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Constitucionalização do Direito Privado e seu reflexo na relação contratual moderna

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26/08/2006 às 00:00
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Os estudos mais recentes têm demonstrado a falácia da visão estática, atemporal e desideologizada do direito civil. Pretende-se investigar a inserção de institutos de Direito Civil no texto constitucional e os fundamentos de sua validade jurídica.

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

Com seus diversos dispositivos relacionados ao Direito Civil, a Constituição lhe deu um novo enfoque ao estabelecer, p. ex., a proteção ao consumidor, a função social da propriedade, a igualdade entre homens e mulheres no Direito de Família, a igualdade entre os filhos. [01]

Direitos que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade inviolable et sacrée, foram submetidos a radicais limitações já em outras declarações contemporâneas; direitos que as declarações setecentistas nem sequer mencionavam, tais como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações. [02]

De acordo com Paulo Luiz Netto Lobo [03], o direito civil sempre foi identificado como o locus normativo privilegiado do indivíduo; nenhum ramo do direito era mais distante do direito constitucional do que ele. Em contraposição à constituição política, era cogitado como constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação liberal.

Sua lenta elaboração vem atravessando a história do direito romano-germânico há séculos, parecendo infenso às mutações sociais, políticas e econômicas, às vezes cruentas, com que conviveu. Parecia que as relações jurídicas interpessoais, particularmente o direito das obrigações, não seriam afetadas pelas vicissitudes históricas, permanecendo válidos os princípios e regras imemoriais, pouco importando que tipo de constituição política fosse adotada. [04]

Os estudos mais recentes têm demonstrado a falácia dessa visão estática, atemporal e desideologizada do direito civil. Não se trata, apenas, de estabelecer a necessária interlocução entre os variados saberes jurídicos, com ênfase entre o direito privado e o direito público, concebida como interdisciplinaridade interna. Pretende-se não apenas investigar a inserção de institutos de Direito Civil no texto constitucional, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos. [05]

Pode afirmar-se que a constitucionalização é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação judicial, da legislação infraconstitucional. [06]

Irretocável é e exposição de Canotilho sobre o tema:

"A idéia de Drittwirkung ou de eficácia direta dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada continua, de certo modo, o projeto da modernidade: modelar a sociedade civil segundo os valores da razão, justiça, progresso do Iluminismo. Este código de leitura – pergunta-se – não estará irremediavelmente comprometido pelas concepções múltiplas e débeis da pós-modernidade? Coloquemos entre parêntesis a caracterização de pós-modernidade (alguém sabe?). Perguntemos apenas, tendo em conta os exemplos ou casos atrás referenciados, se todos eles merecem a mesma resposta. E por que uma única solução em vez de soluções múltiplas. Por que uma deliberação valorativa heterônoma da Constituição em nome do "direito a ser mãe" em detrimento de um esquema processual de negociação corporizador do "direito da mulher a criar o seu papel" no mundo organizacional das corporations? Por que a imperatividade da equal protection clause em vez da singularidade e das diferenças nas relações humanas, justificativas do triunfo da negociação, da flexibilidade, da adaptabilidade e da permissividade? É bem de ver que estas interrogações pressupõem já um outro mundo: o da absolutização das diferenças e da singularidade, o da complexidade, da indeterminação e do relativismo! Numa palavra: o mundo da pós-modernidade. Mas não só. É também o mundo do globalismo e da arbitragem, da desestatização e da privatização da ordem liberal mundial da bolsa e do comércio. Poderá ainda a ordem normativo-constitucional e dos seus respeitáveis valores da razão, da pessoa e do progresso abarcar a desordem, a indeterminação, a globalização e o diferencialismo? O problema que se põe a qualquer jurista colocado no meio destes dois mundos é o de saber como resolver em termos juridicamente rigorosos e constitucionalmente não-capitulacionistas as questões da ponderação de direitos e bens através de uma balança que já não tem só dois pratos, antes digitaliza em termos reais interesses múltiplos e múltiplos interesses. De qualquer forma, e à laia de roteiro problemático, cremos que a epígrafe deste estudo exprime bem o punctum saliens da questão. A "constitucionalização do direito civil" e a "civilização do direito constitucional" não dispensam a abordagem de relevantes problemas metódicos como os da unidade da ordem jurídica, da autonomia do direito privado e do direito público, da interpretação do direito privado em conformidade com a Constituição, da aplicação jurídica imediata dos direitos fundamentais pelo juiz e da articulação da observância dos direitos fundamentais com a ordem pública." [07]

Porém, conforme nota Gustavo Tepedino [08], a civilística brasileira se mostra resistente às mudanças históricas que carrearam a aproximação entre o direito constitucional e as relações jurídicas privadas. [09] Para o direito civil, os princípios constitucionais equivaleriam a normas políticas, destinadas ao legislador e, apenas excepcionalmente, ao intérprete, que delas poderia timidamente se utilizar, nos termo do art. 4º, da LICC, como meio de confirmação ou de legitimação de um princípio geral de direito.

Tal visão pode ser melhor compreendida através de uma abordagem sociológica do Direito. Por decênios (séculos, na verdade), a sociedade se viu refém de uma leitura tacanha dos preceitos legais e constitucionais feita pelos Poderes estatais. Buscava-se, e hoje em grande ainda se busca, tão somente a manutenção do status quo obtido pela elite econômica; valoriza-se de forma exacerbada a forma, os meios, em prejuízo do fim a ser alcançado. [10] Essa situação levou o nosso país a sofrer atraso social de décadas em relação a outras partes do globo.

Por muito mais de uma vez foram necessárias duas, três, quatro reformas vultosas na legislação – quando muitas vezes nenhuma era necessária, bastando uma nova leitura dos dispositivos já existentes – para que se alcançasse na prática uma simples alteração de visão. A Constituição – e, bem da verdade, qualquer texto que visasse à garantia de direitos fundamentais e a exaltar valores sociais – não era vista como mais do que uma folha de papel, para utilizar a expressão de Ferdinand Lassale.

Um esforço hercúleo ainda se faz necessário para expurgar o ranço individualista do liberalismo de nosso sistema, para que finalmente o bem público deixe de ser tratado como privado, e para que o bem privado deixe de visar tão somente a obtenção de objetivos egoísticos, passando a atender uma função social.

Esta "efetividade efetiva" das normas constitucionais, cada vez mais evidente nos últimos anos, leva a uma nova leitura das normas infraconstitucionais, no que pode finalmente vir a ser uma aplicação plena da estrutura hierárquica das normas proposta por Kelsen, onde a norma inferior somente é válida na medida em que observa os limites formais e, principalmente, materiais estatuídos por aquela que lhe é superior.

A Constituição de 1998 consagrou uma nova tábua axiológica, alterando o fundamento de validade de institutos tradicionais do direito civil. A dignidade da pessoa humana, a cidadania e a igualdade substancial tornam-se fundamentos da República, enquanto os valores inerentes à pessoa humana e um expressivo conjunto de direitos sociais foram elevados ao vértice do ordenamento. A partir de então, todas as relações de direito civil, antes circunscritas à esfera privada, devem ser revisitadas, funcionalizadas aos valores definidos pelo texto maior. Surge assim uma nova ordem pública, chamando os intérpretes do direito para um processo interpretativo que, sem minimizar o espaço tradicionalmente reservado ao direito civil, determina a sua expansão e revigoramento, oferecendo novas funções e horizontes a institutos antes confinados ao alvedrio individual e a um mero controle de validade. [11]

Atentando a essas idéias, o que pretendemos apresentar neste trabalho é, após traçar o escopo histórico dessa mudança de enfoque, mostrar alguns aspectos da visão constitucional do direito privado, bem como seus paradigmas.

Aqui não pretendemos esgotar o tema, mas apenas traçar seus aspectos mais importantes, apresentando as idéias essenciais e fundamentais que o cercam.


2. O PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO

Há muito tempo que se fala na "publicização" no direito civil, em razão da constante absorção pelo Estado do campo antes deixado à autodeterminação das partes; porém, esta fórmula só apanha um aspecto do fenômeno. Primeiro, segundo João Baptista Villela [12], é infeliz porque a imperatividade ou dispositividade não são critérios seguros para extremar ramos da Ciência Jurídica, fora a falácia de uma oposição rígida entre o público e o privado [13].

Disse ainda o mestre mineiro que a fórmula é pobre em revelações, pois o sentido profundo das transformações por que passa o direito privado reside no seu progressivo dimensionamento social, que se traduz por melhor incorporação da pessoa humana na sua sistemática, pela substituição das idéias de concorrência e competição por aquelas mais humanas de colaboração e boa vontade, tornando-se, enfim, mais dúctil e funcional. Posto que público não é sinônimo de social, nem privado é sinônimo de individual, a publicização de um ramo do Direito não importa, necessariamente, na sua melhor adequação aos valores sociais e humanos; pode até exprimir uma direção inversa. [14]

Há ainda os que, segundo leciona João Baptista Villela [15], dominados pelos esquemas clássicos do direito privado, concebido sob o influxo das idéias liberal-individualistas, e chocados com a tremenda distância que medeia entre as formulações tradicionais e anseios mais humanos, aprofundam com as novas estruturas sócio-econômicas, sucumbem à tentação de transferir para o direito público número cada vez maior de relações e categorias até então situadas na temática privatística – seria este o fenômeno de esvaziamento do direito privado.

Segundo uma e outra perspectiva, a situação atual do contrato estaria a reclamar um equacionamento fora dos quadros do direito privado. Tal posição só pode ser creditada a uma insuficiente apreensão das linhas modernas do direito privado; não se pode falar do direito privado de hoje com olhos na compilação de Justiniano ou no Code Napoleón, adverte Villela [16].

A atividade privada expressa nas legislações do século XIX, observa Orlando Cascio, era "essencialmente a atividade do indivíduo, constituindo o individualismo econômico a base do sistema e das teorias do liberalismo econômico então dominantes". [17]

Diverso é o panorama que encontramos na atualidade. Enquanto, de uma parte, assistimos à formação de grupos de poder econômico em sociedades de capitais, em cartéis, consórcios, trusts, de proporções sempre maiores (nas quais o sócio individual quase desaparece e os seus interesses ficam submersos e, muitas vezes, sacrificados aos outros interesses da coletividade social), de outra parte, temos a consolidação de associações, ou de agrupamentos vários, com fito de defender interesses coletivos, que não são apenas do indivíduo, mas que não são tampouco da generalidade de todos os cidadãos, mas de uma dada coletividade. Tais interesses devem ter sua tutela própria no direito privado, bastante amplo para compreender, ao lado da autonomia individual, também uma autonomia coletiva, mesmo porque esta é o meio pelo qual se desenvolve e se fortalece aquela. [18]

Villela [19] observa que é natural que nessa ordem de coisas não se possa pretender que o direito privado seja apenas ou prevalentemente o direito do indivíduo, nem, muito menos, que ele se resolva num campo aberto de pura atributividade. O que se verifica, de par com uma constante impregnação do social, é uma crescente objetivação do direito privado. Tal como ocorreu no âmbito particular do direito comercial, que passou de uma fase subjetivista para uma fase objetivista, isto é, deixou de ser o direito do comerciante para se tornar o direito dos aos de comércio, e hoje direito da empresa, assim também o direito civil se objetiva por modo a compreender na sua estrutura inclusive a própria atividade estatal, quando, entre outras oportunidades, ela se exerce não por meio do unilateral imposto, mas sim do bilateral negociado.

Pode-se dizer, então, que independentemente do grau de intervenção estatal, se o exercício do direito se dá por particular em face de outro particular, ou quando o Estado se relaciona paritariamente com o particular sem se valer de seu império, então o direito é privado. [20]

Longe, pois, de um esvaziamento do direito privado, o que se vê é um recurso cada vez mais freqüente aos seus modos típicos de expressão e realização. Não havendo, pois, razão para excluir a temática dos contratos do âmbito do direito privado. [21]

2.1 Do liberalismo ao Estado Social

O liberalismo oitocentista cristalizou a autonomia da vontade como dogma da teoria contratual, possibilitando às partes ampla liberdade de estabelecer deveres e direitos negociais. Basicamente os únicos controles passíveis de serem feitos em relação aos contratos diziam respeito à aferição da existência ou vício de consentimento, à licitude e possibilidade do objeto e à adoção de forma, ainda assim desde que prescrita em lei. Afora esses controles, o contrato era intangível e fazia lei entre as partes (art. 1134, do Code Napoleón), não podendo os contraentes se desvincularem dos direitos e obrigações assumidos, salvo por força de novo acordo de vontades ou de eventos fáticos incontroláveis pelas pessoas, como a força maior e o caso fortuito. [22]

Os dois pilares da concepção liberalista eram constituídos pela propriedade e pelo contrato, ambos entendidos como esferas sobre as quais se exerce a plena autonomia do indivíduo. Deles, sobretudo a propriedade individual constituía o verdadeiro eixo do sistema do Direito Privado, tanto que o contrato, na sistemática dos códigos oitocentistas, era regulamentado essencialmente como "modo de aquisição da propriedade". [23]

Já quando se comemorava o centenário da mais característica expressão do ideal individualista do século passado, o Code Napoléon, publicado em 1804, sentia-se o abismo que ia de suas disposições às exigências das novas estruturas e das novas concepções de justiça. Tissier [24] não via como aquele Código pudesse ser considerado uma legislação democrática, afirmando mesmo que à época de sua promulgação o empenho não era com a sorte das massas obreiras, senão o de "estabelecer um regime que conservasse à classe média as conquistas e incrementos que tinha obtido durante a Revolução que assegurasse aos pequenos proprietários a manutenção do que lhes havia proporcionado o regime de 1789."

Para Saleilles [25] ele foi "a expressão perfeitamente adaptada de um estado social" que acabava de se impor: "o da preponderância das classes médias e do individualismo burguês", tomada a expressão – adverte – "no mais elevado sentido" e "sem qualquer intenção oculta de desmerecimento". "A epopéia burguesa do direito privado", o qualificou Picard [26].

Na visão do Estado Liberal, o contrato é instrumento de intercâmbio econômico entre os indivíduos, onde a vontade reina ampla e livremente. Salvo apenas pouquíssimas limitações de lei de ordem pública, é a autonomia da vontade que preside o destino e determina a força da convenção criada pelos contratantes. O contrato tem força de lei, manifestada apenas entre os contratantes. [27]

Todo o sistema contratual se inspira no indivíduo e se limita, subjetiva e objetivamente à esfera pessoal e patrimonial dos contratantes. Três são, portanto, os princípios clássicos da teoria liberal do contrato: o da liberdade contratual, de sorte que as partes, dentro dos limites da ordem pública, podem convencionar o que quiserem e como quiserem; o da obrigatoriedade do contrato, que se traduz na força de lei atribuída às suas cláusulas (pacta sunt servanda); e o da relatividade dos efeitos contratuais segundo o qual o contrato só vincula as partes da convenção, não beneficiando nem prejudicando terceiros (res inter alios acta neque nocet neque prodest). [28]

Com a Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, teve início uma série de alterações ao direito privado, na medida em que foi trazido da marginalidade social e econômica um enorme contingente de pessoas que passou a reclamar o acesso aos melhores quadros da civilização. [29] Como conseqüência, houve a dinamização da economia, massificando-se as relações contratuais. A experiência do industrialismo levou à formação das grandes empresas, à concentração de capitais, à produção em larga escala e a outros inúmeros efeitos na ordem econômica, marcando o início de uma profunda transformação no sistema dominante de bens e serviços. Tal circunstância, aliada às vicissitudes de duas grandes guerras e ao influxo generoso de novas idéias sobre o trabalho, a propriedade e a família, foi gradualmente despertando no legislador (i.e., nas forças políticas que exprimem o Poder Legislativo) a consciência para os chamados direitos econômicos e sociais. [30]

O modelo de negócio jurídico paritário e individual – em que as partes discutiam prévia e consensualmente os direitos e deveres que assumiam – cedeu passo à contratação por adesão, limitando o contratante a anuir com estipulações unilateralmente estabelecidas pelo fornecedor de produtos ou serviços. Este método de contratação – embora de inegável vantagem a ambos contratantes, facilitando e agilizando os negócios, não distinguindo as classes sociais, racionalizando a transferência de bens de consumo à toda sociedade, possibilitando, ao menos aos fornecedores, a previsão de riscos [31] – mostrou-se incompatível com os modos de controle do modelo tradicional de contrato.

Em decorrência de sua natural posição de superioridade na relação contratual, o fornecedor passou a introduzir cláusulas abusivas em detrimento da outra parte. Os contratos massificados repercutiam e, muitas vezes, prejudicavam interesses de pessoas ou de segmentos da sociedade estranhos às partes contratantes, e.g., em questões sobre meio ambiente e concorrência desleal. Assim, o dogma da autonomia da vontade e seus corolários passaram a – em vez de promover a solidariedade humana – chancelar injustiças sociais. [32]

O Estado social se impôs, progressivamente, a partir dos fins do século XIX e princípios do século XX, provocando o enfraquecimento das concepções liberais sobre a autonomia da vontade no intercâmbio negocial e afastando o neutralismo jurídico diante do mundo econômico. A conseqüência foi o desenvolvimento dos mecanismos de intervenção estatal no processo econômico, em graus que têm variado, conforme o local e a época, indo de uma planificação global da economia em moldes das idéias marxistas; ou atuando com moderação segundo um dirigismo, apoiado em modelo em que o controle econômico compreende uma atuação mais sistemática e com objetivos determinados; ou ainda, elegendo uma terceira atitude de intervencionismo assistemático, caracterizado pela adoção de medidas esporádicas de controle econômico, para fins específicos. [33]

Notou-se que em muitos casos o acordo era mais aparente do que real, porque onde vigorava a desigualdade econômica, e especialmente onde a necessidade se impunha, dificilmente se poderia falar de vontades livres. Tornou-se imperiosa a criação de um sistema de vedações e exigências, a fim de impedir a espoliação do fraco pelo forte, bem assim de assegurar a prevalência dos interesses do bem comum sobre as pretensões individuais. [34]

O Estado legislador movimenta-se então mediante leis extracodificadas, atendendo às demandas contingentes e conjunturais, no intuito de reequilibrar o quadro social delineado pela consolidação de novas castas econômicas, que se formavam na ordem liberal e que reproduziam, em certa medida, as situações de iniqüidade que, justamente, o ideário da Revolução Francesa visava a debelar. [35]

Assim concebidas, tais leis extracodificadas corroboravam o papel constitucional do Código Civil no que concerne às relações privadas, como lecionava a dogmática tradicional, permitindo que situações não previstas pudessem ser reguladas excepcionalmente pelo Estado. Daí por que se ter também designado como de emergência esse conjunto de leis, locução que, de modo eloqüente, a um só tempo exprimia a circunstância histórica justificadora da intervenção legislativa e preservava a integridade do sistema em torno do Código Civil: a legislação de emergência pretendia-se episódica, não ambicionando abalar os alicerces da dogmática civilista. [36]- [37] Delineia-se assim o cenário dessa primeira fase intervencionista do Estado, que aqui se iniciou logo após a promulgação do Código Civil, sem que fosse alterada substancialmente a sua centralidade e exclusividade na disciplina das relações de direito privado.

Tal situação, no entanto, foi pouco a pouco sendo alterada, pela insofismável necessidade do Estado em contemporizar os conflitos sociais emergentes, bem como em razão das inúmeras situações jurídicas suscitadas pela realidade econômica e simplesmente não alvitradas pelo Código Civil. Assim é que se contabiliza, a partir dos anos 30, no Brasil, robusto contingente de leis extravagantes que, por sua abrangência, já não se compadeceriam com o pretendido caráter excepcional, na imagem anterior que retratava uma espécie de lapso esporádico na completude monolítica do Código Civil. Cuida-se de uma sucessão de leis que disciplinam qualquer caráter emergencial ou conjuntural, matérias não previstas pelo codificador. [38]

As ingerências legislativas invadiram então o campo antes deixado ao livre arbítrio dos contratantes. Tabelamento de preços, congelamento de aluguéis, renovação compulsória de locações, proscrição da usura, ineficácia de certas cláusulas exonerativas, etc., são expressões deste intervencionismo. Por outro lado, decisões pretorianas dos tribunais, admitindo com mais ou menos liberalidade a teoria da imprevisão, a resolução por excessiva onerosidade, o abuso de direito, jogaram por terra a antiga majestade do pacta sunt servanda. [39]

Pode-se registrar assim uma segunda fase no percurso interpretativo do Código Civil, em que se revela a perda do seu caráter de exclusividade na regulação das relações patrimoniais privadas. A disciplina codificada deixa de representar o direito exclusivo, tornando-se o direito comum, aplicável aos negócios jurídicos em geral. Ao seu lado situava-se a legislação extravagante que, por ser destinada a regular novos institutos, surgidos com a evolução econômica, apresentava característica de especialização, formando, por isso mesmo, um direito especial, paralelo ao direito comum estabelecido pelo Código Civil. Através de tais normas, o legislador brasileiro levou a cabo longa intervenção assistencialista, expressão da política legislativa do welfare state [40] que se corporifica a partir dos anos 30, tem assento constitucional nas Cartas de 1934, 1946 e 1967, e cuja expressão, na teoria das obrigações, se confundiu no conhecido fenômeno do dirigismo contratual. [41]

Bobbio vê um "passagio dallo stato ‘garantista’ allo stato ‘dirigista’ e conseguentemente la metamorfosi del diritto da strumento di ‘controlo sociale’ nel senso stretto della parola in strumento di ‘direzione sociale’". [42]

Tal modificação no papel do Código Civil brasileiro representa uma profunda alteração na própria dogmática. Identificam-se sinais de esgotamento das categorias do direito privado, constatando-se uma ruptura que bem poderia ser definida, conforme a análise de Tulio Ascareli [43] como uma crise entre o instrumental teórico e as formas jurídicas do individualismo pré-industrial, que repelem o individualismo. Os novos fatos sociais dão ensejo a soluções objetivistas e não mais subjetivistas, a exigirem do legislador, do intérprete e da doutrina uma preocupação com o conteúdo e com as finalidades das atividades desenvolvidas pelo sujeito de direito.

Esse estado de coisas enseja uma abrangência cada vez menor do Código Civil, contrapondo-o à vocação expansionista da legislação especial. A partir do processo de industrialização que tem curso na primeira metade do século XX, das doutrinas reivindicacionistas e dos movimentos sociais instigados pelas dificuldades econômicas, que realimentavam a intervenção estatal, verifica-se nos textos constitucionais posteriores a 1914 a introdução de princípios e normas estabelecendo deveres sociais no desenvolvimento da atividade econômica privada. Assumem as Constituições compromissos a serem levados a cabo pelo legislador ordinário, demarcando os limites da autonomia privada, da propriedade e do controle dos bens. A Constituição brasileira de 1946 é um bom exemplo desta tendência. [44]

Superado o modelo do Estado liberal puro, alheio por completo aos problemas econômicos, pois não há mais Estado que se abdique da atuação reguladora da economia, o que varia são os níveis internos e externos dessa atividade controladora. Essa nova postura institucional não poderia deixar de refletir sobre a teoria do contrato, visto que é por meio dele que o mercado implementa suas operações de circulação das riquezas. Por isso, não se abandonam os princípios clássicos que vinham informando a teoria do contrato sob o domínio das idéias liberais, mas se lhe acrescentam outros, que vieram a diminuir a rigidez dos antigos e a enriquecer o direito contratual com apelos e fundamentos éticos e funcionais. [45]

O Código Civil perde, assim, definitivamente, o seu papel de Constituição do direito privado. [46] Os textos constitucionais, paulatinamente, definem princípios relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao Código Civil e ao império da vontade: a função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a organização da família, matérias típicas do direito privado, passam a integrar uma nova ordem pública constitucional. Por outro lado, o próprio direito civil, através da legislação extracodificada, desloca sua preocupação central, que já não se volta tanto para o indivíduo, senão para as atividades por ele desenvolvidas e os riscos delas decorrentes. [47]

Afastada a ameaça do Estado-agente econômico, com intervenção plena na produção e circulação de riquezas, em que o intervencionismo extremo conduziria ao cancelamento ou à minimização dos princípios clássicos da teoria dos contratos, remanesce o Estado Social de Direito com sua tônica voltada para o aumento crescente das normas de ordem pública para harmonizar a esfera do individual com o social. Nessa altura é inegável que o direito contratual não se limita aos três princípios clássicos da liberdade de contratar; da força obrigatória das convenções e da relatividade dos efeitos. [48] A estes vieram se somar outros três: a boa-fé objetiva; o equilíbrio econômico, e a função social do contrato.

O percurso evolutivo dos institutos do direito privado dá mostras eloqüentes desse processo. A exagerada atenção do Código Comercial para com o comerciante cede lugar para os atos de comércio e para a empresa. A tônica excessiva do Código Civil em torno do sujeito de direito é substituída pela atenção do legislador especial para com as atividades, seus riscos e impacto social, e para a forma de utilização dos bens disponíveis, de maneira a assegurar resultados sociais pretendidos pelo Estado. [49]

Assim, emerge nova concepção de direito privado, reconhecendo a função social do contrato, limitando e enquadrando a autonomia da vontade – por meio de intervenção estatal – e, bem por isso, a liberdade de contratar e de estipular direitos e deveres, relativizando a força obrigatória dos contratos, buscando a proteção da confiança e dos interesses legítimos dos contratantes e, conseqüentemente, a eqüidade contratual. Os mecanismos de controle estatal dos contratos ultrapassam a mera análise de aspectos formais do negócio para interferir em suas estipulações, alterando-as, nulificando-as, equilibrando-as – algo impensável no sistema do liberalismo, em que intocável a vontade das partes, restando ao Estado o papel de garantidor das regras da livre contratação e dos efeitos do não-cumprimento do contratado, ou de sua anulação, em casos de vício, tão somente – para corrigir situações de desigualdade, quer desde logo quando da contratação (lesão), quer em momento posterior (onerosidade excessiva). [50]

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O contrato não prescinde de um contexto ou de uma "realidade exterior" que envolva interesses, relações, situações socieconômicas. A sua função é, justamente, servir de instrumento de operações econômicas e veículo de realização da vontade humana na construção da sociedade. Em outras palavras, o contrato, enquanto conceito jurídico, não é um fim em si mesmo, ou mero vínculo de débito e crédito, mas um meio de dar forma às operações e interesses econômicos que se querem tutelar. [51]

Com cada vez maior freqüência aumentam os pontos de confluência entre o público e o privado, em relação aos quais não há uma delimitação precisa fundindo-se, ao contrário, o interesse público e o interesse privado. Tal convergência se faz notar em todos os campos do ordenamento, seja em virtude do emprego de instrumentos privados por parte do Estado, seja na elaboração da categoria dos interesses difusos ou supra-individuais, seja, no que tange aos institutos privados, na atribuição de função social à propriedade, na determinação imperativa do conteúdo de negócios jurídicos, na objetivação da responsabilidade e na obrigação legal de contratar. [52]

Assim, em contrapartida a essa publicização do direito privado, diversos autores se referem a uma privatização do direito público em virtude da freqüente utilização das técnicas e instrumentos do direito privado no setor público, como nas políticas de incentivo, onde os objetivos públicos são alcançados através de contratos de financiamento subsidiados, com a destinação do empréstimo estabelecida por lei. [53]

Comentando a extensão do dirigismo, observou com extrema lucidez Darcy Bessone que ela "resulta de nos acharmos em momento de transição entre o milenar estádio individualista e uma nova era, ainda indefinida, mas por todos pressentida, na qual as idéias sociais, sem os exageros por muitos pretendidos, vão conquistar terreno e firmar-se em bases mais sólidas. Passada esta hora confusa e indecisa, aclarados os horizontes, tornar-se-á possível a revisão da teoria dos contratos e dos seus princípios fundamentais. Pode-se prever que então as normas serão, de novo, abstratas e permanentes e incorporar-se-ão aos Códigos, conferindo estabilidade às relações contratuais. A chave da questão está, pois, na solução do problema social. Enquanto não se encontrar esta solução, a elaboração legislativa será empírica e transitória, necessariamente sem sistema, destinada somente a tender às necessidades do momento e sob a premência das exigências sociais, certo que os princípios clássicos já não têm aptidão para satisfazê-las" [54].

2.1.1 Autonomia privada

A autonomia privada [55] fornece o suporte sobre o qual incidirão as normas jurídicas, atribuindo-lhes os efeitos que lhes são próprios, já não mais de acordo com a vontade, [56] mas de acordo com os fins a que se propõe a ordem estatal. A ordem jurídica recebe o ato individual e garante a realização dos seus fins – garante-lhe a eficácia – não para satisfazer a qualquer propósito, mas apenas àqueles que o sistema escolheu e protege no interesse comum. [57]

A essa concepção, Aguiar Jr. acrescenta a lição de Jaques Ghestin, segundo a qual a força obrigatória do contrato advém da necessidade de proteção do direito subjetivo, que, por sua vez, decorre do direito objetivo. [58] Tal como toda a ordem estatal, o direito objetivo deve estar destinado a realizar o bem comum, i.e., a alcançar o que é justo e útil socialmente. Assim, somente se enquadra na sua função social o contrato que, sendo útil, é também justo. [59]

Liberdade de contratar é a faculdade de realizar ou não determinado contrato, enquanto que liberdade contratual é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. A primeira se refere à possibilidade de realizar ou não um negócio, enquanto a segunda importa na fixação das modalidades de sua realização. [60]

Autonomia da vontade no contrato abrange, segundo nos ensina o prof. Junqueira [61], dois momentos: o da formação do contrato, em que se supõe que o contratante possa optar por um, entre vários caminhos, como contratar, ou não; e o momento da eficácia, quando esses efeitos se tornam vinculantes, obrigatórios, para os contratantes. Há duas idéias básicas englobadas na expressão autonomia, que podem ser, perfeitamente, separadas pela razão: o princípio da liberdade, no momento da formação, e o da vinculação aos efeitos, no momento posterior à formação. Esses dois princípios estão limitados pela chamada ordem pública e ambos, hoje, sofrem o mesmo embate da prevalência do interesse público, com leis cogentes cada vez mais numerosas. As normas cogentes têm interferido, quer na formação, quer na eficácia do contrato.

Atualmente, a autonomia da vontade é atingida de tal modo pelas normas cogentes, que em alguns casos parece até mesmo desaparecer. Não somente o Estado fixa preços, determina cláusulas, como chega a impor a obrigação de contratar (p. ex., no seguro obrigatório de veículos). Antônio Junqueira [62] aponta que também no momento posterior – o da eficácia – a interferência estatal chega a tal ponto que parece substituir a vontade das partes, por outra, criada por ele mesmo: como caso de o juiz, pela sentença, substituir a declaração de vontade de quem, apesar de obrigado, não cumpre o prometido (CPC 639), e sobretudo em relação às normas que impõem prorrogação do contrato e admitem a revisão judicial dos contratos.

Surge daí a questão: continua sendo a autonomia elemento essencial do contrato?

Há limites antigos, que, de tão conhecidos, se tornaram praticamente incorporados à idéia que fazemos de contrato; e.g., os existentes nas normas sobre a validade dos atos jurídicos. É claro que, se examinarmos as regras sobre a validade de um ato jurídico, chegaremos à conclusão que elas trazem um limite para a liberdade contratual; quanto à forma, p. ex., se exigida a escritura pública, nos negócios sobre imóveis, ou a forma escrita, na fiança, não resta dúvida de que estamos diante de um limite à autonomia com que a parte pode contratar. Ainda sobre essas antigas regras sobre a validade dos contratos, convém lembrar que as normas relativas a erro, dolo, coação, visam a proteger o contratante enganado ou coagido. Portanto, as normas antigas sobre a validade dos atos jurídicos limitam a autonomia privada e protegem o contratante. [63]

Passando às normas mais recentes, tem-se às vezes a impressão de que somente essas é que limitam a autonomia privada e/ou protegem os contratantes. Mas o que ocorre, segundo nos ensina o professor Junqueira [64], é que as normas mais recentes, quando protetivas, procuram beneficiar determinados grupos sociais. Resulta daí seu caráter inédito, moderno, antes que, simplesmente, de serem protetivas. Essas normas cogentes de caráter protetivo não diferem, pois, essencialmente das antigas mas, enquanto as antigas protegiam indivíduos, antes que classes ou grupos sociais, as atuais se caracterizam justamente porque se baseiam, em sua ratio essendi, num desnível econômico muito forte entre determinados grupos sociais.

O conceito de modernidade, conforme leciona Canotilho [65], relaciona-se com o modo de construção sócio-política que se impõe no Ocidente partindo de certos vetores fundamentais: 1) crença nas virtudes da razão originadora de um processo de racionalização técnica, econômica e política; 2) crença nas virtudes da ciência, conferindo ao homem um senhorio crescente sobre as forças da natureza; 3) crença no sentido da história, acreditando que o sentido da história irá impondo progressivamente a sua lei; 4) crença no universalismo do modelo político racional que irá servir de modelo de referência para todos os povos e para todas as épocas; 5) crença no sujeito, capaz de prever, calcular e dirigir a sua vida em termos de liberdade individual. A organização racionalizada das relações sociais encontrou nos documentos constitucionais da modernidade expressões importantes. A afirmação da igualdade de todos os indivíduos, a supressão da hereditariedade dos cargos públicos e a proibição da escravatura são exemplos emblemáticos da eficácia direta dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada.

Do contrato de trabalho, p. ex., que era livre e que poderia eventualmente ser anulado pelo trabalhador, por erro, dolo ou coação, pode-se dizer que somente com essas regras, não correspondia às exigências da Justiça. Foi necessário, então, que o legislador corrigisse a distorção resultante das dificuldades econômicas, criando novas normas; é ele, hoje, um contrato praticamente padronizado, limitado em vários pontos: horas de serviço, salário, férias, descanso semanal etc. O mesmo aconteceu também com outras figuras contratuais típicas, como o mútuo na limitação dos juros e, com a locação. [66]

Junqueira [67] nos apresenta duas maneiras opostas de explicar a autonomia contratual. Há uma, mais antiga, presa ao individualismo dos séculos imediatamente anteriores ao nosso, que procura justificar a vinculação que surge para os contratantes através da própria vontade por eles manifestada: estão obrigados, porque assim o quiseram. O que se quis é justo. É o chamado dogma da vontade.

A outra concepção, mais recente e baseada nos ensinamento de Kelsen, está construída sobre a crítica ao dogma da vontade; é ela publicista ou estatizante; supõe que as partes criem, pelo contrato, normas individuais, comandos concretos, e, naturalmente, tais normas devem se enquadrar na hierarquia geral de normas supra e infra-ordenadas. É o próprio Estado, que outorga poder, ao particular, para se vincular; da mesma maneira que a Constituição outorga poderes ao Presidente da República, aos juízes, etc., dá a lei poder ao particular para realizar atos ou negócios jurídicos. O particular, para o efeito de se autovincular, entra no órgão do aparelho estatal. A autonomia da vontade não é uma fonte de atos humanos à margem do Estado; ela se inclui, está dentro da ordem estatal. A autonomia nada mais é que o poder, conferido pelo Estado, para cada um de nós regulamentar seus interesses. Ela, sob esse aspecto de concessão estatal, não se distingue do poder (competência, jurisdição) dado a outros órgãos estatais. [68]

Dessa posição, que é própria da teoria pura do Direito, discorda frontalmente o Junqueira [69]. Diz que, embora Kelsen fosse um liberal, na verdade, pelo menos sob esse ângulo, a teoria pura do Direito pode ser facilmente usada por qualquer totalitarismo, por que o particular acaba sendo visto como alguém simplesmente autorizado pelo Estado a formular contratos e que, portanto, pode também ser tolhido ou privado desse poder.

Em contraponto, Junqueira [70] nos apresenta uma terceira posição, a qual denomina social. Diz que o negócio jurídico, e mais especificamente, o contrato, brota da sociedade, da sociedade organizada, ou não, em Estado, mas sempre diversa do Estado. E mais, o Estado não se confunde com a sociedade e a autonomia da vontade é antes social que estatal. Aponta ainda que os povos primitivos, existentes ainda hoje ao redor mundo, fazem contratos; em todos os povos primitivos, onde o Direito não está sequer separado da religião ou das normas costumeiras, realizam-se contratos, porque o contrato brota da realidade social, da necessidade de as pessoas se relacionarem; independentemente de lei, as pessoas se vinculam através do contrato. Conclui que o contrato brota do meio social; ele, antes de ser jurídico-legal, é jurídico-social. Esta posição, fundada na sociedade e contrária à da teoria pura do Direito, implica tirar do Estado aquele poder de criar ex nihilo a autonomia privada; esta já viria da sociedade, que pré-existe ao Estado. Haveria, então, um limite – o social – à própria atividade estatal.

Inobstante, a partir desta intromissão estatal, a idéia da vontade como elemento capaz de gerar obrigações, independentemente de texto legal, começou a ser revista. A vontade, como requisito indispensável ao ato jurídico, via de regra, continua intocável; entretanto, é necessário rever o conceito deste requisito, no momento da validade – especificamente quanto às limitações impostas pelo interesse social, seja ele individual homogêneo, coletivo ou difuso. [71]

Em suas linhas gerais, eis o princípio da autonomia da vontade, que genericamente pode enunciar-se como a faculdade que têm as pessoas de concluir livremente os seus contratos. Este princípio não é absoluto, nem reflete a realidade social na sua plenitude. Por isso, dois aspectos de sua incidência devem ser encarados seriamente: um diz respeito às restrições trazidas pela sobrelevância da ordem pública, e outro vai dar no dirigismo contratual, que é a intervenção do Estado na economia do contrato. Vejamo-los, um a um. [72]

Todo contrato parte do pressuposto fático de uma declaração volitiva, emitida em conformidade com a lei, ou obediente aos seus ditames. O direito positivo prescreve umas tantas normas que integram a disciplina dos contratos e limitam a ação livre de cada um, sem o que a vida de todo o grupo estará perturbada. São os princípios que barram a liberdade de ação individual e constituem o conteúdo das leis proibitivas e imperativas. A lei ordena ou proíbe dados comportamento sem deixar aos particulares a liberdade de derroga-los por pactos privados, ao contrário das leis supletivas, que são ditadas para suprir o pronunciamento dos interessados. Quando um contrato é ajustado, não é possível fugir da observância daquelas normas, sob pena de sofrer penalidades impostas inafastavelmente. Os contratantes sujeitam, pois, sua vontade ao ditado dos princípios da ordem pública e dos bons costumes. [73]

Dentro desses campos, cessa ou reduz-se a liberdade de contratar. Se a ordem jurídica interdiz o procedimento contra certos princípios, que se vão articular na própria organização da sociedade ou na harmonia das condutas, a sua contravenção penetra as raias do ilícito, e o ato negocial resultante é ferido de ineficácia. [74]

O contrato, que reflete por um lado a autonomia da vontade, e por outro submete-se à ordem pública, há de ser, na lição de Caio Mário [75], a resultante deste paralelogramo de forças. Como os conceitos de ordem pública e bons costumes variam, e os conteúdos das respectivas normas por via de conseqüência, certo será então enunciar que em todo tempo o contrato é momento de equilíbrio destas duas forças, reduzindo-se o campo da liberdade de contratar na medida em que o legislador entenda conveniente alargar a extensão das normas de ordem pública, e vice-versa.

Assim é que a autonomia da vontade se coloca em termos diversos, em que a liberdade de contratar, que lhe dá sustento, não mais pode ser compreendida de modo absoluto, nas três vertentes sob as quais sempre se manifestou. Nem sempre há escolha de contratar ou não e de com quem contratar, bastando lembrar, a propósito, hipóteses como a da compulsória renovação da locação, da prestação, em regra irrecusável, de serviços monopolísticos ou do fornecimento de massa (CDC 39, II). Da mesma forma, devem ser lembradas as cláusulas gerais de contratos estandardizados, que impedem a livre fixação do conteúdo contratual. Ou seja, completamente modificada a liberdade contratual subjacente à autonomia da vontade, aliás em extensão tal de modo a ensejar dizer-se hoje existente um novo princípio dos contratos, o princípio da autonomia privada, diferenciado da autonomia da vontade. [76]- [77]

Daí se dizer ser indispensável pensar em liberdade com justiça social, pois, fora disto, a liberdade seria uma falácia em que os mais fortes determinam as regras, seja em que campo for – notadamente no campo econômico-social. Neste sentido temos, p.ex., regras que coíbem as situações de formação de cartel, em prejuízo ao consumidor. [78]

Diante do reconhecimento da moderna função social atribuída ao contrato [79], a autonomia privada não desaparece e continua sendo a base de sustentação do instituto jurídico do contrato. Limitado, porém, é o poder individual que dela agora deflui, pela agregação das idéias de justiça e solidariedade social, que passam a figurar também como princípios a se observar no campo do direito do contrato. Daí falar-se em acréscimo de novos princípios como o da boa-fé e o da função social. [80]

A extensão e o conteúdo da relação obrigacional já não se mede somente na vontade, e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa ao controle das partes. [81]

2.1.2 A subsistência da figura contratual

De uma certa época em diante, a economia tornou-se cada vez mais dirigida, e a intervenção do Estado recrudesceu sensivelmente. A dogmática do contrato sofre, então, mudança radical. O Estado intervém nas três fases da vida contratual: na formação do contrato, impondo às partes celebra-lo ainda contra sua vontade e contra seus interesses; estabelecendo cláusulas obrigatórias em muitas avenças que interessam de perto a economia popular; e supervisionando a execução ao dotar o Poder Judiciário de instrumental suficiente para intervir no sentido de restabelecer a justiça comutativa, sempre que uma das partes se avantaje à outra. E deste conglomerado avulta a intervenção estatal na economia do contrato, o dirigismo contratual como princípio informativo. [82]

Discute-se se essa intervenção do Estado moderno na vida dos contratos, restringindo em muito a autonomia das partes, não teria chegado ao ponto de aniquilar a viabilidade de um livre acordo na esfera dos interesses patrimoniais. Terá esta política legislativa e judiciária, sob cujo regime vivemos hoje tão intensamente, comprometido a existência do contrato, concebido como livre manifestação da vontade? [83]

Para muitos o dirigismo contratual, se não liquidou por completo com o contrato, retirou-lhe parte da substância. Segundo Morin [84], existe uma discordância entre o nocional e o real, pois a noção de contrato já não corresponde à sua configuração real. Contrato dirigido e contrato coletivo não podem ser para ele contratos na plena significação do termo.

Diz-se que a livre discussão preliminar, ainda que não arrolada na lei como essencial ao contrato, faz parte da sua substância. João Baptista Villela [85] aponta que o que se verifica em conseqüência do dirigismo é que essa liberdade de discussão, que implica liberdade de conteúdo das convenções, tornou-se rarefeita, sendo às vezes mesmo inexistente. Ressalta ainda que a inoperância de uma variedade de cláusulas, a presença implícita de outras tantas, os provimentos legislativos de exceção, impedindo a aplicação subsidiária do regime comum, restringiram a liberdade das partes, em muitos casos, a pouco mais de um simples ato de adesão, e em vários outros, precisamente a este mínimo volitivo, quando tanto. Daí ter-se tornado lugar-comum falar de um declínio do contrato ou de uma crise do contratualismo.

Porém o professor mineiro só admite que se fale no pretendido declínio para significar que a propósito das figuras contratuais clássicas os contraentes não têm mais a plena ou quase plena senhoria do conteúdo das convenções e que, muitas vezes, falece-lhes até uma liberdade absoluta de contratar; não se há de pretender com a afirmação nem o represamento do contrato como veículo de necessidades sociais e econômicas, nem mesmo o retraimento das formas tradicionais de contrato. Até porque, sob tais aspectos, o que se nota é um crescente impulso do contrato. [86]

Mas, haveria propriamente contrato quando a pessoa é obrigada a contratar?

Diversos escritores do segundo quartel do século passado impressionaram-se com o "dirigismo" contratual, e ainda ligados à concepção anteriormente dominante da liberdade de contratar, ora proclamavam o "declínio" do contrato, ora enfatizavam as transformações políticas, jurídicas e econômicas, inclusive preconizando a idéia de que os Códigos de puro direito privado se transmutariam em Códigos de direito social. [87]

Segundo Junqueira [88], é a visão social [89] que decidirá do caráter negocial: seria negócio jurídico (e, naturalmente, contrato) o que socialmente fosse encarado como negócio; não seria, o que socialmente não fosse visto como tal. Assim, não seriam contratos os chamados contratos de fornecimento de serviço público e sim os de seguro de automóvel (quando o particular, apesar de ser obrigado a contratar, pode optar entre diversas seguradoras – excluir-se-ia o chamado "seguro obrigatório"). Portanto, nesse último caso, em matéria de interpretação, vigorariam as normas baseadas na lealdade e na boa-fé, bem como as regras sobre capacidade, as normas sobre validade e eficácia etc.; e no primeiro, não. Àquelas situações, como as de fornecimento de serviços públicos, que, socialmente, não são vistas como contrato, poder-se-ia atribuir o nome de paracontratuais; porque a situação já não seria contratual, estaria à margem do contrato.

Josserand [90] salienta que o conceito contratual procura compensar sua pretensa imobilidade milenar buscando novas tendências. Assinala as transformações jurídicas e econômicas que envolvem o contrato, especialmente enfatizando que a fenomenologia econômica operou verdadeira transfiguração que fatalmente repercute na estrutura dos contratos. Enunciando que "para contratantes diversos seriam necessários outros contratos", tem uma como que visão profética do movimento renovador, antevendo a proliferação e diversificação dos contratos, e a aparição de novas categorias. Estas seriam inspiradas em princípios novos, ainda que amputando na autonomia da vontade.

É inegável, nos tempos atuais, que os contratos, de acordo com a visão social do Estado Democrático de Direito, hão de submeter-se ao intervencionismo estatal manejado com o propósito de superar o individualismo egoístico e buscar a implantação de uma sociedade presidida pelo bem-estar e sob efetiva prevalência da garantia jurídica dos direitos humanos. [91]

Isto, porém, não importa anular a figura do contrato, nem tampouco afastar a incidência dos princípios clássicos que regem essa indispensável categoria jurídica. O contrato, segundo a lição de Caio Mário, continua se originando da declaração de vontade, tendo força obrigatória, e se formando, em princípio, pelo só consentimento das partes. E continua nascendo, em regra, da vontade livre, segundo a autonomia da vontade. [92]

Certo é, no entanto, que essa autonomia não tem hoje as mesmas proporções de outrora. Sofre evidentes limitações, não só em face dos tipos contratuais impostos pela lei como também pelas exigências de ordem pública, que cada vez mais são prestigiados pelo direito contemporâneo. O contrato não encontrou o seu fim como se chegou mesmo a proclamar. O que no momento ocorre, aponta Caio Mário [93], é a redução da liberdade de contratar em benefício da ordem pública, que na atualidade ganha acendrado reforço. O saudoso professor aponta ainda que predomina na evolução do contrato o reforço de conceitos como o da regulamentação legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas atividades empresárias; a regulamentação dos meios de produção e distribuição; e sobretudo a proclamação efetiva da preeminência dos interesses coletivos sobre os de ordem privada.

Segundo a lição sempre atual de Savatier: "Mais, si l’économie selon toute appartenance, doit rester dirigée, les méthodes de cette direction doivent changer. Les procédés de l’intervention de l’État ne doivent plus être de ceux qui suppriment à peu prés entièrement la liberté individuelle, et spécialement la liberté des contrats". [94]

Similarmente, ainda que se reconheça à lei ordinária a possibilidade de disciplinar o conteúdo do direito de propriedade, há um conteúdo mínimo ou irredutível, que decorre da garantia constitucional do direito de propriedade; não é viável restringir-se tal direito, a tal ponto, para o colocar, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade. Onde não há liberdade para o legislador infra constitucional é em relação à área do direito constitucional representativa do conteúdo essencial do direito de propriedade, de tal forma que não é possível que se o suprima ex lege, como, ainda, se vier-se a vedar por lei o exercício do direito de propriedade, ou, a tornar inviável a aquisição desse direito. [95]

Arruda Alvim [96] aponta que essa essência do direito de propriedade, objeto de proteção constitucional sugere em relação aos contratos, ainda que o sistema esteja permeado pela função social que devem desempenhar, que não se deve esquecer que eles existem para vincular as pessoas e que devem, fundamentalmente, ser cumpridos. Só através das exceções legais é que se pode alterar ou desfazer o contrato, da mesma forma que o direito de propriedade existe também para o dono, do qual não pode, sic et simpliciter, vir a ser privado; é dizer, restrições poderão ocorrer, que, se efetivadas, levassem à ignorância do direito de propriedade, como também, mutatis mutandis, se emprestar-se às expressões função social do contrato uma dimensão tal, que essa poderia vir a ser destrutiva e conduzir à ignorância da própria razão de ser do contrato. Em ambos os casos, tais restrições não se compadeceriam com a Constituição Federal.

2.2 A constitucionalização do direito privado

A origem da exigência de dar unidade a um conjunto de normas fragmentárias, que constituíam risco de incertezas e arbítrios, pode ser localizada entre o final do século XVIII e o início do XIX, na Europa Continental. Embora o Código de Napoleão, cuja comissão redatora foi instalada em 1800, pudesse ser considerado o primeiro corpo de normas sistematicamente organizadas, a Ciência Jurídica, enquanto tal, surgiu e se formou a partir do início do século XIX, na Alemanha, sendo o incontestável mérito de sua formação devido à Pandectística alemã e aos juristas que debateram e prepararam, ao longo daquele século, o BGB. [97]

Porém, a perspectiva, sob a qual o Direito era analisado então, era a perspectiva da norma jurídica em si, sendo o ordenamento jurídico um conjunto de normas jurídicas, mas não um objeto autônomo de estudo. A teoria do ordenamento jurídico somente foi introduzida pelo positivismo jurídico. Antes de seu desenvolvimento, faltava no panorama jurídico, o estudo do direito, entendido não como norma singular ou conjunto de normas singulares, mas como entidade autônoma unitária, constituída pelo conjunto sistemático de todas as normas. [98]

Naquele universo jurídico implementado pelo liberalismo, as relações do direito público com o direito privado apresentam-se bem definidas. O direito privado inseria-se no âmbito dos direitos naturais e inatos dos indivíduos. O direito público era aquele emanado pelo Estado para a tutela de interesses gerais. As duas esferas eram quase impermeáveis, atribuindo-se ao Estado o poder de impor limites aos direitos dos indivíduos somente em razão de exigências dos próprios indivíduos. [99] Estes conceitos são repetidos na conhecida fórmula kantiana, pela qual os dois ramos se distinguem pela diversidade da fonte; que no Direito Privado reside nos princípios da razão, no Direito Público na vontade do legislador. [100]

Na concepção moderna, o direito civil é considerado como uma série de regras dirigidas a disciplinar algumas das atividades da vida social, idôneas a satisfazer os interesses dos indivíduos e de grupos organizados, através da utilização de determinados instrumentos jurídicos. Afastou-se do campo do direito civil (propriamente dito) a defesa da posição do indivíduo frente ao Estado (hoje matéria constitucional), alcançável através da predisposição de um elenco de poderes jurídicos que lhe assegurava absoluta liberdade para o exercício da atividade econômica. [101]

O pilar do liberalismo que, pressuposta a separação entre a atuação estatal e a sociedade civil, relegava ao Estado a tarefa de manter a coexistência pacífica entre as esferas individuais, para que estas atuassem livremente conforme suas próprias regras, entrou em crise quando o Poder Público passou a intervir quotidianamente na economia. Diante de um Estado intervencionista e regulamentador, que dita as regras do jogo, o direito civil viu modificadas as suas funções e não pode mais ser estimado segundo os moldes do direito individualista dos séculos anteriores. [102]

Esta lenta modificação da estrutura do sistema conduziu, na visão de Michele Giorgianni [103], a uma reviravolta decisiva na história do Direito Privado: passou-se a uma valoração não mais subjetiva, mas objetiva, "conteudista" do Direito Privado. Passado o período "revolucionário" em que o Direito Privado protegeu ciosamente a tutela da atividade do indivíduo frente ao Príncipe, ele agora simplesmente contém (ou volta a conter) uma série de regras destinadas a disciplinar algumas atividades da vida social, nas quais são adotadas alguns instrumentos jurídicos. Esta diferença pode ser representada na evolução do conteúdo do Direito comercial, o qual, da consideração exclusiva dos sujeitos – os comerciantes – foi-se paulatinamente colorindo de conteúdo objetivo: os atos de comércio e, depois, a empresa.

Esse significado "conteudista" permitiu o ingresso no território do Direito Privado de novos operadores econômicos constituídos por entes – no passado marcadamente distintos dos "particulares" – ou seja, entes públicos e até mesmo o próprio Estado que, como coletividade organizada, representa certamente, não importa como se queira concebê-lo, a antítese do indivíduo. [104]

Pode-se dizer que o Direito Privado, que se revelou no século XVIII como a fechada fortaleza da atividade do indivíduo e o conjunto da sua defesa sobre o terreno da economia, perdeu essa fisionomia, que lhe tinha sido atribuída pela filosofia jusnaturalista, para adquirir (ou readquirir) aquela de conjunto de normas e de princípios que disciplinam determinadas atividades idôneas para satisfazer os interesses dos indivíduos e dos grupos organizados. O Direito Privado tecnicizou-se, perdendo qualquer significado que implique uma determinada posição do indivíduo na sociedade: somente algumas ditaduras puderam ver na expressão "privado" um desafio ao Estado, invocando a sua supressão. A posição e a defesa dos indivíduos e dos grupos no seio da sociedade estatal são agora confiadas a instrumentos que escapam do campo do Direito Privado, pertencendo decididamente ao Direito Público. [105]

Em lugar da dicotomia direito público e direito privado, surgiu uma estrutura hierarquizada, onde toda norma editada pela Administração deve estar subordinada de forma sucessiva a alguma outra norma que lhe seja fundamento de validade, até que se chegue à norma fundamental, a Constituição. Não havia mais uma constituição para o direito público, e uma outra para o privado (i.e., o Código Civil); agora, este passa a estar submetido a uma única Constituição do Estado, que disciplina tanto o interesse público como o privado.

Acolher a construção da unidade hierarquicamente estruturada do ordenamento jurídico significa sustentar que seus princípios superiores, i.e., os valores propugnados pela Constituição, estão presentes em todos os recantos do tecido normativo, daí ser inaceitável a rígida contraposição entre direito público e direito privado. Os princípios e valores constitucionais devem se estender a todas as normas do ordenamento, sob pena de se admitir uma concepção logicamente incompatível com a idéia de sistema unitário. [106]

Houve uma mudança interna, na própria estrutura do direito civil, tornando alteradas, desse modo, suas relações com o direito público. Os códigos civis perderam a posição central que desfrutavam no sistema, acarretando a redução do espaço reservado ao contrato e à propriedade – institutos-chave do liberalismo. Ainda, a concepção de proteção da vida individual – construção em que subjaz a autonomia individual em sentido absoluto – deu lugar à noção de integração do homem na sociedade, substituindo-se, por força da industrialização, à figura do indivíduo isolado aquela da associação. A evolução do direito civil também se explica, pois, como efeito da influência das grandes correntes do pensamento, em particular, da marcada tendência a uma justiça social em maior proporção. [107]

Por conseqüência, o processo de transformação econômica, social e jurídica, que se iniciou na I Grande Guerra, já não encontrou o direito civil incólume, sendo certo, ao contrário, o forte impacto sentido em suas estruturas – contrato e propriedade privada – por obra daquelas mudanças conceituais havidas na sociedade: de um lado, o florescimento da idéia moderna de Estado, assumindo funções antes deixadas à iniciativa privada; de outro, a reviravolta da noção de direito subjetivo, de senhoria (poder) da vontade a interesse juridicamente protegido e, finalmente, às formulações dogmáticas nas quais resulta intuitiva a sua absorção pelo direito objetivo. [108]

Formalmente, esse processo ocorreu no século XX, embora suas raízes sejam mais antigas, tendo início na constituição de Weimar, de 1919, e continuando na Constituição Italiana, de 1948, na Lei Fundamental de Bonn, de 1949, na Constituição Portuguesa, de 1976, na Espanhola, de 1978, e, enfim, na Constituição Brasileira, de 1988. De modo que aquele aspecto "constitucional" do Direito Privado, em particular do Código Civil, pertence hoje, como diz Giorgianni, ao Direito Público, ao mais público dos ramos do direito, i.e., ao Direito Constitucional, e está presente nas longas Constituições dos Estados contemporâneos. [109]

O intervencionismo estatal e, na sua esteira, o papel que a regulamentação jurídica passou a desempenhar na economia e, de uma forma geral, na vida civil podem, então, ser encarados como elemento interagente – e não razão primordial – das profundas mudanças ocorridas no direito privado. O novo peso dado ao fenômeno importa em rejeitar a idéia de invasão da esfera pública sobre a privada, para admitir, ao revés, a estrutural transformação do conceito de direito civil, ampla o suficiente para abrigar, na tutela das atividades e dos interesses da pessoa humana, técnicas e instrumentos tradicionalmente próprios do direito público como, por exemplo, a aplicação direta das normas constitucionais nas relações jurídicas de caráter privado. [110]

Diante de tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus significados apontados no início deste item: o direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual, e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão. A divisão do direito, então, não pode permanecer ancorada àqueles antigos conceitos e, de substancial – isto é, expressão de duas realidades herméticas e opostas traduzidas pelo binômio autoridade-liberdade – se transforma em distinção meramente "quantitativa": há institutos onde é prevalente o interesse dos indivíduos, estando presente, contudo, o interesse da coletividade; e institutos em que prevalece, em termos quantitativos, o interesse da sociedade, embora sempre funcionalizado, em sua essência, à realização dos interesses individuais e existenciais dos cidadãos. [111]

Mais, no modelo estatal delineado pela Constituição de 1988, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores existenciais – no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, de modo que tal é o valor que conforma todos os ramos do Direito. [112]

Ultrapassada a summa divisio, impõe-se a incidência dos valores constitucionais na normativa civilística, operando uma espécie de "despatrimonialização" do direito privado, em razão da prioridade atribuída pela Constituição à pessoa humana, sua dignidade, sua personalidade e seu livre desenvolvimento. Ao intérprete incumbirá, pois, em virtude de verdadeira cláusula geral de tutela dos direitos da pessoa humana, privilegiar os valores existenciais sempre que a eles se contrapuserem os valores patrimoniais. [113]

2.3 Novos paradigmas para o direito privado

O esforço hermenêutico do jurista volta-se para a aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não só na relação Estado-indivíduo, mas também nas relações interindividuais, situadas no âmbito do direito privado. [114]

Assim, a disciplina civilista, antes voltada para a tutela dos valores patrimoniais, agora se direciona para a observância dos postulados constitucionais, que não mais admitem a proteção da propriedade e da empresa como bens em si, mas somente enquanto destinados a efetivar valores existenciais, realizadores da justiça social – é a chamada função social, princípio orientador da regulamentação constitucional de todos os institutos jurídicos. [115]

Assim é que qualquer norma ou cláusula negocial, por mais insignificante que pareça, deve se coadunar e exprimir a normativa constitucional. Sob essa óptica, as normas de direito civil necessitam ser interpretadas como reflexo das normas constitucionais, ou melhor, devem ser (re)lidas sob o enfoque constitucional. A regulamentação de qualquer atividade privada deve ser, em todos os seus aspectos, expressão da opção constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana. Em conseqüência, transforma-se o direito civil: de regulamentação da atividade econômica individual, entre homens livres e iguais, para regulamentação da vida social, na família, nas associações, nos grupos comunitários, onde quer que a personalidade humana melhor se desenvolva e sua dignidade seja mais amplamente tutelada. [116]

No lugar dos patrimoniais (propriedade, produção, empresa,. ..), são os valores existenciais que se tornam prioritários no âmbito do direito civil. [117]- [118]

A lógica do privado deve observar a regulamentação constitucional, que determina um novo regime jurídico para a matéria. Esta função social é elemento moderador do caráter absoluto e sagrado dos institutos definidos sob influências liberalistas [119]; não é um limite externo, mas parte integrante. Só há o direito subjetivo enquanto respeitada tais restrições. Este foi o programa encampado pelas Constituições de elaboração mais recente.

No campo do direito de família a proteção do Estado é deslocada para "a família funcionalizada à formação e desenvolvimento da personalidade de seus componentes, nuclear, democrática, protegida na medida em que cumpra o seu papel educacional, e na qual o vínculo biológico e a unicidade patrimonial são aspectos secundários". [120]- [121]

Na Constituição de Weimar, de 11/08/1919, após a enunciação solene da garantia da propriedade, enuncia a precisa fórmula: "A propriedade obriga. Seu uso também deve servir ao bem da comunidade" (art. 153). Wolff conferiu dupla significação a esta expressão: a de obrigar ao exercício do direito, e a de obrigar a um exercício segundo o interesse geral. [122] O uso da propriedade deixa de ficar ao livre arbítrio do proprietário; ele deve atender às diretrizes fixadas pelo Poder Público para atender à coletividade.

Na mesma trilha seguiu a Constituição Espanhola, de 29/12/1978, que, depois de reconhecer o direito à propriedade e à herança, estatui que a função social desses direitos determinará os limites de seu conteúdo de acordo com a lei (art. 33, 2). Igualmente é o caso da Constituição Italiana, de 22/12/1947, que, no parágrafo segundo do art. 42, reconheceu a propriedade privada, remetendo à lei determinar-lhe os modos de aquisição, de gozo e os limites, de modo a lhe assegurar a função social e torná-la acessível a todos. A função social está unida às exigências de eficiência econômica e de instaurarem-se relações sociais isonômicas; a fim de adequar-lhe o regime jurídico com tais princípios, pode o legislador infraconstitucional subtrair ao proprietário algumas faculdades, ou ainda lhe impor controles; pode lhe impingir alienações coativas, ônus e obrigações. É claro, sobretudo, que a função social reveste os bens que, por sua natureza ou utilização, atraem os interesses de sujeitos diversos do proprietário. [123]

Há distância entre o que enunciavam a Constituição Imperial (art. 179, XXII) e a da República Velha (art. 72, §17), acerca da propriedade "em toda sua plenitude", e a garantia constante no art. 113, 17, da Constituição de 16/07/1934: "é garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou collectivo, na forma que a lei determinar".

Na Carta de 18/09/1946, o art. 147 ordenava que: "o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância no disposto no art. 141, §16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos". Esta é a primeira Constituição a falar em expropriação por interesse social (art. 151, §16). Observe-se a coincidência, com o que viria a dispor a Lei Maior italiana, em associar aquele princípio com preocupações distributivas.

A expressão ‘função social da propriedade’ teve de aguardar a consagração, como princípio da ordem econômica, na Constituição de 24/01/1967 (art. 157, III). Assim se manteve por ocasião da Emenda Constitucional 01/69 (art. 160, III), que, coerentemente, ressalva, além das hipóteses clássicas de desapropriação, aquela por interesse social (art. 153, §22 – reproduzindo o art. 150, §22, do texto emendado). [124]

A transposição das normas diretivas do sistema de direito civil do texto do Código Civil para o da Constituição acarreta relevantíssimas conseqüências jurídicas que se delineiam a partir da alteração da tutela legal que era oferecida ao "indivíduo" para a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana e por ela elevada à condição de fundamento da República. O princípio constitucional visa a garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não só no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e nem tampouco conduz exclusivamente ao oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, vemos uma completa transformação (rectius, transmutação) do direito civil, de um direito que deixou de encontrar nos valores individualistas codificados o seu fundamento axiológico. [125]

Assim, enquanto o Código Civil tutela, principalmente, os bens dos menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente protege, de modo integral a criança e o adolescente como pessoas em desenvolvimento; enquanto para o Código a propriedade é o direito subjetivo maior, para a Constituição, a tutela deve ser dada à função social que ela cumpre; enquanto para o Código Civil todos os contratantes são iguais e os particulares têm liberdade para contratar o que desejarem, o Código de Defesa do Consumidor estabelece que o consumidor é merecedor de especial proteção, elevando ainda a boa-fé (objetiva) a princípio diretivo das relações de consumo. Enquanto o Código Civil dá poderes ao marido para chefiar a família, considerada como um valor em si mesma, a Constituição faz com que a família só deva ser protegida como ambiente no qual a personalidade de seus membros se desenvolva harmoniosamente; enquanto o Código tem por cláusula geral a responsabilização decorrente da culpa, i.e., alguém só pode ser responsável civilmente se agiu de acordo com sua vontade, a Constituição e diversas leis especiais consagram o sistema da responsabilidade objetiva, estabelecendo o dever de indenizar independentemente de qualquer comportamento do causador do dano, valorizando a pessoa da vítima. [126]- [127]

Assim, deixou de existir o contratante individualizadamente considerado como o centro de interesses da relação obrigacional, para surgirem os contratantes. O contrato torna-se um instrumento que se realiza mediante a cooperação entre os homens, que depende da colaboração conjunta dos que participam da avença [128], pois somente assim é possível alcançar os diversos objetivos de cada um dos figurantes do contrato, em constante interação e com respeito à posição e aos interesses de cada um. Contrato é um processo – como já ensinava Clóvis do Couto e Silva – que tem dinamismo e somente chegará ao seu bom êxito se contar com colaboração leal dos dois participantes. Não há mais, segundo o CC/02, o velho protagonista "contratante", mas os contratantes. [129]

Como resultado da nova ordem constituída, enquanto o Código dá prevalência e precedência às situações patrimoniais, no novo sistema de direito civil, fundado pela Constituição, a prevalência é de ser atribuída às situações jurídicas não-patrimoniais porque à pessoa humana deve o ordenamento jurídico inteiro, e o ordenamento civil em particular, dar a garantia e a proteção prioritárias. Por isso, nesse novo cenário, passam a ser tuteladas, com prioridade, as pessoas das crianças, dos adolescentes, dos idosos, dos consumidores, dos não-proprietários, dos contratantes em situação de inferioridade, dos membros da família, das vítimas de acidentes anônimos e de atentados a direitos da personalidade. [130]

Vê-se que o texto constitucional, sem sufocar a vida privada e suas relações civis, dá maior eficácia aos institutos codificados, revitalizando-os, mediante nova tábua axiológica. Em outras palavras, a interposição de princípios constitucionais nas vicissitudes das situações jurídicas subjetivas significa uma alteração valorativa do próprio conceito de ordem pública, tendo na dignidade da pessoa humana o valor maior, posto ao ápice do ordenamento. Se a proteção aos valores existenciais configura momento culminante da nova ordem pública instaurada pela Constituição, não poderá haver situação jurídica subjetiva que não esteja comprometida com a realização do programa constitucional. [131]

Como exemplo emblemático desta visão, em matéria de família, o TJRS [132], considerou que o juízo competente para julgar a extinção da união civil de pessoas do mesmo sexo é a Vara de Família, não já a Vara Cível, à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, a partir de uma visão da família funcionalizada à realização de valores existenciais, não-patrimoniais, ou exclusivamente matrimoniais, como entendia o nosso Código Civil. [133]

2.3.1 Dignidade da pessoa humana

João Baptista Villela [134] nos ensina que uma lenta e persistente irrupção da pessoa humana nos quadros institucionais do Direito foi dando corpo a uma nova concepção dos direitos naturais; diversa daquela que vigorou no século XVIII, pois enquanto esta raciocinava com base num ser humano ideal ou imaginário, e, portanto, na verdade inumano e fictício, aquela arranca de uma visão realista do homem e de sua condição existencial, sendo, por conseguinte, na conclusão do professor, autêntica e redentora. O homem que no jusnaturalismo racionalista detinha a potestade de prerrogativas inalienáveis, era abstrato e impalpável; pode dizer-se que existia na razão de seus criadores, mas não era achado jamais andando pelas ruas, bebendo nas tavernas, trabalhando ou padecendo fome, miséria e doenças, e nem mesmo festejando e se comprazendo nas cortes, porque sua existência jamais logrou deixar o empíreo do ideal. Já a nova corrente dos direitos naturais empolga o ser humano na sua realidade misteriosa, densa e tantas vezes desconcertante. Interessa-lhe o homem verdadeiro, com suas dores, seus anseios e suas frustrações, o homem imerso na concretude da existência, no Dasein do cotidiano, na pensanteur de sua contingência carnal. Esse enfoque não importa, em absoluto, negar a idéia universal de homem, mesmo porque de um direito natural do homem só se pode falar com a condição de concernir ao homem enquanto tal, e não ao homem simplesmente histórico. Apenas o que se rejeita é uma falsa idéia do homem; uma idéia inadequável ao ser da experiência concreta.

É neste ambiente que se torna necessário reconhecer, cada vez mais, a dimensão atribuída pelo ordenamento jurídico vigente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Segundo Maria Celina de Moraes [135], é este o princípio ético-jurídico capaz de atribuir unidade valorativa e sistemática ao direito civil, ao contemplar espaços de liberdade no respeito à solidariedade social; tal é, complementa, a medida de aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana: a ponderação, a ser feita em cada caso, entre liberdade e solidariedade, termos que, stricto sensu, são considerados contrapostos – a imposição de solidariedade, se excessiva, anula a liberdade; a liberdade desmedida é incompatível com a solidariedade. Todavia, quando ponderados, seus conteúdos se tornam complementares: regulamenta-se a liberdade em prol da solidariedade social, i.e., da relação de cada um com o interesse geral, o que, reduzindo a desigualdade, possibilita o livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos membros da comunidade.

Não se trata de impor limites à liberdade individual, atribuindo maior relevância à solidariedade ou vice-versa. O princípio a ser alcançado é o da dignidade da pessoa humana, o que faz com que a medida de ponderação, para sua adequada tutela, ora propenda para a liberdade, ora para a solidariedade. A grande dificuldade, ainda a ser enfrentada pela doutrina e jurisprudência, diz respeito a essa medida. Em caso de colisão, quando se deve valorar mais um ou outro?

Maria Celina Moraes entende que sempre que houver responsabilidades perante terceiros, sempre que se estiver fora da esfera do que é de se considerar como estritamente pessoal, a balança deverá pender para a solidariedade. Ao contrário, naquilo que se refere à intimidade da vida privada, os espaços de liberdade deverão estar bem resguardados, desde que o limite da reificação jamais venha a ser transposto. [136]

Pietro Pierlingieri [137] aduz que os princípios da solidariedade e da igualdade são instrumentos e resultados na atuação da dignidade social do cidadão. Uma das interpretações mais avançadas é aquela que define a noção de igual dignidade social como o instrumento que confere a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões pessoais, assumindo a posição a estas correspondentes.

O professor Antônio Junqueira de Azevedo [138] nos apresenta uma interessante e mui bem estruturada proposta de preenchimento do conceito de dignidade da pessoa humana, definindo-o como o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana, dando origem, nesta ordem, aos preceitos de respeito à integridade física e psíquica das pessoas, a consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida, e o respeito às condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária [139]; havendo conflito entre a intangibilidade da vida humana e um de seus preceitos conseqüentes, deve prevalecer a primeira; se o conflito se der entre os preceitos, prevalece o de maior hierarquia. [140] No entanto, tal proposta carrega explicitamente um forte viés ideológico-político-religioso – direita católica, mais especificamente – o que a torna de pouco proveito em um estudo científico do tema, posto que acaba por defender que a moral de um grupo específico da sociedade impõe-se indiscriminadamente, criando direitos e deveres para todos, o que não pode ser aceito no sistema vigente. [141]

2.3.2 Novos princípios contratuais

São três os princípios do direito contratual que vêm do século XIX; giram eles em torno da autonomia da vontade e, segundo nos leciona o professor Junqueira [142], assim se formulam: a) as partes podem convencionar o que querem, e como querem, dentro dos limites da lei – princípio da liberdade contratual lato sensu; b) o contrato faz lei entre as partes (art. 1134 do Código Civil francês), pacta sunt servanda – princípio da obrigatoriedade dos efeitos contratuais; c) o contrato somente vincula as partes, não beneficiando nem prejudicando terceiros, res inter alios acta tertio neque nocet neque prodest – princípio da relatividade dos efeitos contratuais. Os grandes movimentos sociais da primeira metade do século XX obrigaram os juristas a reconhecer o papel da ordem pública, acrescentando-se, pois, segundo alguns, um quarto princípio, dito "princípio da supremacia da ordem pública" (na verdade, antes um limite que um princípio).

Hoje, ocorre uma acomodação das camadas fundamentais do direito contratual. Antônio Junqueira [143] aponta que estamos em época de hipercomplexidade, onde os dados se acrescentam, sem se eliminarem, de tal forma que, aos três princípios que gravitam em volta da autonomia da vontade e, se admitindo como princípio, ao da ordem pública, somam-se outros três, sem que os anteriores devem ser considerados abolidos pelos novos tempos mas deve-se dizer que viram seu número aumentado pelos três novos princípios, quais sejam: a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do contrato e a função social do contrato – todos eles decorrentes dos valores sociais positivados pela Constituição como princípios fundamentais.

A boa-fé objetiva se estende da fase pré-contratual à pós-contratual, criando deveres entre as partes, como o de informar, o de sigilo e o de proteção. Na fase contratual propriamente dita, esses deveres passam a existir paralelamente ao vínculo contratual; são deveres anexos ao que foi expressamente pactuado. Não prevista no CC/16, a boa-fé objetiva encontrou guarida no CDC (arts. 4º, III, e 51, IV), e agora em diversas disposições do CC/02. [144]

O princípio do equilíbrio econômico do contrato, ou do sinalagma, por seu turno, leva à admissão, especialmente, de duas figuras, a lesão e a excessiva onerosidade. [145]

O princípio da função social difere do da ordem pública, tanto quanto a sociedade difere do Estado; trata-se de preceito destinado a integrar os contratos numa ordem social harmônica, visando impedir tanto aqueles que prejudiquem a coletividade (p.ex., contratos contra o consumidor) quanto os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas. [146] Theodoro Jr. acrescenta que só se pode pensar em função social do contrato, quando este instituto jurídico interfere no domínio exterior aos contratantes, isto é, no meio social em que estes realizam o negócio de seu interesse privado. [147]

Theodoro Jr. [148] nos apresenta dois limites que devem ser respeitados na aplicação prática dos novos princípios da teoria do contrato:

a) não podem servir de ensejo a uma desmesurada intervenção judicial na autonomia contratual, de modo a permitir que o juiz substitua a vontade formadora da convenção pela sua própria. Deveres acessórios poderão ser acrescentados ao contrato e lacunas ou imprecisões das cláusulas negociais poderão ser supridas por técnicas de hermenêutica que levem em conta os princípios da boa-fé, do equilíbrio econômico e da função social do contrato. Com isso, exerce-se uma função interpretativa e até mesmo integrativa, sem, contudo, anular ou desprezar a vontade lícita e eficazmente declarada pelos contratantes;

b) como campo de aplicação dos novos princípios contratuais, o juiz deve, basicamente, atuar segundo as figuras traçadas pelo próprio Código para franquear a invalidação dos negócios viciados ou proceder à revisão dos contratos desequilibrados. Os parâmetros dessa intervenção, portanto, são, em regra, os definidos pelo Código, dentro dos quais o juiz encontrará boa margem de flexibilidade para adequação ao caso concreto, visto que em sua configuração o legislador lançou mão, com freqüência, de "cláusulas gerais" ou de conceitos abertos e genéricos.

Inobstante, assim leciona Demogue: "Il nous semble cependant que les conséquences qu’on a tirées de l’idée de bonne foi entre contractants sont encore assez pauvre et que le contrat moderne peut être conçu d’une façón plus vivante et plus complexe en faisant sortir de l’idée de bonne foi de nouveaux rameaux. Quand on lit les civilistes, il semble que le contrat ayant engendré au profit d’une partie ou des deux une créance, celle-ci déroule logiquement ses conséquences par des droits divers qui en sortent: droit à exécution, droit à des dommages-intérèts, etc. En réalité le contrat s’exécute autrement. Les contractans forment une sorte de microcosme. C’est une petite societé où chacun doit travailler dans un but commum qui est la somme des buts individuels poursuivis pour chacun, absolument comme dans la société civile ou commerciale." [149] Há, portanto – é o que se reconhece hoje –, uma série de deveres e conseqüentes comportamentos que circundam, por assim dizer, o simples texto do contrato. [150]

2.3.3 Os princípios contratuais sob a óptica constitucional

A idéia de função social do contrato está claramente determinada pela Constituição, ao fixar, como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV), sendo ainda decorrência dos dispositivos que salvaguardam a função social da propriedade, posto que esta "somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade" [151]; essa disposição impõe ao jurista a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção, por força da Constituição, faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro. [152]

Daí, o antigo princípio da relatividade dos efeitos contratuais precisa ser interpretado, ou relido, conforme a Constituição. Como salienta Karl Engisch [153], as modificações das situações de fato, das concepções culturais e morais conduzem, mesmo sem uma lei posterior, a uma releitura da legislação anterior não-revogada. A interpretação conforme a Constituição leva não só a um novo entendimento da legislação ordinária, anterior à Constituição, como também a uma contemplação e desenvolvimento dessa legislação, para harmonizá-la com a Constituição agora vigente.

Aceita a idéia de função social do contrato, dela evidentemente não se vai tirar a ilação de que, agora, os terceiros são partes no contrato, mas, por outro lado, torna-se evidente que os terceiros não podem se comportar como se o contrato não existisse. Com muita precisão, os juristas franceses distinguem esses dois aspectos: relativité (relatividade dos efeitos) e opposabilité (oponibilidade dos efeitos). A oponibilidade tem por alvo os estranhos à relação de direito que ela apresenta à sua consideração e que se denominam ‘terceiros’, sem dúvida para melhor marcar que as coisas jurídicas, que lhes são exteriores, não constituem, de forma alguma, negócios a eles estranhos; a oponibilidade é a regra e a inoponibilidade, a exceção (são exceções, por exemplo, os casos em que a lei exige expressamente o registro do contrato, "para valer contra terceiros"). [154]

Savatier assinala que o dinamismo essencial da evolução do contrato mudou a visão do mundo, e simultaneamente cambiou a imagem do contrato, que, no Código Napoleão, era medido "na escala do homem, do indivíduo". Em razão das transformações que se operaram especialmente a partir da débâcle gerada pela I Guerra Mundial, "o contrato novo coloca-se na escala da coletividade, na escala da nação, na escala da humanidade inteira". O contrato passou a ser menos considerado como uma livre construção da vontade humana do que como uma contribuição das atividades humanas à arquitetura geral da economia de um país, arquitetura que o Estado atual entende agora dirigir diretamente. [155]

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Sobre o autor
Marcelo Azevedo Chamone

Advogado, Especialista e Mestre em Direito, professor em cursos de pós-graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. Constitucionalização do Direito Privado e seu reflexo na relação contratual moderna. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1151, 26 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8856. Acesso em: 18 dez. 2024.

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