor histórico e jurídico, tais como:

  • Declaração de Direitos da Virgínia (1776), que proclamava o direito à vida e à liberdade e à propriedade;

  • Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, também de 1776 e realizada basicamente por Thomas Jefferson, tendo como principal objetivo a limitação do poder estatal;

  • Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, que visou limitar o poder do Estado, estabelecendo a separação dos poderes estatais e também diversos direitos fundamentais.

A importância dos documentos oriundos da Revolução dos Estados Unidos é tamanha que Gonet Branco faz a seguinte consideração:

[...] situa-se o ponto fulcral do desenvolvimento dos direitos fundamentais na segunda metade do século XVIII, sobretudo com o Bill of Rigths de Virgínia (1776), quando se dá a positivação dos diretos tidos como inerentes ao homem, até ali mais afeiçoados a reivindicações políticas e filosóficas do que a normas jurídicas obrigatórias, exigíveis juridicamente 16.

Contudo, para Alexandre de Moraes, foi com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que se consagraram normativamente os direitos fundamentais:

A consagração normativa dos direitos fundamentais, porém, coube à França, quando, em 26-8-1789, a Assembléia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com 17 artigos. Dentre as inúmeras e importantíssimas previsões, podemos destacar os seguintes diretos humanos fundamentais: princípio da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência á opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção de inocência; liberdade religiosa, livre manifestação de pensamento. 17

Paulo Bonavides, também acredita que foi com a Declaração dos Direitos dos Homens de 1789 que se manifestou pela primeira vez a universalidade inerente aos direitos à liberdade e à dignidade humana como ideal de todo ser humano.

Destaca o autor:

Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podia talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, portanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração Francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade. 18

Posteriormente, a Constituição Francesa de 1793 normatizou os direitos fundamentais consagrados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, incluindo os direitos ao devido processo legal, à ampla defesa, à proporcionalidade entre delitos e penas, à liberdade de profissão, ao direito de petição e aos direitos políticos.

No decorrer da História, depois de firmados os primeiros passos na Inglaterra, Estados Unidos e França, houve um crescimento na efetivação dos direitos fundamentais, principalmente durante o constitucionalismo liberal do século XIX. A Constituição da Espanha, por exemplo, de 1812, conhecida como Constituição de Cadis, consagrou vários direitos fundamentais. Nesta, todavia, o direito à liberdade religiosa apresentava-se amputado, visto que estabelecia a religião católica como oficial e proibia o exercício de qualquer outra.

No mesmo sentido, de grande expressão para a evolução dos direito fundamentais foram as constituições de Portugal, de 1822 e da Bélgica, de 1831, sendo que esta, além de reconhecer direitos também já declarados por outros países, estabelecia a liberdade de culto religioso, direito de reunião e associação.

No entanto, foi a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848 que ampliou os direitos fundamentais consagrando, além dos direitos humanos tradicionais, os direitos à liberdade do trabalho e da indústria, e à assistência aos desempregados, às crianças abandonadas, aos enfermos e aos velhos sem recursos, cujas famílias não pudessem socorrer.

Ao adentrar o século XX, várias foram as constituições influenciadas pela Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, podendo-se citar: Constituição Mexicana de 1917, Constituição de Weimar de 1919, Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1918, seguida pela primeira Constituição Soviética, do mesmo ano, e a Carta do Trabalho, na Itália em 1927.

Os direitos fundamentais, trazidos pelas declarações e gradualmente inseridos nas constituições, assumiram um sentido cada vez mais universalizante, passando a ser objeto de reconhecimento supra-estatal em documentos declaratórios.

Com o intuito de redigir um documento declaratório que servisse de referência aos 21 países da América, criou-se, na ONU (Organização das Nações Unidas) uma Comissão dos Direitos do Homem. Essa comissão, após analisar questões referentes à defesa dos direitos individuais tradicionais e, ao mesmo tempo, destacar a importância dos novos direitos sociais, aprovou em 10 de dezembro de 1948, em assembléia da ONU em Paris, a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Destaca José Afonso da Silva:

A Declaração Universal dos Direitos do Homem contém trinta artigos, precedidos de um Preâmbulo com sete considerandos, em que reconhece solenemente: a dignidade da pessoa humana, como base da liberdade da justiça e da paz; o ideal democrático com fulcro no progresso econômico, social e cultural; o direito de resistência à opressão; finalmente, a concepção comum desses diretos. Constitui o Preâmbulo com a proclamação, pela Assembléia Geral da ONU, da referida Declaração, "o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da Sociedade, tendo esta declaração constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensinamento e pela educação, a desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e assegurar-lhes, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o reconhecimento e a aplicação universais e efetivos [...]". 19

Ainda segundo J. A. da Silva, durante a elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem, surgiram várias questões teóricas, como por exemplo, se se deveria elaborar uma declaração ou uma convenção, o que faria grande diferença na eficácia dos direitos nela constantes. Quando se optou por uma declaração, surgiu a questão da não obrigatoriedade de cumprimento, motivo pelo qual a ONU tem procurado patrocinar vários pactos e convenções, no intuito de garantir a eficácia de direitos. 20

Destacam-se como de grande expressão o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovados pela Assembléia Geral da ONU em 16 de dezembro de 1966 na cidade de Nova York. O escopo de tais pactos era atribuir eficácia jurídica à Declaração de 1948, sendo que a adesão do Brasil só ocorreu em 1992, alguns anos após o período ditatorial.

Para José Afonso da Silva 21, no que se refere à criação de instrumentos para assegurar a efetividade dos direitos do homem reconhecidos na Declaração Universal de 1948, a Europa deu passos largos e importantes através do Conselho da Europa, que elaborou vários documentos, culminando na Carta Social Européia, aprovada em 1961 em Turim. A Carta é composta por normas sobre os direitos e garantias econômicos e sociais do homem europeu.

Todavia, ressalta o autor:

Antes de todos estes documentos internacionais e multinacionais citados, o primeiro, em nível multinacional, destacando os direitos do homem foi a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, cujo texto agasalha a maiorias dos direitos individuais e sociais inscritos na Declaração Universal de 1948. Ela foi aprovada pela IX Conferencia Internacional Americana, reunida em Bogotá, de 30 de março a 2 de maio de 1948, antecedendo, assim, à da ONU cerca de 8 meses. Na mesma Conferência foi aprovada também a Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, consubstanciando os direitos sociais do homem americano. Mais importante, no entanto, é a Convenção Americana de Direitos Humanos, chamada Pacto de San José de Costa Rica, adotada nesta cidade em 22.11.69, e também institucionalizada, como meios de proteção daqueles direitos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, prevista na Resolução VIII, da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores (Santiago do Chile, agosto de 1959), e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que vigora desde 18.6.78, mas no Brasil, só entrou em vigor em 1992, por via de adesão, já que nem tinha sido assinada ainda por nós. 22

Foi a falta de eficácia jurídica de documentos que declaravam direitos humanos, que motivou a inserção destes direitos no texto das constituições, conferindo caráter concreto ao que, até então, se considerava abstrato. Com tal inserção, os direitos fundamentais elevaram-se de plano, sendo que atualmente são premissas para a aplicação de qualquer outra norma em um Estado democrático.

Ressaltamos que, através deste caminho evolutivo pelo qual passaram os direitos fundamentais, aconteceu, ao mesmo tempo, um processo evolutivo de valores e conceitos, principalmente no que tange ao direito à liberdade e à dignidade humana. Por essa razão o estudo dos direitos fundamentais deve ser feito de forma contextualizada para que se garanta a estes direitos, plena eficácia.

1.3. Gerações de direitos fundamentais

A doutrina costuma classificar os direitos fundamentais em gerações ou, como querem alguns autores, dimensões.

A divergência entre a expressão gerações e dimensões não passa da esfera terminológica, como afirma Ingo Wolfgang Sarlet. 23 Tal divergência ocorre, porque um número de autores acredita que o termo "gerações" faz subentender uma sobreposição de direitos fundamentais, sendo que o termo "dimensões" os coloca em situação de cumulatividade e não de alternância.

Salienta Sarlet:

Num primeiro momento, é de se ressaltar as fundadas criticas que vêm sendo dirigidas contra o próprio termo "gerações", por parte da doutrina alienígena e nacional. Com efeito, não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão "gerações" pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo "dimensões" [...] 24

Atualmente se fala na existência de quatro gerações de direitos fundamentais, dentre as quais três já estão consolidadas, e a quarta está em fase de desenvolvimento e reconhecimento.

Paulo Bonavides correlaciona os direitos da primeira, da segunda e da terceira gerações, com os direitos de liberdade, igualdade e fraternidade, conforme tem sido largamente assinalado, com inteira propriedade, por abalizados juristas". 25

Os direitos de primeira geração são recepcionados como direitos de liberdade, ou seja, direitos civis e políticos. Foram os primeiros a serem reconhecidos em instrumentos normativos constitucionais, tendo como titular o indivíduo e sendo oponíveis contra o Estado. Pedia-se, dessa forma, uma prestação negativa do poder estatal, no sentido de que este não interferisse na autonomia individual do cidadão. Segundo Bonavides, "já se consolidaram em sua projeção de universalidade formal, não havendo constituição digna desse nome que os não reconheça em toda extensão". 26

A segunda geração de direitos fundamentais é considerada a dos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades. A base dos direitos desta geração é o direito de igualdade. Esta geração, ao contrário da anterior, declara direitos que visam obter uma prestação positiva do Estado em favor dos que vivem à margem da ordem social e econômica. Tais direitos são oriundos de lutas de uma classe social nova, os trabalhadores.

Os direitos de terceira geração são conhecidos como os de fraternidade e não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado, tendo como destinatário o gênero humano. Esses direitos, com afirma Bonavides, "emergiram da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio-ambiente, à comunicação a ao patrimônio comum da humanidade". 27 Também são considerados direitos de terceira geração os relacionados com a proteção ao consumidor, à infância e à juventude, ao idoso, ao deficiente físico, à saúde e à educação pública.

Quanto ao surgimento de uma quarta geração de direitos fundamentais, Paulo Bonavides apresenta o tema de forma profética, apostando no desenvolvimento de uma globalização política que venha a reconhecer universalmente, no campo institucional, o direito à democracia, à informação e ao pluralismo. No entanto, para que esses direitos de quarta geração ganhem concretude jurídica, existe a necessidade do reconhecimento no direito positivo interno e internacional garantindo, assim, a almejada democracia positivada e globalizada.

Para o autor,

nessa democracia, a fiscalização de constitucionalidade daqueles direitos enunciados – direitos, conforme vimos, de quatro dimensões distintas – será obra do cidadão legitimado, perante uma instância constitucional suprema, à propositura da ação de controle, sempre em moldes compatíveis com a índole e o exercício da democracia direta. 28

Cumpre ressaltar, que, tratando-se de evolução de direitos fundamentais, nunca há de se considerar o assunto esgotado, pois existe uma latente dialética social em torno dos anseios dos cidadãos e do conceito de dignidade humana, fazendo com que novas lutas sejam travadas a fim de se obter conquistas reais a serem inseridas concretamente no patrimônio jurídico da humanidade.

1.4. Características

Além de conceituar e apresentar os possíveis fundamentos para os direitos fundamentais, faz-se necessário destacar a importância de conhecermos as diversas características que estes apresentam, pois através delas é que será possível identificá-los como direitos de elevada posição no ordenamento jurídico.

Contudo, Gonet Branco destaca que "se a tarefa de conceituar os direitos fundamentais enfrenta algumas dificuldades, fixar-lhes características que sejam sempre válidas em todo o lugar também é mister complexo, se é que possível". 29

Assim sendo, elencamos algumas características dos direitos fundamentais:

  • Historicidade – são criados em um contexto histórico e, posteriormente, ao serem colocados na Constituição, tornam-se Direitos Fundamentais positivados;

  • Imprescritibilidade - não prescrevem, ou seja, não se perdem com o passar do tempo;

  • Irrenunciabilidade - não podem ser objeto de renúncia. Sobre esta característica, aprofundaremos os estudos, pois ela está inserida na discussão central deste trabalho;

  • Inviolabilidade – não podem ser desrespeitados por normas infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, havendo as possibilidades de responsabilização civil, criminal e administrativa quando desrespeitados;

  • Indisponibilidade – São os direitos que visam resguardar a vida biológica ou intentem preservar as condições normais de saúde física e mental, bem como a liberdade de tomar decisões sem coerção externa. 30

  • Universalidade - são dirigidos ao ser humano em geral, não podendo ficar restritos a um grupo, categoria ou classe de pessoas;

  • Efetividade – devem ser garantidos e plenamente efetivados pelo Poder Público, sendo utilizado mecanismos coercitivos para tanto, se for necessário;

  • Interdependência – são de alguma forma interligados entre si, apesar de autônomos;

  • Concorrência - podem ser exercidos vários Direitos Fundamentais ao mesmo tempo;

  • Complementaridade – devem ser interpretados de forma conjunta, de maneira a atingir os objetivos previstos na Constituição.

Como já foi mencionado, a restrição religiosa à transfusão de sangue, enfocada à luz dos direitos fundamentais é o tema central da pesquisa. Assim sendo, será necessária uma analise destes sob o prisma da inviolabilidade e indisponibilidade, o que será feito oportunamente.

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Sobre a autora
Mariane Cristine Tokarski

advogada em Canoinhas(SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOKARSKI, Mariane Cristine. Liberdade e vida: a recusa à transfusão de sangue à luz dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 893, 11 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7711. Acesso em: 22 dez. 2024.

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