Sumário: 1. Introdução. 1.1. Objeto de Estudo. 1.2. Escolha do Tema. 1.3. Hipóteses de Investigação Direta. 2. Direito Comparado. 3. O Ministério Público e a Persecução Criminal no Brasil. 3.1. Desenvolvimento Histórico do Ministério Público Brasileiro. 3.1.1. Caso Fleury. 3.2. Características da Persecução Criminal e do Ministério Público no Brasil. 4. Críticas aos argumentos contrários à investigação criminal direta pelo Ministério Público. 4.1. Interpretação de Normas Constitucionais e Infraconstitucionais. 4.1.1. Ofensa ao Princípio da Equidade. 4.1.2. Ausência de Previsão Constitucional Expressa. 4.1.3. Monopólio da Investigação Criminal pela Polícia. 4.1.4. Desvio de Função. 4.1.5. Interpretação Restritiva do Poder Investigatório. 4.1.6. A Competência para Promover a Ação Penal não Engloba a Realização de Investigação Criminal. 4.2. Elementos Históricos. 4.3. Outros Elementos. 4.3.1. Concentração de Poder. 4.3.2. Investigação Ministerial Prejudica a Impessoalidade do Órgão. 4.3.3. Ausência de regulamentação. 5. Posição dos tribunais superiores. 5.1. Posição do Superior Tribunal de Justiça. 5.2. Posição do Supremo Tribunal Federal. 6. Conclusões. 7. Obras consultadas.
1. INTRODUÇÃO.
1.1. Objeto de Estudo.
O tema proposto refere-se ao debate acerca da possibilidade, em face do ordenamento jurídico pátrio, de o Ministério Público realizar investigação pré-processual como forma de embasar eventual denúncia criminal. Este tema tem despertado grande interesse e polêmica atualmente, sendo citado o termo "poder investigatório do Ministério Público" em cerca de 1.340 páginas da Rede Mundial 1.
Cabe, inicialmente, esclarecer o que seria este tão polêmico "poder investigatório". O termo Investigação, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss 2, significa o "conjunto de atividades e diligências tomadas com o objetivo de esclarecer fatos ou situações de direito". No âmbito do Direito Criminal, investigar significa colher provas que elucidem o fato criminoso, demonstrando a sua existência ou não (materialidade) e quem para ele concorreu (autoria e participação), bem como as demais circunstâncias relevantes.
A investigação criminal pode se dar através da oitiva de testemunhas, requisição de documentos, realização de perícias técnicas, interceptação de conversas telefônicas, entre outros meios. A forma como ocorre a colheita destas provas, para que sejam elas admissíveis, precisa obedecer a regras específicas e respeitar os Direitos Fundamentais.
Uma das correntes doutrinárias sobre o tema proposto entende que apenas a polícia pode investigar crimes, sendo ilícitos os procedimentos realizados diretamente pelo Ministério Público, bem como, conseqüentemente, as provas por este obtidas. A outra corrente advoga que a investigação criminal é livre, podendo ser efetuada por vários órgãos, entre eles, o Ministério Público.
Deve-se esclarecer desde já que o Ministério Público já investiga crimes há décadas, no que sempre mereceu o suporte da jurisprudência amplamente majoritária. Assim, a polêmica atual não diz respeito a uma mobilização dos promotores e procuradores para aumentar seus poderes, mas para os manter.
Para percebermos a importância do tema, deve-se alertar que, em prevalecendo a tese do monopólio da investigação criminal pela polícia, a conseqüência lógica deste entendimento é a anulação de todas as provas por aquele órgão não colhidas, sendo inválidas também as provas decorrentes destas provas (fruit of the poisonous tree 3). Isto afetaria, de forma devastadora, condenações impostas, processos em andamento e investigações em curso.
Ao final do presente trabalho, espera-se demonstrar que a investigação criminal direta pelo Ministério Público é admitida pelo ordenamento jurídico pátrio e encontra-se em sintonia com os anseios da sociedade, sendo uma questão de interesse público.
1.2. Escolha do Tema.
A questão ganhou destaque com a conclusão do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Recurso Ordinário nº. 81.326-DF. Em síntese apertada do caso, o Ministério Público do Distrito Federal, tomando conhecimento de prática delituosa cometida por Delegado de Polícia, instaurou procedimento administrativo investigatório e expediu notificação ao policial para depor sobre os fatos que lhe eram atribuídos. Alegando a existência de monopólio policial da investigação criminal, o Delegado impetrou um Habeas Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal pedindo a nulidade do procedimento administrativo e da notificação para sua oitiva. Denegada a ordem, o paciente impetrou Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário ao Superior Tribunal de Justiça que, por sua vez, manteve seu reiterado entendimento acerca da ampla possibilidade do Ministério Público conduzir diretamente investigações criminais. O acórdão unânime da 5ª. Turma do STJ foi lavrado pelo Ministro Gilson Dipp, tendo votado ainda os Ministros Jorge Scartezzini, Edson Vidigal, josé arnaldo e Félix Fischer. Assim ficou a ementa:
CRIMINAL. HC. DETERMINAÇÃO DE COMPARECIMENTO AO NÚCLEO DE INVESTIGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA DEPOR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO-CONFIGURADO. ORDEM DENEGADA. Têm-se como válidos os atos investigatórios realizados pelo Ministério Público, que pode requisitar esclarecimentos ou diligenciar diretamente, visando à instrução de seus procedimentos administrativos, para fins de oferecimento de denúncia. Ordem denegada. 4 (grifamos)
Insatisfeito, o paciente ingressou com o referido RO nº. 81.326-DF junto ao Supremo Tribunal Federal, conseguindo a perseguida insubsistência de sua convocação para depor junto ao Ministério Público em Acórdão também unânime proferido pela 2ª. Turma do STF e relatado pelo Ministro Nelson Jobim, tendo também votado os Ministros Carlos Velloso e Gilmar Mendes. Consta na ementa:
A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, III). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial. Precedentes. O recorrente é delegado de polícia e, portanto, autoridade administrativa. Seus atos estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios da Corporação, Chefia de Polícia, Corregedoria. Recurso conhecido e provido 5. (grifamos)
Convém ressaltar que o STF e o STJ se limitaram a tratar da questão da notificação do Delegado para depor junto ao Ministério público, não se manifestando sobre o pedido de declaração de ilegalidade na instauração do respectivo procedimento administrativo.
De outra parte, aguarda julgamento pelo Plenário do STF o Inquérito 1.968-DF, cujo Relator é o Ministro Marco Aurélio e no qual se discute o recebimento de denúncia oferecida contra Deputado Federal pela suposta prática de fraude contra o Sistema Único de Saúde – SUS. As provas que instruem a denúncia foram colhidas pelo Ministério da Saúde, em investigação interna. Oferecida notícia crime ao Ministério Público Federal, este realizou investigação direta para confirmar a veracidade dos dados fornecidos pela Administração. Convencido, o MPF denunciou o Deputado Federal. O denunciado reagiu argüindo a inconstitucionalidade de ambas as investigações – do Ministério da Saúde e do Ministério Público –, sustentando a tese do monopólio da investigação criminal por parte da polícia 6.
A própria divergência jurisprudencial autoriza a escolha do tema que, entretanto, possui vários outros atrativos, como a variedade de argumentos defendidos por ambas correntes e a seriedade de suas repercussões.
1.3. Hipóteses de Investigação Direta.
Importa salientar que, na prática, a investigação criminal direta pelo Ministério Público não é a regra, ocorrendo apenas em situações específicas. Para os fins deste trabalho, classificaremos estas situações em três grupos, de acordo com o estágio da apuração dos fatos.
A investigação direta originária se dá quando o Ministério Público inicia uma apuração de um crime por conta própria, sem envolver a polícia, mesmo que, em etapa posterior, venha a requisitar o auxílio desta.
Munido de suas garantias constitucionais e independência funcional, o Ministério Público lança mão desta modalidade de investigação quando, por exemplo, o autor do fato é alguém capaz de exercer pressões contra a apuração policial. Em que pese a importância e a presunção de seriedade que deve existir em favor das corporações policiais ao redor do país, não se pode esquecer que são elas sujeitas a pressões políticas na medida de sua vinculação ao Poder Executivo. Convém lembrar, também, que as garantias do Ministério Público e da Magistratura foram estabelecidas justamente para assegurar ao cidadão a independência que estes órgãos devem ter. Assim, porque não aproveitar esta espécie de "blindagem" do órgão ministerial em benefício da investigação criminal?
Para ilustrar o tipo de pressão a que está sujeita a investigação criminal, basta lembrar o recente caso envolvendo o chamado "marketeiro" pessoal do Presidente da República, o senhor Duda Mendonça. Após sua prisão por promover e participar de uma rinha de galo 7, dois policiais federais que participaram da ação foram ameaçados de transferência e o Delegado responsável foi afastado de sua chefia 8. Mais recentemente, o Delegado Federal Antônio Rayol, autor do flagrante, foi indiciado pela Polícia Federal, acusado de "concorrer para escândalo público" e "arranhar publicamente a reputação da PF" 9. Como que por mágica, o investigador passou a ser o indiciado.
Ainda com relação à investigação direta originária, podemos lembrar também dos casos onde a noticia do crime chega diretamente ao promotor através de uma testemunha apavorada, cujo auxílio depende do sigilo nas investigações. Acontece também de o crime chegar ao conhecimento da polícia, mas esta se recusar a investigar, por motivos vários. Ou ainda quando a apuração do crime envolve conhecimentos técnicos altamente especializados, casos em que busca o Ministério Público auxílio de órgãos públicos detentores desta especialização. Por vezes, como no caso ora discutido pelo STF (Inquérito 1.968-DF), a investigação já chega pronta no Ministério Público, que apenas busca confirmar os dados recebidos.
A investigação direta derivada também é deflagrada por conta própria, entretanto, o Ministério Público toma conhecimento de uma determinada infração penal através de outro tipo de procedimento decorrente de sua atuação, seja de natureza cível ou criminal.
Não existe debate sobre a possibilidade do Ministério Público realizar investigação de natureza cível. A doutrina e a jurisprudência acenam positivamente para esta hipótese de maneira uníssona. Ocorre que, por vezes, através destes procedimentos, pode o Ministério Público tomar conhecimento da ocorrência de um crime. Neste caso, pode o Ministério Público determinar a abertura de inquérito policial ou denunciar diretamente, se já possuir lastro probatório suficiente. Em determinados casos, entretanto, o promotor prefere terminar a apuração do crime de maneira direta.
Por último, a investigação direta revisora ocorre quando o Ministério Público procura confirmar os dados e as conclusões fornecidas pela polícia. Nesta hipótese, o inquérito policial é concluído e encaminhado ao Ministério Público. Como se sabe, neste ponto, o promotor tem três opções: oferecer denúncia, promover o arquivamento ou requisitar novas diligências. Entretanto, em determinados casos, resta uma pequena dúvida, facilmente esclarecida pela oitiva de uma testemunha, por exemplo. Em outros casos, o promotor desconfia de direcionamento das investigações ou de prevaricação por parte da polícia. Na investigação revisora, o Ministério Público vai requisitar documentos e informações, ouvir testemunhas e realizar diretamente todas as diligências que entender necessárias para formar sua opinio delicti.
Deve-se ressaltar, entretanto, que esta classificação atende apenas aos casos de investigação pré-processual, sendo que, por vezes, o Ministério Público tem acesso a um documento ou testemunho durante o processo penal.
2. DIREITO COMPARADO.
O tema do presente trabalho é debatido mundialmente, questionando-se a comunidade jurídica se as investigações preliminares à ação penal devem ser de responsabilidade da Polícia, ao Ministério Público ou ao Juizado de Instrução.
Com a progressiva prevalência do sistema acusatório a inadmitir a participação ativa do magistrado na apuração dos fatos, cada vez mais vai sendo rejeitada a figura do Juiz de Instrução na sua forma pura. Assim, os dois principais sistemas europeus de investigação criminal são: o inglês, pelo qual a incumbência é da polícia; e o continental, onde o Ministério Público dirige a investigação e dispõe diretamente da polícia judiciária 10.
Nos países onde uma versão do juizado de instrução ainda é adotada, o que ocorre é uma divisão de funções. Existe um magistrado incumbido de gerenciar a coleta de provas, decidindo as questões legais surgidas na fase investigatória, bem como de decidir pela existência de lastro probatório mínimo para o início da ação penal. O magistrado, neste caso, não procede diretamente a coleta de provas, apenas fiscaliza a investigação. Recebida a denúncia, o processo é encaminhado para outro magistrado, que julgará o caso.
Neste ponto, é importante observar, ainda que de forma breve, as características dos países que mais influenciam o direito brasileiro.
O Ministério Público da Espanha é denominado Ministerio Fiscal e atua sempre na defesa da legalidade, seja como promotor da ação penal, seja como custus legis. É papel do Ministerio Fiscal velar pelas garantias processuais do imputado e pela proteção dos direitos da vítima e dos prejudicados pelo delito 11. A investigação criminal fica a cargo da polícia, que é órgão auxiliar do Ministerio Fiscal e do Judiciário, sendo obrigada a seguir suas instruções 12, entretanto, existe crescente corrente doutrinária posicionando-se pela investigação ministerial direta.
Na Itália, as investigações preliminares são conduzidas pela polícia e pelo Ministério Público, sob o controle direto de um juiz específico para esta fase. A polícia oferece noticia crime, com todas as informações disponíveis, ao Ministério Público, em até 48 horas. A partir deste momento, toda investigação se canaliza através do Ministério Público, que dispõe totalmente da polícia judiciária.
O Ministério Público da França é o titular da ação penal pública e fiscal da lei, entretanto, os seus membros não gozam da estabilidade conferida aos magistrados e estão eles hierarquicamente subordinados ao Ministro da Justiça. A polícia judiciária é subordinada ao Ministério Público, sendo este responsável pelo acompanhamento da investigação e, excepcionalmente, pela sua condução.
Em Portugal, os membros do Ministério Público são denominados magistrados do Ministério Público e possuem a função de praticar todos os atos e assegurar todos os meios de prova necessários à comprovação da existência do crime, à identificação dos agentes e à delimitação das responsabilidades 13. A função do juiz de instrução é tipicamente garantista, passando por ele todas as decisões da investigação. Já a polícia judiciária, realiza todas as diligências determinadas pelo Ministério Público. Este, por sua vez, pode realizar diretamente determinadas diligências autorizadas expressamente por lei.
Na Alemanha, igualmente a Portugal, a investigação criminal fica sob a reserva de competência do Ministério Público. Neste sentido, preleciona Juan-Luis Gomez Colomer (BASTOS, 2004, p. 53):
La doctrina alemana considera como ayudantes Del Ministerio Fiscal, en la realización de los actos propios del procedimiento de averiguación o preparatorio, a las siguientes autoridades y funcionarios: la Policía, el juez Investigador, y las autoridades que prestan ayuda judicial. 1. LA POLICÍA: Es él órgano ayudante de más importancia (...) Como obligaciones generales, la Policía tiene las dos siguientes: 1) Practicar de oficio todas las ordenaciones que no permitan aplazamiento, con° el fin de prevenir el ocultamiento des asunto (...), enviando inmediatamente los resultados al Fiscal; 2) Debe practicar todas las investigaciones que le ordene el Ministerio Fiscal (...)
Nos Estados Unidos, ao Ministério Público (District Attorney) cabe, por exemplo, proceder a negociações com os acusados, celebrar acordos e manter em sigilo o nome de testemunhas. Tais atribuições, cuja origem se associa à necessidade de combate à alta criminalidade, tornam-no "senhor" da conveniência e oportunidade da propositura e exercício da ação penal. Daí revela-se sua ampla competência investigatória.
Ela Wiecko V. de Castilho (1999, p. 3-5) lembra que, no VIII Congresso das Nações Unidas sobre o Delito, realizado em Havana em 1990, aprovou-se a seguinte diretriz:
Os membros do MP desempenharão um papel ativo no procedimento penal, incluída a iniciativa do procedimento e, nos termos da lei ou da prática local, nas investigações dos crimes, na supervisão da legalidade dessas investigações, na supervisão da execução das decisões judiciais e no exercício de outras funções como representantes do interesse público. (grifamos)
As peculiaridades da persecução criminal em cada um destes países tornam tormentosa a formação de parâmetros de comparação válidos, entretanto, parece ser seguro dizer que, para a eficiência da persecução criminal, são indispensáveis um Ministério Público e uma Polícia Judiciária fortes e independentes, com elevada qualificação e mentalidade garantista. Além disto, evidente está a tendência mundial no sentido de uma participação cada vez maior do Ministério Público na fase investigatória.
Separar simplesmente as funções de acusador e investigador não resolve o problema, já que a própria investigação deve ser imparcial, sob pena de macular todo o processo subseqüente. Quem quer que colha as provas necessárias para embasar a acusação criminal, deve ser um órgão técnico, objetivo, imparcial.