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O Supremo Tribunal Federal e a Lei dos Crimes Hediondos

03/03/2006 às 00:00
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Por seis votos a cinco, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada no dia 23 de fevereiro de 2006, reconheceu a inconstitucionalidade do § 1º. do art. 2º. da Lei nº. 8.072/90 que proibia a progressão deregime de cumprimento de penanos crimes hediondos.O assunto foi analisado no Habeas Corpus nº. 82959, impetrado por um condenado pelo crime de atentado violento ao pudor. Caberá ao Juiz da execução penal, segundo o Plenário, analisar os pedidos de progressão considerando o comportamento de cada apenado– o que caracteriza a individualização da pena. O Plenário ressaltou, ainda, que a declaração de inconstitucionalidade não gerará conseqüências jurídicas com relação a penas já extintas.

O Ministro Eros Grau acompanhou o voto do relator, Ministro Marco Aurélio, deferindo o habeas corpus e ressaltando que a proibição da progressão de regime afronta o princípio da individualização da pena. Sustentou que o legislador não pode impor regra fixa que impeça o julgador de individualizar caso a caso a pena do condenado. "O cumprimento da pena em regime integral, por ser cruel e desumano importa violação a esses preceitos constitucionais", disse. Por fim, Eros Grau afirmou que a declaração de inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime não configurará, de modo algum, a abertura de portas dos presídios já que a decisão final caberá ao Juiz da execução penal.

O Ministro Sepúlveda Pertence também votou pela inconstitucionalidade da norma. "De nada vale individualizar a pena no momento da aplicação, se a execução,em razão da natureza do crime,fará que penas idênticas, segundo os critérios da individualização, signifiquem coisas absolutamente diversas quanto a sua efetiva execução". De acordo com Sepúlveda Pertence, "ninguém tem dúvidas de que a mesma pena de três anos de reclusão imposta a alguém que cometeu crime por peculato e ao "vapozeiro" (popular avião) do fornecedor de maconha na favela são coisas diferentes, se uma pode ser cumprida com os mais liberais substitutivos e a outra terá de ser cumprida pelo encarceramento em regime fechado durante toda a sua duração. Esse movimento de exacerbação de penas como solução ou como arma bastante ao combate à criminalidade só tem servido a finalidades retóricas e simbólicas".

Também já haviam reconhecido a inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime, votando com o relator, os Ministros Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso e Gilmar Mendes. O Ministro Marco Aurélio entendeu que a garantia de individualização da pena inserida no rol dos direitos assegurados pelo art. 5º. da Constituição Federal, inclui a fase de execução da pena aplicada e, por isso, não seria viável afastar a possibilidade de progressão do respectivo regime de cumprimento da pena. Para o Ministro-relator, a edição da lei de tortura (Lei nº. 9.455/97), que permite a progressão, indica a necessidade de igual tratamento para os outros delitos rotulados hediondos e corresponde a uma derrogação implícita da norma do § 1º. do art. 2º. do mencionado texto legal. O Ministro ainda sustentou, em entrevista coletiva à imprensa, que a pena deve ser fixada considerando a figura do preso em si, do seu comportamento na própria prisão e que a progressão só será dada àqueles que a merecerem. Ressalvou que as penas dos crimes hediondos continuam as mesmas e que a decisão do Supremo não incentiva a prática de novos delitos uma vez que o reincidente deve ser punido com a regressão de regime. (Fonte: STF).

Pois bem.

Desde o ano de 2004, já escrevíamos que esta disposição da Lei dos Crimes Hediondos era inconstitucional, quando publicamos um artigo intitulado "O Processo Penal como Instrumento de Democracia".

Naquela oportunidade, observamos que a Lei nº. 8.072/90 trazia em seu bojo duas disposições de caráter processual (uma delas relacionada com a própria execução da pena), que não traduziam o espírito democrático ínsito à Constituição Federal, muito pelo contrário: a proibição da liberdade provisória e a obrigatoriedade do cumprimento da pena no regime integralmente fechado (art. 2º., II e seu § 1º.). Ora, o art. 5º., XLIII da Constituição Federal, ao tratar dos crimes hediondos, impede, apenas e tão-somente, a fiança, a graça e a anistia, não se referindo à liberdade provisória. Logo, lei infraconstitucional não poderia ir além, arvorando-se ao constituinte, proibindo também a possibilidade da liberdade provisória. De mais a mais, no Processo Penal a regra é a liberdade, admitindo-se excepcionalmente a prisão provisória em casos de extrema e comprovada urgência e necessidade (daí também a mácula ao princípio da proporcionalidade, implícito na Constituição). Por outro lado, nota-se que o mesmo dispositivo constitucional equipara, em termos de gravidade, os crimes hediondos, a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e o terrorismo, concluindo-se que estes delitos, do ponto de vista constitucional, devem ser tratados com a mesma severidade, inclusive sob o aspecto processual. Ora, se assim o é, atentemos que a Lei nº. 9.455/97, que tratou do crime de tortura e é posterior à lei dos crimes hediondos, não proibiu a liberdade provisória, mas, tão-somente, a fiança, a graça e a anistia (art. 1º., § 6º.), obedecendo-se aos ditames constitucionais.

Mas, não é só. A lei também obriga que o condenado pelo crime hediondo cumpra a pena em regime integralmente fechado, o que, além de um absurdo jurídico-penal, também afronta a Constituição, especialmente o seu art. 5º., XLVI, que trata a respeito da individualização da pena. Entendemos com a boa doutrina que a individualização da pena engloba evidentemente, não somente a aplicação da pena propriamente dita, mas também a sua posterior execução, com os benefícios previstos na Lei de Execução Penal, entre eles a progressão de regime. Observa-se que o art. 59 do Código Penal, que estabelece as balizas para a aplicação da pena, prevê expressamente que o Juiz sentenciante deve prescrever "o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade", o que indica induvidosamente que o regime de cumprimento da pena é parte integrante do conceito "individualização da pena". Assim, não podemos admitir que, a priori, alguém seja condenado a cumprir a sua pena em regime integralmente fechado, vedando-se absolutamente qualquer possibilidade de progressão para o semi-aberto ou aberto, ferindo, inclusive, as apontadas finalidades da pena: a prevenção e a repressão.

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Como ensina Luiz Luisi, "o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo." (grifo nosso). Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: "Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução."(...) "Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execução." (...) "Esta fase da individualização da pena tem sido chamada individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais."(...) "Relevante, todavia no tratamento penitenciário em que consiste a individualização da sanção penal são os objetivos que com ela se pretendem alcançar. Diferente será este tratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e sua função intimidatória, se por como finalidade principal da sanção penal o seu aspecto de ressocialização. E, vice-versa."

E conclui o autor: "De outro lado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualização judiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinqüente tem importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de execução." (Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs., com grifos nossos).

Assim, não restando dúvidas que a progressão de regime é parte integrante da individualização da pena, era inconstitucional este "dispositivo hediondo". Aqui também se observa que a referida Lei de Tortura não determina o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, mas apenas no seu início.

A respeito veja-se a lição de Luiz Vicente Cernicchiaro: "A Constituição, no art. 5º., XLIII, registrou tratamento especial a quatro delitos. Tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Atente-se para as restrições: inafiançabilidade e vedação de graça ou anistia. A lei ordinária, então, poderia, como fez, arrolar, definir os crimes hediondos. Norma, evidentemente, restritiva, de interpretação limitada. A Lei nº. 8.072/90, entretanto, foi além, acrescentando, repita-se, no art. 2º., parágrafo primeiro, que a pena será cumprida integralmente em regime fechado. Com isso, sem dúvida, afetou o sentido material da pena! Como atrás registrado, a sanção tem antecedente: conduta reprovável, previamente definida e finalidade: restituir o condenado ao convívio social. Prevalece o interesse público de obter-se a ressocialização do delinqüente. (...) O cumprimento da pena, em regime inteiramente fechado, afronta a finalidade da pena que visa a readaptação social. Só se aprende a viver em sociedade vivendo na sociedade!"(Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 290).

Agora, com esta decisão, deverá ser cancelada a Súmula 698 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual "Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura."

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. O Supremo Tribunal Federal e a Lei dos Crimes Hediondos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 975, 3 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8055. Acesso em: 19 dez. 2024.

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