1. INTRODUÇÃO
Deve-se entender que o Direito de Família, necessariamente, merece ser analisado sob o prisma da Constituição Federal, o que traz uma nova dimensão de tratamento dessa disciplina. Assim sendo, é imperioso analisar os institutos de Direito Privado tendo como ponto origem a Constituição Federal de 1988, o que leva ao caminho sem volta do Direito Civil Constitucional.
Aqui, não se trata apenas de estudar os institutos privados que se encontram previstos na Constituição Federal de 1988, mas, sim, de analisar a Constituição em confronto com o Código Civil, e vice-versa. Para tanto, deverão irradiar de forma imediata as normas fundamentais que protegem a pessoa, particularmente aquelas que constam nos seus arts. 1º a 6º. Diante dessa realidade, será importante reconhecer a eficácia imediata e horizontal dos direitos fundamentais, a horizontalização das normas que protegem a pessoa, e que devem ser aplicadas nas relações entre particulares, dirigidas que são, também, aos entes privados. [01]
Nessa concepção, utilizando a tão conhecida simbologia de Ricardo Lorenzetti, o Direito Privado seria como um sistema solar em que o sol é a Constituição Federal de 1988 e o planeta principal, o Código Civil. Em torno desse planeta principal estão os satélites, que são os microssistemas jurídicos ou estatutos, os quais também merecem especial atenção pelo Direito de Família, caso do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso. [02] Nesse Big Bang Legislativo, é preciso buscar um diálogo possível de complementaridade entre essas leis (diálogo das fontes).
Em suma, deve-se reconhecer também a necessidade da constitucionalização do Direito de Família, pois "grande parte do Direito Civil está na Constituição, que acabou enlaçando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz da nova Constituição". [03]
Portanto, os antigos princípios do Direito de Família foram aniquilados, surgindo outros, dentro dessa proposta de constitucionalização, remodelando esse ramo jurídico.
O presente trabalho visa justamente a demonstrar, de forma breve, quais são esses novos princípios aplicáveis a esse importante ramo do Direito Civil. Esse trabalho de sistematização já foi muito bem desenvolvido pelo advogado e professor Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). [04]
Como se sabe, na realidade pós-positivista, os princípios constitucionais ganharam um novo papel, plenamente aplicáveis às relações particulares. Dos princípios gerais do Direito saltamos à realidade dos princípios constitucionais, com emergência imediata. Justamente por isso é que muitos dos princípios do atual Direito de Família brasileiro encontram substactum constitucional. [05]
Ademais, com o novo Código Civil brasileiro, os princípios ganham fundamental importância, eis que a atual codificação utiliza tais regramentos como linhas mestres do Direito Privado. Muitos desses princípios são cláusulas gerais, janelas abertas deixadas pelo legislador para nosso preenchimento, para complementação pelo aplicador do Direito. Em outras palavras, o próprio legislador, por meio desse novo sistema aberto, delegou-nos parte de suas atribuições, para que possamos, praticamente, criar o Direito.
No que tange ao Direito de Família, é preciso sistematizar os princípios, visando à facilitação didática do tema. Essa sistematização serve também para demonstrar a mudança de paradigmas pela qual passou esse ramo do Direito Civil, o estado da arte da matéria. Passemos à análise desses regramentos básicos.
2. PRINCÍPIO DE PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (ART. 1º, INC. III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988)
Prevê o art. 1º, inc. III, da Constituição Federal de 1988 que o nosso Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Trata-se daquilo que se denomina princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou princípio dos princípios. Diante desse regramento inafastável de proteção da pessoa humana é que está em voga, atualmente entre nós, falar em personalização, repersonalização e despatrimonialização do Direito Privado. [06] Ao mesmo tempo que o patrimônio perde importância, a pessoa é supervalorizada.
Ora, não há ramo do Direito Privado em que a dignidade da pessoa humana tenha mais ingerência ou atuação do que o Direito de Família. De qualquer modo, por certo é difícil a denominação do que seja o princípio da dignidade da pessoa humana. Reconhecendo a submissão de outros preceitos constitucionais à dignidade humana, Ingo Wolfgang Sarlet conceitua o princípio em questão como "o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana". [07]
É possível trazer aqui alguns exemplos de aplicação, pela jurisprudência nacional, do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito de Família.
Primeiro, podemos citar o comum entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o imóvel em que reside pessoa solteira é bem de família, estando protegido pela impenhorabilidade constante da Lei n. 8.009/90. [08] Como reconhece a própria ementa do julgado (aqui transcrita), o que almeja a lei referenciada é a proteção da pessoa, e não de um grupo específico de pessoas, a família em si. Com isso, protege-se a própria dignidade (art. 1º, inc. III, da CF/88) e o direito constitucional à moradia (art. 6º da CF/88).
É certo que, pelo que consta no art. 226 da Constituição Federal, uma pessoa solteira não constituiria uma família, nos exatos termos do sentido legal. Um solteiro, como se sabe, não constitui uma entidade familiar decorrente de casamento, união estável ou família monoparental. Estaria, então, o julgador alterando o conceito de bem de família? Parece-nos que sim, ampliando o seu conceito para bem de residência da pessoa natural ou bem do patrimônio mínimo, utilizando-se a brilhante concepção de Luiz Edson Fachin. Reside, nesse ponto, forte tendência de personalização do Direito Privado.
Como segundo exemplo de aplicação da dignidade humana em sede de Direito de Família, podemos citar a tendência doutrinária e jurisprudencial de relativização ou mitigação da culpa nas ações de separação judicial. [09] A título de exemplo, podemos transcrever:
"SEPARAÇÃO JUDICIAL – PEDIDO INTENTADO COM BASE NA CULPA EXCLUSIVA DO CÔNJUGE MULHER – DECISÃO QUE ACOLHE A PRETENSÃO EM FACE DA INSUPORTABILIDADE DA VIDA EM COMUM, INDEPENDENTEMENTE DA VERIFICAÇÃO DA CULPA EM RELAÇÃO A AMBOS OS LITIGANTES – ADMISSIBILIDADE. A despeito de o pedido inicial atribuir culpa exclusiva à ré e de inexistir reconvenção, ainda que não comprovada tal culpabilidade, é possível ao Julgador levar em consideração outros fatos que tornem evidente a insustentabilidade da vida em comum e, diante disso, decretar a separação judicial do casal. Hipótese em que da decretação da separação judicial não surtem conseqüências jurídicas relevantes. Embargos de divergência conhecidos, mas rejeitados" (STJ, EREsp 466.329/RS, Relator Ministro Barros Monteiro, Segunda Seção, julgado em 14/09/2005, DJ 01/02/2006, p. 427).
Como terceiro e último exemplo, trazemos a tão comentada tese do abandono paterno-filial ou teoria do desamor. Em mais de um julgado, a jurisprudência pátria condenou pais a pagar indenização aos filhos pelo abandono afetivo, por clara lesão à dignidade humana. O julgado mais notório é o do extinto Tribunal de Alçada Civil de Minas Gerais, cuja ementa é transcrita a seguir, com referência expressa à dignidade humana:
"INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana" (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, 7ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 408.555-5. Decisão de 01/04/2004. Relator Unias Silva, v.u.).
Naquela ocasião, reformando a decisão de primeira instância, o pai foi condenado a pagar indenização de 200 salários mínimos ao filho por tê-lo abandonado afetivamente. Isso porque, após a separação em relação à mãe do autor da ação, o seu novo casamento e o nascimento da filha advinda da nova união, o pai passou a privar o filho de sua convivência. Entretanto, o pai continuou arcando com os alimentos para o sustento do filho, abandonando-o somente no plano do afeto, do amor. [10] Entretanto, mais recentemente, a decisão foi reformada pelo Superior Tribunal de Justiça, que afastou a condenação por danos morais. [11]
A decisão provocou manifestações contrárias da doutrina, como a que nos foi enviada por mensagem eletrônica pela jurista Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, professora associada do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo, no dia 30 de novembro de 2005. [12]
Como se pode perceber, o princípio de proteção da dignidade da pessoa humana é o ponto central da discussão atual do Direito de Família, entrando em cena para resolver várias questões práticas envolvendo as relações familiares. Concluindo, podemos afirmar, que o princípio da dignidade humana é o ponto de partida do novo Direito de Família brasileiro. [13]
3. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR (ART. 3º, INC. I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988)
A solidariedade social é reconhecida como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil pelo art. 3º, inc. I, da Constituição Federal de 1988, no sentido de buscar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Por razões óbvias, esse princípio acaba repercutindo nas relações familiares, já que a solidariedade deve existir nesses relacionamentos pessoais. Isso justifica, entre outros, o pagamento dos alimentos no caso de sua necessidade, nos termos do art. 1.694 do atual Código Civil.
A título de exemplo, o Superior Tribunal de Justiça aplicou o princípio em questão considerando o dever de prestar alimentos mesmo nos casos de união estável constituída antes de entrar em vigor a Lei n. 8.971/94, o que veio a tutelar os direitos da companheira. [14] Reconheceu-se, nesse sentido, que a norma que prevê os alimentos aos companheiros é de ordem pública, o que justificaria a sua retroatividade. [15]
Mas vale lembrar que a solidariedade não é só patrimonial, é afetiva e psicológica. Assim, "ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão. Basta atentar que, em se tratando de crianças e adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao Estado (CF 227) o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação". [16]
Entretanto, mesmo assim, "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações" (art. 226, § 8º, da CF/88) – o que consagra também a solidariedade social na ótica familiar.
Por fim, vale frisar que o princípio da solidariedade familiar também implica respeito e consideração mútuos em relação aos membros da família.
4. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE FILHOS (ART. 227, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, E ART. 1.596 DO CÓDIGO CIVIL)
Prevê o art. 227, § 6º, da Constituição Federal que "os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". Complementando o texto constitucional, o art. 1.596 do Código Civil em vigor tem exatamente a mesma redação, consagrando, ambos os dispositivos, o princípio da igualdade entre filhos.
Esses comandos legais regulamentam especificamente a isonomia constitucional, ou igualdade em sentido amplo, constante do art. 5º, caput, do Texto Maior, um dos princípios do Direito Civil Constitucional. [17] Em suma, juridicamente, todos os filhos são iguais, havidos ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange também os filhos adotivos e aqueles havidos por inseminação heteróloga (com material genético de terceiro). Diante disso, não se pode mais utilizar as expressões filho adulterino ou filho incestuoso, as quais são discriminatórias. Também não podem ser utilizadas, em hipótese alguma, as expressões filho espúrio ou filho bastardo. Apenas para fins didáticos utiliza-se a expressão filho havido fora do casamento, já que, juridicamente, todos os filhos são iguais.
Isso repercute tanto no campo patrimonial quanto no pessoal, não sendo admitida qualquer forma de distinção jurídica, sob as penas da lei. Trata-se, portanto, na ótica familiar, da primeira e mais importante especialidade da isonomia constitucional.
5. PrincÍpio da igualdade entre cônjuges e companheiros (art. 226, § 5º, da constituição Federal, e art. 1.511 do código civil)
Assim como há igualdade entre filhos, o Texto Maior reconhece a igualdade entre homens e mulheres no que se refere à sociedade conjugal formada pelo casamento ou pela união estável (art. 226, §§ 3º e 5º, da CF/88). Lembramos que o art. 1º do atual Código Civil utiliza o termo pessoa, não mais homem, como fazia o art. 2º do Código Civil de 1916, deixando claro que não será admitida qualquer forma de distinção decorrente do sexo.
Especificamente, prevê o art. 1.511 do Código Civil de 2002 que o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Por óbvio, essa igualdade deve estar presente na união estável, também reconhecida como entidade familiar pelo art. 226, § 3º, da Constituição Federal, e pelos arts. 1.723 a 1.727 do atual Código Civil. [18]
Diante do reconhecimento dessa igualdade, como exemplo prático, o marido/companheiro pode pleitear alimentos da mulher/companheira ou vice-versa. Além disso, um pode utilizar o nome do outro livremente, conforme convenção das partes (art. 1.565, § 1º, do CC). Vale lembrar que o nome é reconhecido, pelo atual Código Civil, como um direito da personalidade (arts. 16 a 19).
Quanto aos alimentos, reconhecendo essa igualdade, há julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo apontando que a mulher apta a trabalhar não terá direito a alimentos em relação ao ex-cônjuge. Em alguns casos, a jurisprudência paulista entende que haverá direito à pensão somente por tempo razoável para sua recolocação no mercado de trabalho. [19]
Ressalte-se, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça tem reformado essas decisões, que merecem análise caso a caso. [20] Como se pode perceber, a grande dificuldade reside em saber até que ponto vai essa igualdade no plano fático.