Sumário: 1. Introdução. 2. A questão da competência e a corrupção no Brasil, e seus efeitos no ordenamento jurídico-laboral. 3. A construção científica da competência criminal da Justiça do Trabalho e o permissivo constitucional-legal pós Emenda 45/04. 4. Legitimidade do Ministério Público do Trabalho em matéria penal. 5. Os crimes contra a organização do trabalho e a nova competência da Justiça do Trabalho: Ministério Público do Trabalho e transação penal – casuística. 6. Conclusões.
1. Introdução
Como sustentamos em recente exposição no Painel O Ministério Público do Trabalho frente à Nova Competência da Justiça do Trabalho 1, no X Encontro Sul-Brasileiro de Procuradores do Trabalho, em 10.06.2005, na cidade de Foz do Iguaçu – Paraná, de uma década para cá, a Justiça do Trabalho sofreu profundas modificações, a começar pela extinção da representação classista nas antigas Juntas de Conciliação e Julgamento, que passaram para a correta denominação de Varas do Trabalho, presididas por um Juiz togado que, de forma singular, como sói acontecer nos demais ramos do Judiciário, passou a decidir as causas submetidas à sua apreciação.
Desta forma, é possível, hodiernamente, libertar a Justiça do Trabalho de qualquer receio porventura existente em relação à sua atuação jurisdicional, e enfrentar clara e abertamente a questão da competência criminal trabalhista, verdadeiramente seqüestrada ao longo dos anos do Judiciário especializado em face do preconceito historicamente criado pela sistemática da extinta representação classista e ontologicamente ligado ao seu nascimento como braço do Poder Executivo.
Mas, voltando aos primórdios da saga da Justiça laboral e do Ministério Público do Trabalho, importantíssimo se faz trazer à colação o resgate histórico brilhantemente apresentado pelo Ministro IVES GANDRA DA SILVA MARTINS FILHO2:
"3 – A JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL – FASE EMBRIONÁRIA
Da mesma forma que o Direito do Trabalho surgiu do desmembramento de uma parte do Direito Civil relativa aos contratos de locação de serviços, a Justiça do Trabalho surgiu como corolário da independência da nova disciplina jurídica. No entanto, antes de seu surgimento, cabia à Justiça Comum a apreciação das controvérsias relativas a esses contratos, regidos pelas leis civis e comerciais.
No tempo do Império, as leis de 13 de setembro de 1830, 11 de outubro de 1837 e 15 de março de 1842 foram as primeiras a dar tratamento especial às demandas relativas à prestação de serviços, que deveriam ser apreciadas segundo o rito sumaríssimo pelos juízes comuns. O Decreto n. 2.827, de 15 de março de 1879, no entanto, veio a restringir tal procedimento às demandas de prestação de serviços no âmbito rural, atribuindo sua solução aos juízes de paz. As demais demandas relativas a contratos de trabalho, de acordo com o Regulamento n. 737, de 25 de novembro de 1850, seriam apreciadas pelos juízes comuns, mas segundo o rito sumário. Via-se, assim, o reconhecimento de que as questões trabalhistas demandavam um processo mais célere e simplificado. No entanto, os primeiros ensaios de se criar organismos independentes para a solução dessas demandas apenas se verificaram nos começos da República.
Sendo o Brasil, nos seus primórdios, um país agrícola, o protecionismo estatal dirigiu-se basicamente ao trabalhador manual do campo, especialmente o imigrante. O Decreto n. 979, de 6 de janeiro de 1903 facultou aos trabalhadores do campo a organização de sindicatos para defesa de seus interesses, mas com objetivos mais amplos: intermediação de crédito agrícola, aquisição de equipamento e venda da produção do pequeno agricultor. Sua feição era mais econômica do que política ou jurídica.
Seguindo nessa direção, a mais antiga tentativa de constituição de órgãos jurisdicionais trabalhistas no Brasil data de 1907, quando foram instituídos, no início do governo de Afonso Pena, os Conselhos Permanentes de Conciliação e Arbitragem, pelo Decreto n. 1.637. Deveriam ser constituídos no âmbito dos sindicatos, mormente rurais, para ‘dirimir as divergências e contestações entre o capital e o trabalho’ (art. 8º). A experiência acabou não saindo do papel, na medida em que nenhum sindicato foi organizado de acordo com essa previsão legal." (pp. 177-8)
A história contada pelo Ministro IVES GANDRA nos remete, pois, à fase administrativa da Justiça do Trabalho, da primeira metade do Século XX, em que ela figurava de forma agregada ao Poder Executivo, vindo a ter reconhecido seu caráter jurisdicional pelo STF somente em 1943.
E continua o insigne autor, lembrando a primeira feição de Ministério Público da antiga "Procuradoria do Trabalho":
"Na nova estrutura figurava a Procuradoria do Trabalho como oriunda do Departamento Nacional do Trabalho. Com a divisão do CNT em duas Câmaras, o Dr. Deodato Maia passava a ser o Procurador-Geral do Trabalho, oficiando perante a Câmara de Justiça do Trabalho, enquanto o Dr. Joaquim Leonel passava a Procurador-Geral da Previdência Social, funcionando perante a Câmara de Previdência. O Decreto-lei n. 1.237/39 estabelecia as funções básicas da Procuradoria do Trabalho, que eram: encaminhar reclamação trabalhista às JCJs (art. 40, §1º), ajuizar dissídio coletivo em caso de greve (art. 56), emitir parecer (art. 60, §1º), deflagrar o processo de execução das decisões da Justiça do Trabalho (art. 68), recorrer das decisões proferidas em dissídios coletivos que afetassem empresas de serviço público (art. 77), promover a revisão das sentenças proferidas em dissídios coletivos após um ano de vigência (art. 78, §1º) e pedir a aplicação das penalidades previstas no referido decreto-lei (art. 86). O Decreto-lei n. 1.346/39, definia a Procuradoria do Trabalho como órgão de coordenação entre a Justiça do Trabalho e o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, além de prever a existência de uma Procuradoria-Geral e de Procuradorias Regionais atuando junto aos CRTs (art. 14).
Verifica-se do rol de funções que lhe eram atribuídas que a Procuradoria do Trabalho tinha, desde as suas origens, feição de Ministério Público, na medida em que seu objetivo era a defesa do interesse público, podendo, para tanto, ‘quebrar a inércia’ do Poder Judiciário, mormente nos casos de greve, além de emitir parecer nos conflitos coletivos de trabalho.
Nos seus alvores, o Ministério Público junto à Justiça do Trabalho contou com figuras ímpares para o elevado mister que lhe era conferido, ao ponto de terem sido Procuradores do Trabalho os feitores da CLT. A atividade ministerial, na visão de Vasco de Andrade, seria ainda mais valiosa para a sociedade do que a dos julgadores, uma vez que a atividade do juiz seria passiva, aguardando provocação para julgar, enquanto a do procurador é sumamente ativa, ao tomar a iniciativa do processo, deflagrando, em nome do interesse público, ações ou recorrendo de decisões que considere atentatórias da legalidade. Chamava, no entanto, a atenção, o ilustre fundador da Revista LTr, para o perigo que poderia ocorrer em relação ao Ministério Público, no sentido de, com o passar do tempo, perder seu vigor originário: transformar-se em mero órgão burocrático, restrito à elaboração de ligeiros pareceres, sem iniciativa e zelo fiscalizador pelo respeito à ordem jurídico-laboral, o que, em alguns momentos da História do Parquet Laboral veio, efetivamente a ocorrer." (pp. 193-4)
As peripécias de firmação institucional pelas quais passaram a Justiça do Trabalho e o MPT até o ápice da EC 45/04 lembram, repise-se, da extinta representação classista no Judiciário laboral, que persistiu até menos de cinco anos, e da falta de concurso público para ingresso na carreira.
Na verdade, somente com o advento da Constituição de 1988, é que se delineia o efetivo paralelismo entre o Judiciário e o Parquet laborais e os demais ramos:
"Com a previsão expressa, na Constituição de 1988, da atuação do Ministério Público do Trabalho na defesa dos interesses difusos e coletivos de caráter trabalhista, através da ação civil pública e do inquérito civil público, iniciou-se nova fase de atuação do Parquet Laboral. Em 1993, com a edição da Lei Orgânica do Ministério Público da União (LC 75/93), essa atuação ganhou maior impulso, criando-se as Coordenadorias da Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos (CODIN), responsáveis pelos inquéritos e ações civis públicas. Passou o MPT a não ter de dar parecer em todos os processos que eram julgados pelos Tribunais trabalhistas, mas apenas naqueles em que ficasse refletido o interesse público. Mas passava a atuar com maior ênfase como órgão agente e promotor da Justiça Social, nas demandas de caráter coletivo.
De início, o Judiciário Laboral, como era de se esperar, mostrou-se um pouco refratário à nova atuação. O TST, como também os Tribunais da 1ª, 2ª, 10ª e 12ª Regiões, foram os que menos entusiasmo mostraram pelo novo instrumento processual." (p. 214)
Sobretudo, impressiona a semelhança entre a proposta de revisão constitucional ocorrida em 1993, contemporânea da LOMPU, com a agasalhada na EC 45/04, cujo relator era o então Deputado, hoje Presidente do STF, Ministro NELSON JOBIM:
"A Constituição de 1988 previa, no art. 3º do ADCT, a sua revisão após transcorridos 5 anos de sua vigência, com a realização prévia de um plebiscito para a definição da forma (república ou monarquia) e do sistema (presidencialismo ou parlamentarismo) de governo. Em 1993, instalou-se o Congresso Revisor, onde não se avançou quase nada na reformulação do modelo que, reconhecidamente, não estava mostrando sua eficácia. A ausência de acordo entre as tendências conflitantes no Congresso levou à aprovação de pouquíssimas emendas à Constituição.
No que tange à Justiça do Trabalho, o parecer do Relator da Revisão Constitucional, o então Deputado Nelson Jobim, apresentava as seguintes inovações:
a) competência originária dos Tribunais, para apreciação das ações civis públicas (arts. 105, I, i, II, d; 108, I, f; 114, §2º);
b) supressão da representação classista na Justiça do Trabalho, passando os Tribunais do Trabaho a serem compostos de 2/3 de juízes provenientes da magistratura trabalhista e 1/3 de membros do Ministério Público e advogados (art. 111, parágrafo único, I e II; 115);
c) primeira instância composta apenas pelos juízes do trabalho, sem a atuação em colegiados (art. 111, III);
d) abrangência da competência da Justiça do Trabalho para apreciar os litígios sobre representação sindical, bem como os habeas corpus contra autoridades judiciárias trabalhistas (art. 114, II e VII); e
e) supressão do poder normativo da Justiça do Trabalho, que atuaria apenas nos dissídios coletivos de natureza jurídica e na conciliação dos de natureza econômica. " (sublinhou-se e grifou-se - p. 215)
Vê-se, pois, que o processo de mudança da jurisdição laboral, na forma como se delineia pós EC 45/04, deveria ter ocorrido ainda há doze anos atrás.
Portanto, das históricas lições supra colhidas, fica a lembrança de que a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho têm travado, ao longo do tempo, uma séria luta em busca de sua institucionalização e espaço no cenário judiciário nacional.
Na histórica recente de ambos (1988 e 1993 em diante), revive-se a fase da resistência às ações civis públicas, da restrição à defesa de interesses coletivos e interesses individuais homogêneos, da questão competencial quanto à imposição de concurso público na Administração, e tantas outras matérias hoje consolidadas a duras penas e a passos lentos.
As primeiras ações civis de improbidade administrativa propostas pelo MPT na Justiça do Trabalho vêm de 2000 para cá, sendo certo que a primeira sentença condenatória por improbidade administrativa data de 2004, existindo ainda resistência quanto à matéria, mesmo no caso clássico de desrespeito a concurso público.
Neste diapasão, não se tenha dúvidas de que a atual oposição que alguns fazem de forma veemente à competência criminal da Justiça do Trabalho outra coisa não é do que mero conservadorismo reacionário.
Se, após os sérios questionamentos sobre a necessidade de existência de Justiça especializada no labor humano, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional n. 45, em dezembro de 2004, resgatando as propostas de revisão e alcance da jurisdição trabalhista, e confirmando a necessidade de especialização do Judiciário para o trato de tal relevante matéria, é lícito concluir que a multicitada Emenda 45/04 rompeu, definitivamente, com o anterior paradigma da Justiça do Trabalho e impôs o nascimento de uma Justiça verdadeiramente social.
A surpresa causada pelo impacto da mudança constitucional do legislador de 2004 (que, na verdade, não deveria ser tão surpresa assim, se nos detivéssemos mais no estudo da história das instituições brasileiras) traz duas certezas: 1) a contundente reação conservadora que se haverá de enfrentar; 2) a conseqüente e inevitável ampliação da competência da Justiça do Trabalho, para a matéria criminal.
2. A questão da competência e a corrupção no Brasil, e seus efeitos no ordenamento jurídico-laboral
Para reflexão sobre o tema, nesse breve intróito, convém discorrer algumas linhas sobre a problemática da competência dos órgãos estatais erigidos para a dicção do direito e a corrupção.
Com efeito, a experiência demonstra que nos casos mais graves de violação do ordenamento jurídico a serem enfrentados pelo Estado, a primeira defesa dos acusados é própria daqueles que não tem defesa: questionar a atribuição/competência do órgão acusador e do órgão julgador.
E, ao se considerar o tempo que pode ser dispensado para apreciação desse tipo de matéria, conclui-se rapidamente que ela não favorece a aplicação efetiva de justiça.
Cito como exemplos os processos de n. 2003.41.00.005924-8/RO, 2003.41.005294-4/RO, 2003.41.00.003994-5/RO, 2003.41.00.003992-8/RO, 2003.41.00.004263-1/RO, 2003.41.00.004261-4/RO e 2003.41.00.005929-6/RO, que correm no eg. TRF da 1ª Região. Tratam-se de denúncias-crimes e prisões preventivas propostas conjuntamente pelo MPT/MPF em casos envolvendo, em tese, exploração de trabalho em condições análogas à escravidão. As peças foram ajuizadas no ano de 2003, e, por força de decisão do juízo, que reconheceu a incompetência da Justiça Federal para processar e julgar a demanda, os processos estão sendo levados ao STF, aguardando, pois, até hoje, uma decisão preliminar que fixará apenas qual é o juízo competente. Eventualmente definida a competência em favor da Justiça declinante, será aproveitado o processamento desenvolvido na Justiça Estadual ou isto apenas estimulará exceções dilatórias de nulidades processuais, a suscitar novos atrasos na efetiva apreciação meritória?
Outra situação demonstrativa vem da própria Justiça do Trabalho. Uma das primeiras ações civis públicas ajuizadas na Justiça Especializada, no início da década de 1990, somente neste segundo semestre de 2005 obteve decisão do TST que reconheceu a legitimidade do MPT e a competência laboral para o pleito. O Parquet trabalhista obrigou-se a pedir a perda do objeto, pois, passados doze anos decorridos da propositura, o provimento jurisdicional postulado deixou de ser útil à sociedade.
Mas, no próprio Ministério Público, não raro se vê declinatórias de atribuições, as quais, no mais das vezes, levam ao arquivamento do feito pelo órgão declinado. Explica-se: firmada a convicção pela existência de violação ao ordenamento jurídico em um ramo do Parquet, ao ser deslocada a questão a outro, a hipótese fica ao alvedrio de uma dupla avaliação, podendo o Membro que aprecia a questão pela segunda vez, simplesmente entender pela inocorrência da violação. E, na maioria dos casos, tal não se dá porque, efetivamente, não havia ilícito, dentro da independência funcional do órgão que recebe a matéria, mas sim por um ou mais dos seguintes motivos: a) o órgão declinado não processou a matéria e com ela não tem intimidade/familiaridade; b) está tomando conhecimento do fato pela primeira vez, e não vislumbra, prima facie, a ilicitude; c) a declinatória foi informada somente por ofício, deficientemente instruído (para os casos em que remanesce no MP declinante outras matérias no mesmo feito); d) o excesso de serviço advindo das próprias e costumeiras atividades cria uma espécie de rejeição in limine da nova questão, diminuída ante as prioridades anteriormente estabelecidas (inegável, por exemplo, priorizar tráfico de entorpecentes diante do art. 203, ou do art. 297, §§ 3º e 4º, do CP) etc.
Logo, fica a pergunta: existindo uma zona cinzenta de dúvida sobre atribuição/competência no Ministério Público, é correto decliná-la para outro Membro quando já firmada a convicção pela existência do ilícito? E no Judiciário, existindo correlação da matéria com as hipóteses constitucionais-legais de competência firmadas para o órgão cuja atuação está sendo vindicada, é correto declinar em favor de outro ramo, mormente se não especializado/familiarizado com o assunto?
O Juiz do Trabalho JÔNATAS DOS SANTOS ANDRADE, em exposição apresentada no II Encontro de Juízes e Procuradores do Trabalho de Santa Catarina3, trouxe à baila a tese desenvolvida no STF, por ocasião de decisões acerca da competência da Justiça do Trabalho em ações acidentárias, sobre a unidade de convicção.
Buscando-se elementos sobre a teoria, colhe-se do julgado no RE 438639, da Excelsa Corte, o seguinte: "salientou-se que deveria intervir no fator de discriminação e de interpretação dessas competências o que se chamou de ‘unidade de convicção’, segundo a qual o mesmo fato, quando tiver de ser analisado mais de uma vez, deve sê-lo pela mesma justiça."
Ou seja, o Supremo Tribunal Federal reconhece hoje que a cisão de competência não favorece a aplicação de justiça, e que a divergência de decisões para ações decorrentes da mesma relação de direito material invocada entre órgãos jurisdicionais distintos causa um impacto deletério no jurisdicionado.
O elo de conexão entre a divisão de competência/atribuições e a corrupção fica claro quando se visualiza, na população, o incômodo efeito da mora estatal na apreciação de questões que demandam sua atuação: há uma desconfortável sensação de impunidade gerada pelo sistema. Ora, se houver uma rápida resposta do Judiciário que diga da violação ou não do ordenamento jurídico no caso concreto, a dúvida se desvanece e os infratores saberão quais as conseqüências da repetição da conduta, se lícita ou ilícita. No entanto, se, do contrário, protela-se a decisão meritória da quaestio, é inevitável interpretar-se por uma complacência com o ilícito noticiado, pois o Estado, sabedor de uma possível violação aos preceitos legais, permanece por um bom tempo inerte diante da situação.
Sabe-se que impunidade e corrupção têm entre si laços indissolúveis de proximidade em relação causa-conseqüência. Mora e complacência na resolução de problemas não estimulam outra coisa senão o descrédito do Poder constituído, e, na medida em que isto ocorre, a própria corrupção do sistema, favorecendo as violações da lei.
No âmbito trabalhista, a situação é trágica: o título do Código Penal dedicado aos crimes contra a organização do trabalho é quase letra morta ante o desuso dos operadores do direito quanto aos tipos penais que decorrem da relação de trabalho. A pouca jurisprudência existente sobre os delitos em questão costuma ser negativa, e raras as condenações. Isto deve ser atribuído à inocorrência dos tipos ou à falta de familiaridade/especialização/sensibilidade dos juízos e tribunais a quem levada a apreciação dos mesmos, em função do substrato fático residir na relação de trabalho?
As conseqüências desastrosas dessa dura realidade são sentidas no quotidiano forense da Justiça do Trabalho – o trabalho informal, a sonegação de direitos mediante diversas fraudes (recibos em branco, truck-system, falsificação de assinaturas dos empregados, controle paralelo de jornada, salário "extra-folha", falso cooperativismo, constituição irregular de pessoas jurídicas, discriminações, e, pior, isto ocorrendo no âmbito da própria Administração Pública), ou, ainda, a simulação de ações trabalhistas para constituição de crédito privilegiado e burla a credores, etc., são todas condutas gravíssimas, mas de repúdio social diminuído ante a tolerância criminal estabelecida ao longo do tempo pela falta de competência penal da Justiça especializada. A ponto de se chegar ao cúmulo da existência de seminários propagando formas de evitar a atuação do Ministério Público do Trabalho, pasme-se! Fosse isto ocorrer em relação à atividade de outros ramos do Parquet, não se entenderia por apologia ao crime?
A que ponto se chegou no Estado brasileiro para que o crime organizado trabalhista se institucionalize dessa forma? Mas não é necessário ir além: alguma vez, no Brasil, se tratou da questão referente ao combate de crime organizado trabalhista?
Outro exemplo: a odiosa exploração de trabalhadores em condição análoga à escravidão, embora atualmente enfrentada de forma incisiva pelo Estado brasileiro, notoriamente através das forças-tarefas entre MPT, Polícia Federal e DRT, permanece no silêncio jurisdicional quanto ao tipo do art. 149. do Código Penal. Prisão preventiva nesses casos é algo raro.
A atuação cível do MPT, na área trabalhista, tem sido suficiente para debelar o problema? Como resposta, se vê o constante agigantamento do número de ações trabalhistas, a multiplicação e o desdobramento das fraudes, cada vez mais engenhosas no que concerne à precarização das relações de trabalho e frustração de direitos da massa trabalhadora. Administradores públicos criando formas tergiversas e esdrúxulas de contratação, mesmo mediante terceirização e quarteirização, visando a evitar o vínculo com o órgão e, por conseguinte, o concurso público. Ainda, o encerramento de atividades de pessoas jurídicas constituídas com o fito de burla de direitos sociais e o desaparecimento dos sócios geram a impunidade na área trabalhista e a insuficiência das condenações pecuniárias: sentenças fadadas à inexeqüibilidade.
Inobstante, permanece um incômodo silêncio quanto à repressão penal dos delitos cometidos nesses casos, certamente não por falta de um Parquet atuante e de uma Justiça célere, mas por uma discussão estéril, embora contraditoriamente erigida de primeira importância para a questão, referente à competência.
Em outras palavras, o direito de defesa dos criminosos especializados nos delitos decorrentes da relação de trabalho está alçado à condição hiper privilegiada de supra jurisdição – ou seja, a falta de jurisdição criminal especializada acarreta a impunidade, criando uma espécie de prática ilegal de extinção de punibilidade pre iurisditio.
Para onde leva este estado de coisas?
Esta é uma reflexão preliminar necessária para a tratativa da temática aqui abordada.