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Breves notas sobre o princípio da impessoalidade

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31/05/2006 às 00:00
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6 - Conclusões:

Ao cabo desta breve pesquisa, pode-se concluir que, não obstante os hercúleos esforços de nossa doutrina mais recente em se distinguir a impessoalidade da igualdade, aquela aparece muito mais como um corolário ou especificação desta. Numa representação geométrica, a impessoalidade seria um círculo menor inserta dentro de um círculo maior que corresponderia à igualdade; não havendo, portanto, âmbito de incidência autônomo da impessoalidade. Em outras palavras, as condutas identificadas como ofensivas à impessoalidade também são ofensivas, num olhar sob outro prisma, à igualdade.

Tal fato não reduz a importância do princípio da impessoalidade, que funciona como uma ponte que liga a igualdade aos deveres de imparcialidade, reduzindo o esforço argumentativo do intérprete em fundamentá-los. Ademais, este princípio oferece uma fundamentação mais próxima aos deveres de imparcialidade, o que significa dizer uma fundamentação mais forte.

Os vícios de pessoalidade que caracterizam a Administração Pública brasileira decorrem basicamente de dois problemas: um de ordem jurídica, caracterizado pelo desconhecimento das modalidades de eficácia dos princípios; e outro, mais grave e difícil de ser sanado, decorrente dos ciclos do atraso que caracterizam nossa história, marcada por uma privatização do público desde a época colonial.

Embora o princípio da impessoalidade, inserido no artigo 37, caput, da Constituição Federal, tenha eficácia para impedir os casos de nepotismo e de barriga de aluguel que caracterizam o dia a dia da administração pública nacional, esta modalidade de eficácia lhe é negada justamente para que se possa perpetuar uma prática que interessa a grande maioria daqueles que desempenham funções de estado, tanto no âmbito da administração pública stricto sensu quanto nos demais poderes: a de valerem-se do que é de todos para beneficiar ou privilegiar os seus, mantendo uma estrutura de poder custeada pela máquina estatal e, em última análise, por todos os membros da sociedade (justamente os que são prejudicados por esta prática viciada).

Se à comunidade jurídica cabe zelar pela efetiva aplicação do princípio, em todas as suas modalidades de eficácia possíveis, o que permitiria, no caso, valer-se do princípio para proibir práticas ofensivas ao estado ideal de coisas que ele visa promover independentemente de haver lei específica, tarefa maior incumbe à sociedade como um todo: a de protestar contra os casos de flagrante violação, direta ou oblíqua, denunciando e expondo os violadores, e não admitindo mais como representantes aqueles que assim se valem. Só a rejeição nas urnas é capaz de solucionar de vez o problema cultural mais grave que caracteriza a questão.


7 - Referências:

ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

AVILA, Ana Paula Oliveira. O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

AVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

______. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.

FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Curso de Direito Administrativo, 10ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.

RIBEIRO, Mari Teresa de Melo. O princípio da imparcialidade da administração pública. Coimbra: Almedina, 1996.

SUNDFELD, Carlos Ari. Princípio da Impessoalidade e Abuso do Poder de Legislar. Revista Trimestral de Direito Público n. 5. p. 152-178, 1994.

ZAGO, Lívia Maria Armentano Koenigstein. O princípio da impessoalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.


Notas

01 Como se o Estado não tivesse personalidade jurídica própria e sua atividade administrativa não fosse contínua, mas se tratasse da Administração "daquele chefe" ou "daquele partido político" momentaneamente no poder. Em outras palavras, como se ainda estivéssemos num governo de pessoas, e não de leis.

02Art. 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (grifos nossos).

03 Não só porque o princípio é corolário direto dos sobreprincípios que fundam a República Federativa do Brasil, mas também porque todos os órgão do poder exercem função administrativa, e o fazem em nome do público, com verbas públicas, e para o público, devendo, portanto, fazê-lo em estrita obediência aos princípios constitucionais atinentes à administração pública. Note-se aqui, que a expressão "administração pública" portanto, não se cinge aos atos administrativos praticados pelo Poder Executivo, a quem, por excelência, é atribuída a função administrativa preponderante, mas a toda função administrativa desempenhada pelo Estado, o que inclui as atividades praticadas também no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário (cuja administração também é custeada pela sociedade e deve pautar-se pelas normas constitucionais).

04 O que é mais um argumento em favor da desnecessidade de sua previsão expressa.

05 Para justificar esta distinção o que se vê, na maioria das vezes, é nada mais que uma redução da amplitude do significado da igualdade. Em outras palavras, para dar conteúdo autônomo à impessoalidade os autores, por via oblíqua e talvez sem se dar conta, acabam, na verdade, é reduzindo o conteúdo da igualdade o que, ao nosso ver, não implica qualquer tipo de avanço na matéria (mas apenas uma troca de palavras).

06In ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

07 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 89/90. Afirma o saudoso mestre que "O princípio da impessoalidade, referido na Constituição de 1988 (aret. 37, caput), nada mais é que o clássico principio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal".

08 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Curso de Direito Administrativo, 10ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 68/69. Segundo o autor "Pode-se conceituar o princípio da finalidade como a orientação obrigatória da atividade administrativa ao interesse público especificamente explícito ou implícito na lei.

Com efeito, ao estabelecer, o legislador, qual a finalidade da ação do agente administrativo, proíbe-o de considerar quaisquer inclinações ou interesses pessoais. Essa é a característica, destacada pela Constituição com a designação, que preferiu, de princípio da impessoalidade (art. 37, caput), que já levara Cirne Lima a definir a boa administração como a que prima pela "ausência de subjetividade"."

09 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 71. Assevera a autora que validação de atos praticados, por exemplo, por funcionário cuja investidura no órgão da administração se deu de forma irregular, é decorrência da aplicação do princípio da impessoalidade. Nas suas palavras: "Outra aplicação desse princípio encontra-se em matéria de exercício de fato, quando se reconhece validade aos atos praticados por funcionário irregularmente investido no cargo ou função, sob fundamento de que os atos são do órgão e não do agente público". Vale lembrar que boa parte da doutrina justifica a validação de atos praticados nestas condições, diferentemente de Di PIETRO, no princípio da proteção da confiança ou ainda na boa fé objetiva.

10BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 70. Leciona o autor que o princípio da impessoalidade "não é senão que o próprio princípio da igualdade ou isonomia. Nele, se traduz a idéia de que o Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas".Além disso, como ‘todos são iguais perante a lei’, a fortiori teriam de sê-lo perante a Administração".

11 Dentre os quais Edmir Netto de Araújo, Wolgran Junqueira Ferreira e Diógenes Gasparini, conforme elenca, em amplo trabalho sobre o tema, ZAGO, Lívia Maria Armentano Koenigstein. O princípio da impessoalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 300 e ss.

12 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Os princípios da moralidade pública e da impessoalidade da Administração. Boletim de Direito Administrativo, janeiro de 1992, p. 01-12. Pontifica o autor que "A Administração Pública tem que ser impessoal, sem favorecimentos a quem quer que seja, aplicando as leis do país, por igual, a todos os cidadãos, residentes ou pessoas que aqui transitam, visto que apenas nas monarquias absolutas ou nas ditaduras os ‘amigos do rei’ são favorecidos e os ‘inimidos’ perseguidos.

" À evidência, não se pode falar em impessoalidade sem falar em moralidade, eis que é esta que dá a coloração maior daquela, tornando o administrador um justo servidor público na medida em que não cria privilégios, nem oferta tratamentos desisonômicos e preferenciais". Cabe observar, ainda, que também o Ministério Público Federal associa a noção de impessoalidade a de moralidade, como restou claro ao aduzir, recentemente, em pedido protocolado junto ao Tribunal de Contas da União requerendo a apuração de práticas de nepotismo no Congresso Nacional, que tal conduta, classicamente tida como vício da impessoalidade, ofende também o princípio da moralidade administrativa.

13FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

14 ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

15AVILA, Ana Paula Oliveira. O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

16 Relacionado ao tema, e denunciando a descrença no Judiciário, por contradição performática do órgão, para fazer valer os princípios constitucionais que lhe incumbe aplicar, publicamos, recentemente, em jornal de circulação no Espírito Santo, o artigo O Judiciário e o Déficit de Legitimidade Democrática do Parlamento ( in Jornal do Caparaó).

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17 Op. cit.

18 Op.cit.

19 Op. cit.

20 Op. cit. p. 22 e 37.

21 Op. cit. p. 40.

22 Anotações de aula da disciplina Segurança dos Direitos Fundamentais, ministrada pelo professor Humberto Ávila na UERJ.

23 Op. cit. p.151 e ss.

24 Op. cit. p. 37, onde a autora atribui a distinção de Carmem Lúcia a uma "aguda percepção".

25In Ávila, Ana Paula, op. cit. prefácio.

26 A imparcialidade, ao nosso ver, é condição sine qua non para que se tomem decisões justas (e, nesse sentido específico, aparece como um dever instrumental). Para que a atividade estatal seja pautada por justiça, a imparcialidade é o primeiro requisito necessário, mas não é suficiente. Conforme leciona Antônio Cavalcanti Maia, se a imparcialidade não conduz inequivocamente à justiça (mas é condição para que ela possa ser alcançada) a parcialidade necessariamente conduz à injustiça.

27 A percepção de que o sujeito do conhecimento se relaciona com o objeto do conhecimento ao conhecê-lo, não estando imune a ele, fez romper, nas ciências, com o mito da neutralidade, na medida em que esta interação sujeito objeto influencia na construção do conhecimento. Em outras palavras, o sujeito do conhecimento está no mundo (e não fora dele), e leva toda a sua pré-compreensão ao relacionar-se com o objeto a conhecer. Por isso, não pode ser neutro. O máximo a que consegue chegar é ser imparcial, e objetivo, na medida do possível. Nas palavras de José Vicente dos Santos Mendonça "a afirmação de que a neutralidade científica é impossível corresponde à posição majoritária da filosofia da ciência. Mas o predomínio não veio sem luta e não é exercido sem contestação. O debate sobre a objetividade nas ciências sociais é tão antigo quanto os relatos de Tucidides acerca da Guerra do Peloponeso: o historiador ateniense é apontado como precursor da razão científica neutra. Muito se discutiu desde então. Séculos depois, Nietzche concluiria que " a História é a procissão dos vencedores". Entre os extremos, rio de tinta. E a polêmica ainda não acabou. Diz-se que, modernamente, a partir da enunciação do princípio da incerteza de Heisenberg, segundo o qual um elemento subatômico se comporta ora como partícula, ora como onda, dependendo da expectativa de seu observador, mesmo a objetividade das ciências exatas estaria colocada em xeque. Ter-se-ia justificado a impossibilidade da neutralidade nas ciências sociais.(...) De parte todas as complexidades do assunto, prefere-se ficar com a clara e honesta posição enunciada por Luís Roberto Barroso: "A neutralidade, entendida como um distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, pressupõe um operador jurídico isento não somente das complexidades da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais. Isto é: sem história, sem memória, sem desejos. Uma ficção. O que é possível e desejável é produzir um intérprete consciente de suas circunstâncias: que tenha percepção da sua postura ideológica (auto-crítica) e, na medida do possível, de suas neuroses e frustrações (autoconhecimento)". In Vedação do Retrocesso: o que é e como perder o medo Revista De Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Vol. XII. Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.

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Sobre o autor
Jasson Hibner Amaral

professor de Direito Constitucional em Vitória (ES), mestre em Direito Público pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Jasson Hibner. Breves notas sobre o princípio da impessoalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1064, 31 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8387. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Síntese de seminário apresentado em novembro de 2004, no curso de mestrado da UERJ, como um dos requisitos para aprovação na disciplina Princípios Gerais de Direito do Estado, ministrada pelo professor Doutor Humberto B. Ávila.

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