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Dissídios coletivos:

modificações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45/2004

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24/03/2006 às 00:00
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O texto trata do alargamento da competência da Justiça do Trabalho proporcionado pela Emenda nº 45/04, centrando o foco no exame das modificações sobre os dissídios coletivos.

Sumário:1. Introdução. 2. Definição de dissídio coletivo. 3. Conflitos coletivos. 4. Formas de composição de conflitos coletivos. 4.1. Solução jurisdicional. 5. Espécies de dissídios coletivos. 6. Poder normativo. 7. Alterações advindas da Emenda n. 45/04 quanto aos dissídios coletivos. 7.1. Dissídios de natureza jurídica. 7.2. A exigência de "comum acordo". 7.3. A alegada ofensa ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. 7.4. Os efeitos da Emenda n. 45/04 sobre o poder normativo. 7.5. Exegese da expressão "respeitadas as disposições... convencionadas anteriormente". 7.6. Atuação do Ministério Público em dissídios coletivos. 8. Conclusão. 9. Bibliografia.


1. Introdução

O advento da Emenda Constitucional n. 45, publicada em 31.12.04, conhecida como a Emenda da Reforma do Judiciário, trouxe inúmeras alterações no universo trabalhista, notadamente no que atine à ampliação da competência da Justiça do Trabalho.

Com efeito, a par de elastecer sobremaneira o espectro material da relação jurídica de trabalho submetida à apreciação dos juízes e tribunais laboristas, estatuindo que à Justiça do Trabalho compete processar e julgar as "ações oriundas da relação de trabalho" (art. 114, I, CF), transferiu, ademais, para esta Especializada uma enorme gama de ações peculiares antes postas sob a égide de outros ramos do Judiciário.

Neste trabalho, propomos um corte metodológico no tema do alargamento da competência da Justiça do Trabalho proporcionado pela Emenda n. 45/04, centrando o nosso estudo no exame das modificações ocorridas em relação aos dissídios coletivos.


2. Definição de dissídio coletivo

Dissídio coletivo consiste no procedimento de solução de conflitos coletivos de trabalho perante a jurisdição. É, portanto, um dos meios de composição dos conflitos coletivos. Disso se infere que, nos dissídios coletivos, o "interesse controvertido é de todo um grupo, genérica e abstratamente considerado" [01], ou seja, o interesse, no dissídio coletivo, é transindividual, e a sua solução deverá ocorrer pela via jurisdicional.

Com vistas a melhor esclarecer o significado do instituto ora tratado, abordaremos, a seguir, os conflitos coletivos e as suas formas de composição.


3. Conflitos coletivos

Nem sempre as relações de trabalho se desenvolvem com normalidade e harmonia; muitas vezes se produzem perturbações, disso resultando os conflitos. Estes surgem quando uma das partes lesa o direito da outra, quando divergem na interpretação ou alcance de uma norma, ou quando crêem que é necessário mudar as condições existentes. Em todas essas situações ou noutras análogas produz-se uma distorção nas relações que se mantinham e isto resulta num conflito.

O Direito do Trabalho estuda os conflitos e os classifica, tendo em vista os sujeitos conflitantes, em duas espécies básicas: individuais, quando ocorrem entre um trabalhador ou diversos trabalhadores, individualmente considerados, e o empregador; e coletivos, quando alcança um grupo de trabalhadores e um ou vários empregadores e se refere a interesses gerais do grupo.

Vê-se, portanto, que os conflitos são coletivos quando ocorridos entre os grupos de trabalhadores abstratamente considerados e o grupo de empregadores, objetivando matéria de ordem geral. Nessa acepção, o grupo não é uma simples soma ou reunião de pessoas (esse é o seu aspecto objetivo), havendo necessidade de que subsista um vínculo intersubjetivo entre tais pessoas, ou seja, uma uniformidade de sentimentos traduzida no interesse coletivo.

Consoante anota García Abellán, citado por Ruprecht, o conflito coletivo de trabalho formaliza-se "mediante uma relação de litígio estabelecida entre uma coletividade homogênea de trabalhadores e uma empresa ou grupo de empresas, que tem como matéria ou objeto próprio a confrontação de direitos ou interesses comuns à categoria profissional" [02].

Quanto à finalidade (ou objeto), os conflitos coletivos de trabalho podem ser: econômicos ou de interesse, quando a controvérsia ocorre em torno das condições de trabalho, visando a sua criação, modificação ou extinção; nesta espécie de conflito, os trabalhadores reivindicam novas e melhores condições de trabalho; e jurídicos ou de direito, quando a divergência reside na aplicação ou interpretação de uma norma jurídica preexistente, tendo por escopo a declaração sobre o sentido de uma norma ou a execução de uma norma não cumprida pelo empregador.


4. Formas de composição de conflitos coletivos

Os conflitos coletivos são resolvidos mediante autocomposição ou heterocomposição. Aquela ocorre quando as próprias partes, diretamente, os solucionam. Esta última sucede nas hipóteses em que o conflitos são solucionados por um órgão ou pessoa suprapartes.

As formas autocompositivas de solução dos conflitos coletivos de trabalho são a negociação, a mediação e a renúncia. A arbitragem e a jurisdição do Estado são formas heterocompositivas. Uma parcela da doutrina inclui a autodefesa como forma de solução de conflitos. Quando autorizadas ou não proibidas pela legislação, a greve e o locaute são exemplos de técnicas de autotutela.

4.1. Solução jurisdicional

Feita a divisão entre os meios de composição dos conflitos coletivos, interessa-nos, nessa quadra, determos o nosso exame na forma jurisdicional de solução dos conflitos.

A rigor, quando os sistemas não-judiciais de composição de conflitos fracassam, o Estado vê-se obrigado a intervir na questão para encontrar uma solução, evitando que as desavenças causem conseqüências danosas à coletividade.

Assim, quando os órgãos judiciais intervêm na solução de um conflito coletivo estar-se-á na presença da solução jurisdicional de tais controvérsias.

É sabido que os conflitos coletivos de trabalho podem ser de natureza jurídica ou econômica.

Os primeiros (conflitos de natureza jurídica) podem ser solucionados de forma semelhante aos conflitos individuais, haja vista que as principais ações utilizadas para a superação destes são também adotadas para solução daqueles, tais como a reclamação trabalhista, a ação de cumprimento e a ação civil pública.

Os conflitos de índole econômica, por seu turno, exigem procedimento especial para a sua solução, vale dizer, devem ser resolvidos por meio de ação específica: o dissídio coletivo, de acordo com o procedimento estabelecido nos artigos 856 a 871 e 873 a 875, da CLT.

Nada impede que o conflito de caráter jurídico seja solucionado por meio do dissídio coletivo. Aliás, deve-se frisar que, via de regra, os dissídios ajuizados envolvem conflitos tanto de natureza jurídica quanto de natureza econômica. O que se quer ressaltar, nesse momento, é a imprescindibilidade da instauração do dissídio coletivo para a solução dos conflitos de natureza econômica, por força de preceito constitucional (art. 114, §2º, CF), circunstância que, ao revés, não se impõe quanto aos conflitos de índole jurídica.


5. Espécies de dissídios coletivos

Do mesmo modo que os conflitos coletivos de trabalho dividem-se em conflitos de natureza econômica e conflitos de natureza jurídica, também os dissídios coletivos, entendidos como procedimentos para solução jurisdicional dos conflitos coletivos de trabalho, classificam-se em econômicos e jurídicos.

Assim, quando o que se pretende é a criação de normas e condições de trabalho, o dissídio terá caráter econômico. De outra banda, quando os conflitos são fundados em normas preexistentes em torno da qual divergem as partes, quer na sua aplicação, quer na sua interpretação, estar-se-á diante de dissídio de índole jurídica.

O dissídio de greve, possui, ontologicamente, natureza de dissídio jurídico, uma vez que supõe a apreciação do caráter abusivo da greve (ação de natureza declaratória). Geralmente, contudo, são discutidas, no bojo do dissídio de greve, questões atinentes às condições de trabalho, circunstância que, segundo parte da doutrina, lhe confere caráter misto [03].


6. Poder normativo.

Como visto acima, os conflitos coletivos podem ser solucionados de duas formas: autocompositivas, como a mediação e as convenções e acordos coletivos; e heterocompositivas, como a arbitragem e a jurisdição

A intervenção da Justiça do Trabalho nos conflitos coletivos se faz por meio de sentenças proferidas em dissídios coletivos, que, por seu turno, diferenciam-se em dissídios de natureza econômica e jurídica.

Enquanto nos dissídios de índole jurídica, a sentença é de natureza declaratória da existência ou inexistência de certa relação jurídica, nos de índole econômica, a sentença possui caráter constitutivo, tendo em vista que cria normas de caráter geral e abstrato, que disciplinam as relações jurídicas de emprego.

O poder normativo surge nos chamados dissídios de natureza econômica, quando os Tribunais do Trabalho têm a possibilidade de estabelecer normas e condições de trabalho, oponíveis erga omnes às categorias econômicas (ou às empresas) e às categorias profissionais envolvidas no litígio.

Consoante ensinamento de Orlando Teixeira da Costa, citado por Floriano Corrêa Vaz da Silva, o poder normativo faz com que o julgador, nas ações coletivas, desempenhe função diversa da jurisdicional, uma vez que:

"nesses processos ele não tem competência de proclamar o direito de quem quer que seja, mas de criar o direito, atuando como uma espécie de legislador suplente, não para ditar leis ou concorrer com o Poder Legislativo, mas para criar o direito expresso através de norma ou cláusulas que terão eficácia semelhante à da lei, dentro do âmbito de, pelo menos, duas categorias, uma profissional e outra econômica, ou de uma categoria profissional e de uma ou várias empresas" [04].

A competência normativa ou poder normativo implica, pois, "a possibilidade do Judiciário Trabalhista, nos dissídios coletivos, criar novas condições de trabalho, além daquelas mínimas já previstas em lei" [05]. Deve-se acrescentar que a sentença normativa, conseqüência do poder normativo da Justiça do Trabalho, vigora erga omnes, assemelhando-se, desse modo, à norma jurídica, mercê do seu caráter geral e abstrato, atingindo, quando menos, duas categorias, uma profissional e outra econômica, ou uma categoria profissional e uma ou mais empresas.

Sinteticamente, pode-se definir o poder normativo como "a atribuição que um órgão estatal possui de criar direito, de legislar, de disciplinar as relações jurídicas" [06].

Poder normativo não se confunde com jurisdição. Trata-se, como visto, de uma atuação de natureza legislativa a cargo de um órgão do Poder Judiciário. Por isso, a importância de se delinear dogmaticamente o que seja o poder normativo da Justiça do Trabalho, para não confundi-lo com hipóteses em que a Justiça do Trabalho julga ações coletivas exercendo estritamente o poder jurisdicional.

Embora a função legislativa seja preponderantemente exercida pelo Poder Legislativo, a ordem constitucional atribuiu tal função a outros órgãos estatais, tal como sucedeu em relação à Justiça do Trabalho [07]. Assim, "ao exercer o poder normativo, a Justiça do Trabalho não está no uso de qualquer função judicial. Ela está, em verdade, exercendo função legislativa, tal como o Congresso Nacional a exerce em sua atribuições típicas" [08].


7. Alterações advindas da Emenda n. 45/04 quanto aos dissídios coletivos

No Brasil, os conflitos econômicos sempre foram, via de regra, solucionados pela via jurisdicional. Desde a Constituição de 1934, é conferida aos Tribunais do Trabalho a possibilidade de proferirem, nos dissídios coletivos, sentenças normativas, fixando normas e condições de trabalho.

Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/04, o procedimento dos dissídios coletivos restou profundamente alterado, consoante se pode inferir da tabela comparativa abaixo, referente ao art. 114, da Constituição Federal.

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Antes da EC 45/04

Após a EC 45/04

§2º Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.

§2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

Sem correspondente anterior

§3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito

Analisaremos, em seguida, as principais modificações perpetradas pela Emenda Constitucional n. 45/04.

7.1. Dissídios de natureza jurídica

Na atual redação do art. 114, §2º, da Constituição Federal, foi acrescentada a expressão "de natureza econômica", ao lado do termo "dissídio coletivo".

Referida alteração fez com que muitas vozes se levantassem para dizer que estaria extinta a possibilidade de ajuizamento de dissídios de natureza jurídica [09].

Entretanto, não é assim que pensamos [10].

Os dissídios de índole jurídica têm por escopo a interpretação ou aplicação de normas preexistentes, as quais se incluem dentre as chamadas típicas atividades jurisdicionais.

A rigor, ao atuarem na apreciação de um dissídio de natureza jurídica, as Cortes Trabalhistas exercem atividade própria do Poder Judiciário, tal como ocorre, ainda que de forma genérica, nos julgamentos das reclamações trabalhistas, ações civis públicas, mandados de segurança, ações de cumprimento, e, bem assim, nas variadas ações coletivas que buscam a interpretação de norma jurídica atinente a interesse meta-individual, a exemplo dos mandados de segurança coletivos, ações civis públicas, ações diretas de inconstitucionalidade, dentre outras.

Por conseguinte, não há necessidade de previsão expressa do dissídio de índole jurídica no §2º, do art. 114, da CF, tendo em vista que a sua possibilidade já se encontra tacitamente inserida na competência genérica da Justiça do Trabalho, contida no mesmo art. 114, inciso I.

7.2. A exigência de "comum acordo"

Antes da promulgação da Emenda n. 45/04, exigia-se, para a instauração dos dissídios coletivos, que, tão-somente, fossem esgotadas as tentativas de negociação entre as partes. Após a promulgação da Emenda da Reforma do Judiciário, jazeu alterado o §2º, do art. 114, da Constituição Federal, que passou a incluir a expressão "comum acordo" como condição para o ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica, in verbis:

"Recusando-se qualquer das partes à negociação ou á arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente".

Dada a incipiência da modificação, os momentosos debates doutrinários e jurisprudenciais se avolumam, polarizando a celeuma. Tramitam, no Supremo Tribunal Federal, pelo menos cinco ações diretas de inconstitucionalidade [11], questionando a validade do termo "comum acordo". Não obstante, os Tribunais Regionais do Trabalho começam a se manifestar a esse respeito, plasmando o entendimento de que nada foi modificado, vale dizer, que a instauração do dissídio coletivo prescinde da anuência da parte contrária [12].

Não é assim que pensamos. A evidente alteração do texto constitucional não pode ser desprezada, como se nada tivesse acontecido. A vontade do Legislador foi no sentido de incluir a exigência do comum acordo para o aforamento dos dissídios de natureza econômica, e essa atitude tem uma razão de ser: o estímulo às negociações coletivas. Aderimos, portanto, ao posicionamento de Castilho, ipsis litteris:

"Agora, como já fixado acima, o Dissídio Coletivo somente terá curso normal se ambas as partes estiverem de acordo com tal caminho judicial.

Os empregados, querem um aumento salarial e a manutenção de cláusulas sociais, os empregadores não concordam com os pedidos e vedam o Dissídio Coletivo.

Nesta hipótese, se o Sindicato obreiro tiver força estará aberta para ele a única via possível para a conquista de suas reivindicações: a greve.

Logo, embora não tenha sido este o desejo dos reformadores da Constituição Federal, este é o caminho que restará aos trabalhadores" [13].

Nesse sentido, também se inclina Ives Gandra Filho, ao ponderar que, "com a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04, o Poder Normativo da Justiça do Trabalho somente pode ser exercido no caso de ambas as partes postularem a intervenção da Justiça Laboral para a composição do conflito," [14], devendo a petição inicial ser "firmada por ambas as partes conflitantes" [16].

Essa é também a opinião, dentre outros, de Cássio Mesquita Barros, Edilton Meireles, João de Lima Teixeira Filho, Pedro Carlos Sampaio Garcia, Marcos Neves Fava e Otavio Brito Lopes [17].

Estamos convencidos de que o "comum acordo" é pressuposto processual de constituição e desenvolvimento do processo (ou condição da ação para alguns [18]), sem o qual não se estabelece a relação jurídica inerente ao dissídio.

Os pressupostos processuais distinguem-se das condições da ação na medida em que tratam-se daquelas "exigências legais sem cujo atendimento o processo, como relação jurídica, não se estabelece ou não se desenvolve validamente" [19]. Constituem-se, portanto, em condições jurídicas para validade e eficácia da relação processual. Já as condições da ação "são requisitos a observar, depois de estabelecida regularmente a relação processual, para que o juiz possa solucionar a lide (mérito)" [20].

Portanto, em se tratando de pressuposto de constituição da relação processual, o dissídio somente terá início se as partes, de "comum acordo", o quiserem. Caso contrário, dissídio inexistirá.

7.3. A alegada ofensa ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional

Em virtude da nova exigência constitucional de que os dissídios coletivos sejam instaurados mediante "comum acordo" entre as partes, uma parcela da doutrina [21] passou a questionar a validade de referida regra frente ao Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, argumentando que predita exigência fere de morte o direito de ação, afigurando-se, por conseguinte, inconstitucional.

Em nossa opinião [22], inexiste a alegada inconstitucionalidade proclamada, haja vista que o ajuizamento de dissídio de natureza econômica tem como efeito o exercício do denominado poder normativo pelos tribunais do trabalho, e esta atividade, como é cediço, nada tem de jurisdicional. Cuida-se, a rigor, de atividade legiferante, uma vez que cria normas e condições de trabalho para todos os integrantes das categorias profissionais e econômicas envolvidas no litígio.

Corolariamente, não se há falar em violação ao direito constitucional de acesso à jurisdição: o direito de ação é direito público subjetivo, cujo conteúdo é a prestação da tutela jurisdicional pelo Estado, ou seja, pelo direito de ação, o titular do direito material visa a obtenção da prestação jurisdicional, que constitui obrigação do Estado, inexistindo, por conseguinte, direito a prestação de atividade legislativa a cargo do Judiciário.

Toda decisão resultante de dissídio coletivo de natureza econômica consubstancia atividade legislativa, e não jurisdicional, vale dizer, o Judiciário trabalhista, ao decidir um dissídio coletivo de natureza econômica, exerce o denominado poder normativo, por meio do qual cria normas jurídicas e estabelece condições de trabalho, proferindo sentença normativa.

O poder normativo não é expressão do poder jurisdicional, tratando-se, na verdade, de atuação de índole legislativa. Ao Judiciário cabe o exercício da função jurisdicional, que consiste naquela atividade substitutiva da vontade das partes em conflito pela vontade do Estado, que faz atuar a vontade do direito objetivo válida para o caso concreto.

O desempenho de atividade legislativa pela Justiça do Trabalho, através do poder normativo, deve ser vista como de caráter excepcional, porque desbordante da função típica desse Poder de Estado, que é a jurisdicional - aliás, importa sublinhar que o poder normativo somente existia porque a Constituição Federal assim o previa; agora, com a modificação propiciada pela Emenda n. 45/2004, desapareceu a regra que a previa, o que, consequentemente, tem o condão de fazer desaparecer o próprio poder normativo.

Portanto, não havendo manifestação de jurisdição no exercício do poder normativo, não se pode falar em ofensa ao direito de ação ou em vedação de acesso à jurisdição.

A propósito, na esteira do art. 5º, XXXV, da Carta de 1988, nenhuma lesão ou ameaça a direito pode deixar de receber a devida tutela jurisdicional. Isso significa que, havendo lesão ou ameaça a direito, o titular do direito material pode exigir que o Estado, através do Judiciário, preste atividade jurisdicional.

Destarte, não se cuidando o julgamento de dissídios coletivos de natureza econômica de resultado do exercício de atividade jurisdicional pelo Estado, falece razão àqueles que sustentam que a exigência de "comum acordo" para a sua instauração representa ofensa ao princípio constitucional da inafastabilidade de acesso à jurisdição.

Ad argumentandum, mesmo que o poder normativo se inserisse na atividade jurisdicional, ainda assim não se poderia falar em inconstitucionalidade na exigência de "comum acordo" para a sua instauração, por ofensa a cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV, da CF), tendo em vista que o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica e a conseqüente obtenção de sentença normativa possui cariz de direito coletivo – nesse sentido, também as convenções e acordos coletivos, institutos mais próximos da sentença normativa, estão inseridos no Capítulo dos direitos sociais (art. 7º, XXVI, CF) -, ao passo que a proibição do art. 60, §4º, IV, da CF, diz respeito apenas aos direitos e garantias individuais.

7.4. Os efeitos da Emenda n. 45/04 sobre o poder normativo

Em que pese as respeitosas opiniões em sentido contrário [23], entendemos que a mais extraordinária das alterações implementadas pela Emenda n. 45/04 foi no sentido de acabar com a competência normativa da Justiça do Trabalho.

Na esteira do texto anterior à Emenda n. 45/04, era "facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo", quando, então, a Justiça do Trabalho poderia "estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho" (grifamos).

Após a alteração do art. 114, da CF, a nova redação passou a estatuir que: "Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente" (grifamos).

Cotejando-se os dois excertos acima transcritos, verifica-se que o poder criativo atribuído aos Tribunais Trabalhistas restou definitivamente suprimido. E pelo menos duas são as razões que estribam nossas conclusões: a uma, jaz inelutável que os tribunais do trabalho, ao decidirem o conflito, não mais poderão criar ou estabelecer normas; a duas, a instauração do dissídio depende da concordância de ambas as partes, o que significa que somente haverá dissídio, e, consequentemente, sentença normativa, se os litigantes assim o desejarem, ou seja, se as partes, voluntariamente, se submeterem à atuação da Justiça do Trabalho, cuja atividade correspondente, por tal razão, passa a assumir um caráter de arbitragem pública.

Defendendo o primeiro ponto de vista, sustenta Rodrigues Pinto que o poder normativo e a competência normativa dos tribunais do trabalho devem ser considerados extintos em razão da "clareza do §2º do atual art. 114, ao dispor que a Justiça do Trabalho deve ‘decidir o conflito’, em lugar de ‘estabelecer normas e condições’ (destaque do autor), como era dito antes" [24].

No tocante à diferença entre os dois termos, obtempera o citado doutrinador que:

"decidir um conflito quer dizer julgar entre pretensões deduzidas em contraditório pelas partes, fazendo entrega da prestação jurisdicional rigorosamente dentro dos limites da controvérsia – o que é muito diferente de quem pode, em face de uma pauta de propostas unilateralmente apresentada pelo suscitante, estabelecer (criar) normas e condições" [25].

Adotando os mesmos fundamentos de Rodrigues Pinto, é o pensamento de Marcos Fava, para quem:

"A expressão ‘estabelecer normas, repetida nas Constituições de 1946, 1967, na Emenda 01 de 1969 e na Carta Cidadão de 1988, foi extirpada pela Emenda 45, o que aniquila o poder de criar normas. Aos Tribunais do Trabalho, quando provocados por ambas as partes, de comum acordo, decidirão o dissídio coletivo econômico, baseando seu pronunciamento com observância das garantias mínimas legais e nas cláusulas que já vigeram entre as partes litigantes.

(...)

Com efeito, ao retirar da Constituição Federal a autorização dos Tribunais para ‘estabelecer normas’, a Reforma do Judiciário subtraiu o alicerce criativo da Justiça Laboral.

(...)

Se não há raiz constitucional a permitir a transposição da atividade típica do Legislativo ao Judiciário, inexiste poder normativo da Justiça do Trabalho" [26].

Sufragando o segundo ponto de vista, é a opinião de Ives Gandra Filho, para quem o poder normativo restou "quantitativamente reduzido e qualitativamente alterado", tendo em vista que:

"apenas de comum acordo, o dissídio coletivo poderá ser ajuizado, o que faz das Cortes Trabalhistas verdadeiras Cortes de Arbitragem, pois a característica própria da arbitragem é a livre eleição das partes, mas, uma vez eleito o árbitro, o procedimento para a composição do litígio é o judicial e legalmente já estabelecido, devendo sua decisão ser respeitada pelas partes;" [27].

No mesmo sentido, anota Pedro Carlos Sampaio Garcia [28] que, com a nova redação do art. 114, §2º, da Constituição Federal, que preconiza a necessidade de comum acordo para a instauração do dissídio coletivo, não há mais poder normativo da Justiça do Trabalho. Afirma que predita exigência faz com que, agora, seja facultado às partes, de comum acordo, suscitarem o dissídio coletivo, do que decorre a submissão voluntária das partes à sentença normativa, não mais subsistindo imposição obrigatória de tal medida judicial. Conclui dizendo que a atuação da Justiça do Trabalho nos dissídios coletivos passa a ter a natureza de uma arbitragem pública.

Partindo-se da premissa (extremamente plausível) de que a atividade normativa da Justiça do Trabalho depende, atualmente, da instauração, pelas partes, de comum acordo, do dissídio coletivo, revela-se de acurada coerência a conclusão daqueles que entendem que os Tribunais do Trabalho passaram à condição de autênticas Cortes de Arbitragem.

Corolariamente, é inevitável a ilação de que, cuidando-se a sentença normativa de decisão arbitral, dela não mais caberão recursos das partes. Excepcionam-se, é claro, os embargos declaratórios, as argüições de nulidade da decisão, bem como os recursos eventualmente intentados pelo Ministério Público do Trabalho, em casos de ofensa à Constituição.

Nesse pálio é a opinião externada por Castilho, esgrimindo a idéia de que, sendo o comum acordo requisito para a instauração do dissídio, "estamos mais próximos de uma arbitragem do que de um dissídio judicial típico" [29], donde decorre que a solução encontrada para a controvérsia não estará sujeita a recurso. Arremata aduzindo o seguinte:

"Está manifesto que o Dissídio Coletivo não é uma ação judicial comum; ela é espécie do gênero arbitragem pública e como tal deve ser tratada.

Logo, a legislação ordinária que cuida do Recurso Ordinário no Dissídio Coletivo não foi recepcionada pela Emenda Constitucional n. 45.

7.7 – É possível que a legislação ordinária preveja, nesse ponto, Recurso Ordinário do Ministério Público do Trabalho, quando a Sentença Normativa, com natureza de sentença arbitral, ferir literalmente a Constituição Federal, ou colocar em risco a segurança e a saúde do trabalhador.

Mas as partes não podem recorrer, pois ao aceitarem que a Justiça decida a questão elas já manifestaram a concordância com o que seria decidido" [30].

Semelhante é a posição de Otavio Brito Lopes para quem a Emenda Constitucional n. 45/04 representa uma evolução no processo de afastamento do Estado-juiz da solução dos conflitos coletivos, privilegiando as formas de autocomposição. E tal evolução resta evidenciada com a substituição do poder normativo pela arbitragem judicial voluntária [31].

Registra, a propósito, que "a Emenda Constitucional n. 45 adicionou à arbitragem privada (já prevista pela Constituição de 1988) a arbitragem público-judicial, afastando a intervenção do Estado-Juiz. O prestígio do instituto da arbitragem foi inegável e reflete o sentimento majoritário dos que militam neste campo do direito," [32].

Brito Lopes assenta, por fim, que, cuidando-se de arbitragem judicial voluntária, "não se admitirá mais recurso contra as sentenças arbitrais prolatadas pela Justiça do Trabalho, atendendo pedido dos interessados, salvo os embargos declaratórios ou as impugnações que digam respeito à eventual nulidade da decisão" [33]. Afinal, "seria ilógico que as partes livremente elegessem um árbitro (ainda que judicial), para solucionar seu conflito e, após, se insurgissem contra a respectiva decisão" [34].

7.5. Exegese da expressão "respeitadas as disposições... convencionadas anteriormente"

Muito se tem discutido no meio jurídico acerca da expressão "respeitadas as disposições... convencionadas anteriormente", introduzida pela Emenda Constitucional n. 45/04.

Sustentam alguns [35] que aí está o renascimento da ultratividade das normas estabelecidas em convenções ou dissídios coletivos já extintos, de modo que deverão viger até a decisão final da Justiça do Trabalho.

Não vemos, todavia, dessa maneira [36]. Ao revés, temos a convicção de que nenhuma alteração foi implementada, prevalecendo, portanto, o inteiro teor da Súmula n. 277, do Colendo TST: "As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos".

Nessas condições, o que o novo texto pretendeu dizer é que, doravante, por ocasião do julgamento dos dissídios, deverão ser observadas as disposições convencionadas anteriormente, estejam elas em vigor ou não. Em outras palavras, ajuizado um dissídio, por mútuo acordo das partes, os Tribunais do Trabalho deverão observar, no momento do julgamento, as disposições convencionadas anteriormente. Cuida-se, portanto, de critério de julgamento, estipulado com a missão de fixar um norte para o julgador na prolação da decisão. Não se trata, de modo algum, de norma de direito individual, determinando a incorporação das cláusulas convencionais aos contratos individuais de trabalho. É, como visto, regra de julgamento, cujo intuito é o de balizar o poder normativo residual atribuído à Justiça do Trabalho.

Deve-se ressaltar que, mesmo não mais estando em vigor a convenção coletiva anterior, as suas disposições deverão ser levadas em conta pelas Cortes Trabalhistas, quando do julgamento do dissídio instaurado por vontade de ambas as partes. Excluem-se desse preceito as sentenças normativas anteriores, haja vista falar o texto constitucional em disposições convencionadas, o que implica devam ter sido derivadas de negociação coletiva.

7.6. Atuação do Ministério Público em dissídios coletivos

À vista da alteração introduzida pela Emenda Constitucional n. 45, passou o §3º do art. 144 a viger com a seguinte redação: "Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito".

Em face de referida disposição, já se chegou a dizer que, se o Ministério Público ajuíza dissídio, então a Justiça do Trabalho pode exercer o poder normativo. Entrementes, o equívoco é flagrante.

Nos parece que a atuação do Ministério Público do Trabalho restou limitada com a edição da Emenda indigitada. A rigor, se antes era permitido ao MP ajuizar dissídio em caso de greve em atividade não-essencial, como lhe facultava Lei de Greve (art. 8º, Lei n. 7.783/89), agora, com a nova redação conferida ao §2º, e com a introdução do §3º, ambos do art. 114, da Carta Política, a Procuradoria do Trabalho, somente nas hipóteses de greve em atividade essencial, quais sejam aquelas elencadas no art. 10, da Lei n. 7.783/89, com possibilidade de lesão do interesse público, é que poderá ajuizar dissídio.

Isso significa que, havendo greve em atividade essencial, e desde que haja possibilidade de lesão do interesse público, o MPT poderá atuar, mas sempre tendo em mira a finalidade exclusiva de defender os interesses da sociedade, ou seja, no dissídio de greve o MPT deverá atuar de molde a resguardar "a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade" (art. 11, Lei de Greve), deixando de lado as reivindicações dos trabalhadores (conflito econômico), as quais necessitam de comum acordo entre as partes. Outrossim, nos casos de greve em atividades não-essenciais, nada poderá fazer o MPT, haja vista a imprescindibilidade do comum acordo entre as partes para a instauração do dissídio.

Esse é também o pensamento de Sandra Lia Simón, Procuradora Geral do Trabalho, para quem a predita modificação, embora eleve a nível constitucional a legitimidade adrede conferida ao Ministério Público do Trabalho, teve o condão de restringir a atuação deste Órgão. Afirma a citada Autora que o manejo do dissídio, pelo MPT, agora somente é possível quando a greve ocorrer em atividade essencial (setores da economia elencados no art. 10, da Lei 7.783/89), e, ainda assim, desde que se possa vislumbrar lesão ao interesse público, ao passo que, antes da alteração, o MPT podia, nos termos do inciso VIII, do art. 83, da Lei Complementar n. 74/93, "instaurar instância em caso de greve, quando a defesa da ordem jurídica ou o interesse público assim o exigir". Conclui que, diante da nova redação, que "o Ministério Público do Trabalho não poderá agir, nessa matéria, em atenção ao mero interesse dos agentes envolvidos no conflito: sua atuação subordina-se à defesa do interesse da sociedade" [37].

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Sobre a autora
Andréa Presas Rocha

Juíza do Trabalho Auxiliar da 16ª Vara de Salvador/Ba, mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutoranda em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutoranda em Direito Social pela Universidad Castilla La Mancha na Espanha e professora universitária.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Andréa Presas. Dissídios coletivos:: modificações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 996, 24 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8147. Acesso em: 23 abr. 2024.

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