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O princípio da colaboração no processo civil brasileiro

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20/01/2006 às 00:00
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SUMÁRIO: 1. Análise preliminar sobre a função dos princípios no ordenamento jurídico. 2. a conotação publicista do processo. 3. a renovação de mentalidades e a responsabilização dos agentes do processo. 4. análise do direito comparado – o paradigma do direito português. 5. a necessidade de reformas legislativas e a intensificação dos deveres de cooperação no processo civil. 6.conclusão.


            1. É necessário, preliminarmente, antes de discorrer sobre o endereço prático da incidência do princípio da colaboração no processo civil brasileiro, chamar a atenção com relação à importância dos princípios como fontes de interpretação do direito.

            Cabe destacar, nesta sede, o pensamento de Karl Larenz, ao asseverar a importância dos princípios jurídicos para a formação do sistema.

            Segundo o citado autor, os princípios são manifestações especiais da idéia de direito na perspectiva de sua evolução histórica, chamando os mesmos de "idéias jurídicas materiais" ou "pautas diretivas de normação jurídica que, em virtude da sua própria força de convicção, podem justificar resoluções jurídicas." [01]

            E tal doutrinador chama a atenção de que alguns destes princípios "estão expressamente declarados na Constituição, ou noutras leis; outros podem ser deduzidos da regulação legal, da sua cadeia de sentido, por via de uma > ou do retorno à ratio legis; alguns foram > e declarados pela primeira vez pela doutrina ou pela jurisprudência, as mais das vezes atendendo a casos determinados, não solucionáveis de outro modo, e que logo se impuseram na >, graças à força de convicção a eles inerente." [02](grifamos).

            O destaque de tais observações tem como finalidade evidenciar que o princípio da colaboração, aplicado ao processo civil, enquadra-se na análise acima reproduzida, o que será visto, com maiores detalhes nos pontos que seguem.

            Mas, seguindo esta parte introdutória, reporto-me ao ensinamento de Rui Portanova, que classifica os princípios como "enunciados que consagram conquistas éticas da civilização e, por isso, estejam ou não previstos na lei, aplicam-se cogentemente a todos os casos concretos." [03] (grifamos).

            Nesta perspectiva, o tema proposto tem acentuada relevância, pois há necessidade de uma avaliação ética sobre o papel das partes e do Juiz no processo e, em tal perspectiva, vem a tona a importância do denominado princípio da colaboração.

            2. Quando da leitura da bibliografia, reproduzida ao final, e das respectivas anotações preliminares a respeito do princípio da colaboração ou máxima da cooperação, notei a preocupação dos doutos em enfatizar e discorrer sobre a finalidade do processo civil contemporâneo.

            Os modernos processualistas consideram o processo como um imperativo do interesse público na busca da correta aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.

            Nesta linha, há o intuito de coadunar a estrutura e os fins do processo civil com os princípios do Estado social de direito. [04]

            Para prosseguir tal finalidade, além de outros postulados, entra em cena o denominado princípio da colaboração [05], no qual afirma-se a necessidade de uma "democracia participativa" no processo, "com o conseqüente exercício mais ativo da cidadania, inclusive de natureza processual." [06]

            3. De acordo com a doutrina citada, é necessário que tal cooperação seja triangular entre o juiz e as partes, isto é, "a idéia de cooperação há de implicar, sim, um juiz ativo, colocado no centro da controvérsia, mas também a recuperação do caráter isonômico do processo, com a participação ativa das partes." [07]

            Este ativismo do juiz deve ser estimulado e ao mesmo tempo conciliável com o ativismo das partes, com o escopo de atender esta finalidade social do processo moderno. [08]

            Não obstante, não se pode deixar de referir que a reflexão sobre o papel ativo do juiz "é visto em estreita relação com a reivindicação de uma razoável aceleração do processo e com a função social deste." [09]

            Mas, somente espera-se que esta rapidez não redunde em dogma e em fim último da justiça, pois há necessidade de uma visão mais abrangente das tarefas judiciais. O que o processualista alemão deixa claro, para estremar as dúvidas, é que não se aceita mais o juiz apático, a esperar o suporte das partes para o impulso processual, seja na matéria fática, seja jurídica.

            Neste contexto, surge, entre outros valores, a necessidade de uma valorização do princípio de cooperação entre os sujeitos processuais.

            Mas, conforme adverte Alfredo Soveral Martins [10], é necessário, nesta sede, a renovação das mentalidades com o intuito de afastar o individualismo do processo, no sentido de que cada papel dos operadores do direito seja o de cooperar com boa-fé numa sã administração da justiça.

            Com razão também o doutrinador português ao chamar a atenção de que estes deveres são recíprocos, mas até mesmo em caráter exemplar, devem ser efetivamente implementados pelo juiz.

            Ainda, de acordo com o tema, "não pode ser esquecido que mesmo a mais perfeita das legislações processuais, não logrará obter qualquer êxito se as suas inovações e desideratos não forem acompanhados por uma mudança das mentalidades dos profissionais do foro." [11]

            O jurista italiano Eduardo Grasso, atento a esta dicotomia entre o processo individualista e o processo com caráter público, afirma a necessidade do intérprete e do legislador mudarem suas premissas, pois deve o processo traduzir-se em um diálogo entre as partes e o Juiz e não necessariamente em um combate ou um jogo de impulso egoístico. [12]

            Por isto, quando se fala em princípio da colaboração se realça a necessidade da auto-responsabilização dos vários agentes do processo.

            Recente reforma da legislação processual (Lei 10358, de 27 de dezembro de 2001) indica esta tendência, a qual se espera seja implementada na prática. Foi acrescentado ao artigo 14 do estatuto processual o inciso V, o qual estabelece peremptoriamente que são deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Além disso, permite ao Julgador, conforme acréscimo do Parágrafo Único do citado artigo, arbitrar uma multa a ato que contrarie o mencionado dever.

            4. Em magnífico estudo, o Professor Clovis do Couto Silva, trata sobre os deveres anexos a qualquer relação contratual, entre os quais os deveres de lealdade, boa-fé, informação, etc.

            Tal pensamento poderia ser perfeitamente adaptado às regras de direito processual, razão pela qual poderíamos desdobrar o princípio da colaboração em diversos "deveres anexos," que efetivamente deveriam ser incentivados e implementados na prática forense.

            Para tanto, é exemplar o processo civil português, que implementou, como uma de suas linhas essenciais, a sujeição do processo a um princípio de cooperação entre as partes e o Juiz.

            Em comparação com o direito luso, os deveres lá consolidados, poderiam fazer parte do nosso sistema, através de uma dedução da regulação legal atualmente em vigor e da própria ratio legis.

            Seria de extrema valia acentuar, na cultura judiciária, a responsabilidade profissional dos operadores do direito, pois embora as previsões, na lei, de sanções pela infração de preceitos éticos, há uma certa resistência e cautela na aplicação de tais dispositivos. [13]

            Não se olvida que, muitas vezes tal sancionamento é obstado pela falta da prova de dolo na imputação da má conduta processual, razão pela qual, de bom alvitre, seria considerar também como litigância de má-fé a negligência grave. [14]

            Mas, além disso, outros deveres deveriam ser consagrados na prática judicial, com a finalidade precípua de dar alento a efetiva democracia participativa no processo.

            Tomando como norte tal perspectiva, o ordenamento português [15], conforme ressaltado acima, traz a necessidade do incentivo e aplicação de diversos deveres, extraídos do princípio ou da máxima da cooperação.

            Tais deveres poderiam perfeitamente ser incentivados, da mesma forma, no direito brasileiro, sem afrontar o ordenamento vigente.

            Tais deveres são, a seguir, sintetizados:

            1.Dever de esclarecimento (dever este recíproco, isto é, o juiz pode ouvir qualquer das partes, seus representantes sobre esclarecimentos sobre matéria de fato ou de direito e dando-se conhecimento da outra parte dos resultados de tal diligência). Obs. Embora se queira um processo mais rápido, é necessário, em determinadas situações, sopesar as conseqüências graves de uma decisão apressada, quando ajudaria o Juiz, que estivesse em dúvida, determinar o esclarecimento de determinadas matérias que lhe causem transtorno pela sua ambigüidade ou contradição.

            2.Dever de prevenção [16](denomina-se em Portugal, o convite ao aperfeiçoamento pelas partes das suas petições ou das conclusões de suas razões de recursos, especificação de um pedido indeterminado, de referir as lacunas na descrição de um fato). Obs. Este dever poderia ser seguido se realmente houvesse este dever de cooperação, pois muitas vezes, pela sobrecarga de processos, se prefere uma eventual lacuna do que submeter um eventual esclarecimento sobre os fatos, quando se dá primazia a um formalismo excessivo ao invés de ter como norte a busca da correta aplicação do direito material.

            3.Dever de consulta (o Juiz não pode decidir uma questão de direito ou de fato, mesmo que seja de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre ela, ressaltando a necessidade de prévia discussão pelas partes da respectiva matéria. Obs. Traduz-se numa visão cooperativista do processo, cujo resultado no direito brasileiro pode ser alcançado por via interpretativa. [17] Tal situação não é rara na nossa prática judicial, na qual o Juiz, sem ouvir as partes, define novo enquadramento jurídico da questão sub judice. O pior ocorre quando a própria motivação da decisão deixa implícito a mudança de paradigma da concreção de regras jurídicas, mas em razão da falta de "explicitação do artigo de lei", é negado à parte o acesso aos recursos extremos, sob o pretexto da "falta de prequestionamento";

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            4.Dever de auxílio (o Juiz deveria auxiliar a parte na superação das eventuais dificuldades que tolham o exercício de ônus ou deveres processuais). Obs. Mais uma vez neste item se percebe a necessidade do Julgador ativo, preocupado com a solução do processo na fase instrutória, pois se deixar para verificar eventuais falhas na condução probatória somente ao encerrar a instrução, poderá ter sido desperdiçado tempo ou o pior, para o julgamento definitivo sobre o mérito da ação, o Julgador irá verificar a insuficiência dos meios probatórios.

            5.Dever de correção e urbanidade (mais uma vez vemos o problema delicado da ética profissional, por isso a necessidade de realçar a auto-reponsabilização dos agentes do processo). Obs. Quanto a este dever, já existem vários dispositivos compelindo a sua incidência no processo, mas ainda há uma certa resistência na sua aplicação prática.

            Todos estes deveres, em síntese, estimulam o diálogo entre os sujeitos processuais e podem ser incentivados na atual conformação do processo civil brasileiro, dado que deduzidos do princípio da lealdade processual e dos dispositivos que retratam a necessidade de papel ativo do juiz, bem como da responsabilidade dos demais sujeitos processuais.

            O item n.3, por exemplo, é de vital importância para a "oxigenação" do contraditório. [18]

            Nesta senda, a própria noção de direito à prova serve para ressaltar o papel da colaboração entre as partes e o juiz, na investigação das situações fáticas.

            Assevera-se que as partes devem ter acesso a todos os instrumentos probatórios disponíveis para a reconstrução dos fatos. [19]

            5. De tudo quanto foi dito acima, revela novamente chamar a atenção para a necessidade da mudança de mentalidades.

            Mas também são necessárias reformas legislativas [20] que visem a intensificar tal finalidade cooperativa do processo, sem descurar do indispensável caráter sancionatório em relação à apreciação da omissão dos deveres acima sintetizados (nulidades processuais, multas, por exemplo).

            Tal estudo não deixa de trazer como pano de fundo uma reflexão sobre a nossa prática judiciária e dos valores hoje imperantes em nossa sociedade.

            Salta aos olhos dos práticos, que existe um contingente enorme de processos, uma verdadeira "avalanche" de processos presunçosamente "aptos" a uma decisão rápida do juiz. Não se sopesa que as conseqüências patrimoniais podem ser desastrosas diante dessa máxima da "rapidez".

            Por outro lado, não se podem desmerecer as causas de tal doença, interligadas e muitas delas de difícil solução, devido a ausência de infra-estrutura e de recursos humanos, enquanto as demandas crescem em número cada vez mais surpreendente.

            Portanto, não há dúvida que os operadores do direito devem "enxergar" que o diálogo estimulado substitui com vantagem a oposição e o confronto, tanto na colaboração da pesquisa dos fatos quanto na valorização jurídica da causa. [21]

            Embora, o autor tenha experiência profissional como Advogado, foi cursando a escola superior da magistratura, que pude observar, na redação e elaboração de sentenças, o quanto é necessário esta ajuda dos sujeitos processuais na pesquisa dos fatos e na sua valorização jurídica.

            Além disso, uma vez intensificados os deveres de cooperação, o contraditório se fortalece, como também se dá guarida a uma prestação efetiva da jurisdição.

            Sem deixar de mencionar que a cooperação dos litigantes, na formação da decisão judicial, serve de "válvula de escape" de ressentimentos e críticas, o que permite que o resultado do processo seja influenciado pelos seus participantes, facilitando assim a sua assimilação e aceitação pela sociedade. Por isso, o processo tem o valor de "enfraquecer o confronto" ou "reduzir o conflito", traduzida aí sua necessária legitimação social. [22]

            6. Dentro deste quadro, a elaboração deste trabalho tem como finalidade colaborar (o que não deixa de ser uma coincidência com o sugestivo nome do princípio) para que o processo se legitime perante a sociedade através da incidência efetiva de tal princípio no "espírito" dos operadores do direito e do próprio legislador.

            Para tanto, a discussão deve começar nos bancos das faculdades, na preparação do futuro profissional do direito.

            Sem esquecer o fenômeno, cada vez mais presente na nossa realidade, dos "ideais da modernidade", entre os quais "as categorias da ação e do comportamento em geral (pessoal ou institucional) deixaram de se pautar por valores como o bem, o justo, a validade (axiológica material), para serem as do útil, da oportunidade, da eficiência, da eficácia." [23] Em síntese, em decorrência de tais "ideais", "entroniza-se a ideologia tecnocrática" e "usurpa-se o lugar da ética".

            Infelizmente é uma contradição de termos falar de ética na civilização da técnica-ciência, mas o anseio é o retorno da ética ao mundo do direito.

            Por isso, "a racionalidade do direito processual não há de ser a racionalidade tecnológica-estratégica, mas a orientada por uma validade normativa que a fundamente e ao mesmo tempo fundamentada pelo discurso racional do juízo, de modo que a sociedade possa controlar tanto a correção material quanto a concordância dogmática da decisão." [24]


BIBLIOGRAFIA

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Sobre o autor
Gustavo Martins de Freitas

advogado em Porto Alegre (RS), especialista em Direito Civil pela UFRGS, mestre em Direito Processual Civil pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Gustavo Martins. O princípio da colaboração no processo civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 931, 20 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7850. Acesso em: 18 abr. 2024.

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