O presidente da República deverá sancionar, até o dia 18 de agosto, a nova lei de tóxicos que, em setenta e cinco artigos, redisciplina a matéria inteiramente no nosso país. Ficam revogadas as leis anteriores que cuidavam do mesmo assunto (Leis 6.368/1976 e 10.409/2002). A origem desse novo diploma legal reside no Projeto de Lei (Mensagem 109/02), que foi enviado em 2002 pelo presidente da República ao Congresso Nacional. Esse projeto do Executivo transformou-se no Projeto 115, de 2002, do Senado (7.134, de 2002, na Câmara dos Deputados). Uma das mais notáveis novidades consiste no abandono da pena de prisão para o usuário de drogas. Pretendia-se eliminar a pena de prisão para o usuário já com a Lei 10.409/2002. Mas esse texto legislativo acabou gerando muita polêmica, sendo certo que boa parte dele foi vetada pelo presidente da República.
É preciso distinguir, prontamente, o usuário do "usuário e dependente de drogas". Nem sempre o usuário torna-se dependente. Aliás, em regra o usuário de droga não se converte num dependente. A distinção é muito importante para o efeito de se descobrir qual medida alternativa será mais adequada em cada caso concreto.
Para fins penais, entende-se por usuário de drogas (doravante) quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, qualquer tipo de droga proibida (cf. artigo 28, que será comentado logo abaixo). O usuário não se confunde, de modo algum, com o traficante, financiador do tráfico, etc. Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente (artigo 28, § 2º).
Na atualidade, em termos mundiais, quatro são as tendências político-criminais em relação às drogas (e, paralelamente, ao usuário de droga):
(a) modelo norte-americano: prega a abstinência e a tolerância zero. De acordo com a visão norte-americana, as drogas constituem um problema policial e particularmente militar; para resolver o assunto, adota-se o encarceramento massivo dos envolvidos com drogas; "diga não às drogas" é um programa populista, de eficácia questionável, mas bastante reveladora da política norte-americana. O paradoxo: na Guerra do Vietnã os EUA trocaram apoio por drogas. De outro lado, a solução "militar" para o problema da droga não vem produzindo bons efeitos: a interminável guerra na Colômbia, v.g., evidencia a dificuldade enorme dessa política exageradamente repressiva.
(b) modelo liberal radical (liberalização total): a famosa revista inglesa "The Economist", com base nos clássicos pensamentos de Stuart Mill, vem enfatizando a necessidade de liberar totalmente a droga, sobretudo frente ao usuário; salienta que a questão da droga provoca distintas conseqüências entre ricos e pobres, realçando que só pobres vão para a cadeia.
(c) modelo da "redução de danos" (sistema europeu): em oposição à política norte-americana, na Europa adota-se uma outra estratégia, que não se coaduna com a abstinência ou mesmo com a tolerância zero. A "redução dos danos" causados aos usuários e a terceiros (entrega de seringas, demarcação de locais adequados para consumo, controle do consumo, assistência médica, etc.) seria o correto enfoque para o problema. Esse mesmo modelo, de outro lado, propugna pela descriminalização gradual das drogas assim como por uma política de controle ("regulamentação") e educacional; droga é problema de saúde pública.
d) Justiça terapêutica: propugna pela disseminação do tratamento como reação adequada para o usuário ou usuário dependente. É patente a confusão que faz entre o usuário e o dependente: "Assim como nem todos que tomam um copo de uísque são alcoólatras, também há quem use drogas sem ser dependente. Em termos médicos, é risível condená-lo a tratamento compulsório" (Lei descuidada. "Folha de S.Paulo", 6 jan. 02, p. A-2).
A postura da legislação penal brasileira: a legislação penal brasileira, tradicionalmente, sempre tratou o simples usuário de droga como criminoso (quando o certo seria enfocá-lo algumas vezes como vítima —usuário dependente, que carece de atenção e tratamento—, outras vezes como simples cidadão que num determinado momento optou dentro do seu livre arbítrio por fazer uso momentâneo de uma substância entorpecente, sem prejudicar terceiros —usuário ocasional).
Com a novíssima lei de tóxicos, admite-se a impossibilidade da pena de prisão para o usuário e pretende-se que o assunto nem sequer passe pela polícia. O infrator da lei será enviado diretamente aos juizados criminais, salvo onde inexistem tais juizados de plantão (artigo 48, § 2º). Não há que se falar, de outro lado, em inquérito policial, sim em termo circunstanciado. Não é possível a prisão em flagrante (artigo 48, § 2º). A competência para aplicação de todas as medidas alternativas é dos juizados criminais, salvo onde existem varas especializadas em drogas (estas varas irão acumular as funções de juizados). Na audiência preliminar, é possível a transação penal, aplicando-se as penas alternativas do artigo 28. Não aceita (pelo agente) a transação penal, segue-se o rito sumaríssimo da Lei 9.099/95. Mas no final de modo algum será imposta pena de prisão, sim, somente as medidas alternativas do artigo 28.
Resumidamente, a nova posição legislativa sobre o usuário caracteriza-se pelo seguinte: (a) não associação do uso de drogas com a "demonização política e social" (leia-se: o usuário de droga não deve ser visto como um "demônio" ou criminoso); (b) a sobrevivência da sociedade não depende só da política repressiva; (c) a política do uso controlado, como o álcool, pode dar bom resultado; (d) o uso de droga não é assunto prioritário da polícia (sim, de saúde pública). A novíssima legislação brasileira sobre o assunto representa um avanço e está tendencialmente em consonância com a política européia de redução de danos.
Em relação ao usuário e/ou dependente de drogas, a nova lei de tóxicos não mais prevê a pena de prisão. Isso significa descriminalização, legalização ou despenalização da posse de droga para consumo pessoal? A resposta que prontamente devemos dar reside na primeira alternativa (descriminalização). A posse de droga para consumo pessoal deixou de ser "crime". De qualquer modo, como veremos em seguida, a conduta descrita continua sendo ilícita (uma infração, mas sem natureza penal). Isso significa que houve tão-somente a descriminalização, não concomitantemente a legalização.
Descriminalizar significa retirar de algumas condutas o caráter de criminosas. O fato descrito na lei penal (como infração penal) deixa de ser crime (ou seja: deixa de ser infração penal). Há duas espécies de descriminalização: (a) a que retira o caráter de ilícito penal da conduta mas não a legaliza e (b) a que afasta o caráter criminoso do fato e lhe legaliza totalmente.
Na primeira hipótese, o fato continua sendo ilícito (proibido), porém, exclui-se a incidência do direito penal. O fato deixa de ser punível (do ponto de vista penal). Passa a ser um ilícito administrativo ou de outra natureza. Retira-se da conduta a etiqueta de "crime" (embora permaneça a ilicitude). Descriminalizar, assim, é diferente de descriminalizar e concomitantemente legalizar a conduta. Sempre que ocorre uma descriminalização é preciso verificar se o ato antes incriminado foi totalmente legalizado ou se (embora não configurando uma infração penal) continua sendo contrário ao direito.
O fato descriminalizado (que é retirado do âmbito do direito penal) pode deixar de constituir um ilícito penal, mas continuar sendo sancionado administrativamente ou com sanção de outra natureza.
Na legalização o fato é descriminalizado e deixa de ser ilícito, ou seja, passa a não ser objeto de qualquer tipo de sanção. A venda de bebidas alcoólicas para adultos, v.g., hoje, está legalizada (não gera nenhum tipo de sanção: civil ou administrativa ou penal, etc.).
Despenalizar é outra coisa: significa suavizar a resposta penal, evitando-se ou mitigando-se o uso da pena de prisão, mas mantendo-se intacto o caráter de "crime" da infração (o fato continua sendo infração penal). O caminho natural decorrente da despenalização consiste na adoção de penas alternativas para o delito. A lei dos juizados criminais, por exemplo, não descriminalizou nenhuma conduta, apenas introduziu no Brasil quatro medidas despenalizadoras (processos que procuram evitar ou suavizar a pena de prisão).
Abolitio criminis: o projeto que será sancionado aboliu o caráter "criminoso" da posse de drogas para consumo pessoal. Esse fato deixou de ser legalmente considerado "crime" (embora continue sendo um ilícito, um ato contrário ao direito). Houve, portanto, descriminalização, mas não legalização. Estamos, de qualquer modo, diante de mais uma hipótese de abolitio criminis. Vejamos:
Por força da Lei de Introdução ao Código Penal (artigo 1º), "Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente" (cf. Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro − Dec.-Lei 3.914/41, artigo 1º).
Ora, se legalmente (no Brasil) "crime" é a infração penal punida com reclusão ou detenção (quer isolada ou cumulativa ou alternativamente com multa), não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (com a nova lei) deixou de ser "crime" porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos – artigo 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal (que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa). Em outras palavras: a nova lei de tóxicos, no art. 28, descriminalizou a conduta da posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de "infração penal" porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração "penal" no nosso país.
Infração "sui generis": diante de tudo quanto foi exposto, conclui-se que a posse de droga para consumo pessoal passou a configurar uma infração "sui generis". Não se trata de "crime" nem de "contravenção penal" porque somente foram cominadas penas alternativas, abandonando-se a pena de prisão. De qualquer maneira, o fato não perdeu o caráter de ilícito (recorde-se: a posse de droga não foi legalizada). Constitui um fato ilícito, porém, não penal, sim, "sui generis". Não se pode de outro lado afirmar que se trata de um ilícito administrativo, porque as sanções cominadas devem ser aplicadas não por uma autoridade administrativa, sim, por um juiz (juiz dos juizados ou da vara especializada). Em conclusão: nem é ilícito "penal" nem "administrativo": é um ilícito "sui generis".
Direito judicial sancionador: se a posse de droga para consumo pessoal passou a ser infração "sui generis" (não se trata mais nem de "crime" nem de "contravenção penal"), coerente parece afirmar que esse fato tampouco pertence ao direito "penal". O tratamento conferido ao usuário na nova lei de tóxicos constitui então, sem sombra de dúvida, exemplo de direito judicial sancionador.
Criminalização, despenalização e descriminalização: antes da Lei 9.099/95 (lei dos juizados criminais) o artigo 16 da Lei 6.368/1976 contemplava a posse de droga para consumo pessoal como criminosa (cominando-lhe pena de seis a dois anos de detenção). A conduta que acaba de ser descrita era problema de "polícia" (e levava muita gente para a cadeia). Adotava-se a política da criminalização.
A partir da Lei 9.099/1995 permitiu-se (artigo 89) a suspensão condicional do processo e, desse modo, abriu-se a primeira perspectiva despenalizadora em relação à posse de droga para consumo pessoal. Afastou-se a resposta penal dura precedente, sem retirar o caráter criminoso do fato.
Com a Lei 10.259/01 ampliou-se o conceito de infração de menor potencial ofensivo para todos os delitos punidos com pena até dois anos: esse foi mais um passo despenalizador em relação ao artigo 16, que passou para a competência dos juizados criminais. A consolidação dessa tendência adveio com a Lei 11.313/2006, que alterou o artigo 61 para admitir como infração de menor potencial ofensivo todas as contravenções assim como os delitos punidos com pena máxima não excedente de dois anos.
O caminho da descriminalização adotado agora pelo legislador brasileiro, de modo firme e resoluto, constitui o ponto culminante de uma opção político-criminal minimalista (que se caracteriza pela mínima intervenção do direito penal).