1 INTRODUÇÃO
O processo, entendido em sentido amplo como técnica de solução imperativa de crises jurídicas, para ser bem conduzido em busca da almejada paz social, que é a sua finalidade maior, exige do juiz, como cediço, uma atividade mais ativa, distanciada da figura do juiz inerte, o qual se limita a assistir o agir das partes na relação jurídica processual como se fosse um mero espectador, vinculado que se encontra ao vetusto princípio dispositivo decorrente do direito liberal clássico.
Do juiz moderno, diante da manifesta necessidade de emprestar ao processo a indispensável efetividade, não se exige neutralidade, porquanto o processo não pode ser visto como se fosse mero instrumento de realização do direito do mais forte ou do mais astuto/inteligente. O processo, ao revés, constitui-se em instrumento ético-jurídico, devendo ser o mecanismo que propicia ao Estado a realização do justo. Aliás, o acesso a uma ordem jurídica justa jamais será alcançado pelo simples acesso formal à justiça através do exercício do direito de ação. O juiz deve velar para que o processo seja justo e efetivo. É preciso, assim, rever o papel do juiz no processo. O juiz deve ser imparcial, eqüidistante dos interesses dos sujeitos parciais, porém, como afirmado anteriormente, não pode ser neutro. Neste particular, merece ser lembrada a lição de Capelletti (1989, p. 86), por aplicável nos dias atuais, no sentido de que "o papel criativo dos juízes na evolução e modernização do direito constitui agora um dado geralmente aceito. Certamente esse papel implica certo grau de discricionariedade e, por isso, de politicização e socialização da atividade e, assim, do poder jurisdicional". É indispensável que, em nome da efetividade do processo e da consciência do interesse público na realização da justiça, o juiz seja cada vez mais ativo na condução do processo, sob pena de, como afirmou Galena Lacerda (1988, p. 116), "ser gerada a figura absurda e caricata do juiz tímido e inerte no processo civil".
É neste contexto que me disponho a examinar a possibilidade do juiz deferir, sem qualquer ato de incoação processual, medidas cautelares no bojo dos processos destinados ao exercício da atividade jurisdicional primária (conhecimento e execução), à luz do que preconiza o artigo 797 do Código de Processo Civil.
2 DA TUTELA CAUTELAR
A tutela cautelar, como sabido, tem por finalidade precípua resguardar ou assegurar os efeitos de outro processo. Neste sentido, afigura-se o processo cautelar como verdadeiro tertium genus, modalidade intermediária de exercício da atividade jurisdicional. O processo cautelar, destarte, não tem por escopo a definição (processo de conhecimento), realização ou satisfação (processo de execução) do direito subjetivo material. Por não atuar de forma direta sobre o direito material é que pode ser afirmado que o processo cautelar tem como principal característica a instrumentalidade, sendo ele, portanto, um processo a serviço de outro processo (denominado de principal).
Neste diapasão, ressaltando o objetivo do processo cautelar de assegurar a eficácia da atividade jurisdicional diante do perigo extraordinário efetivo e iminente, encontra-se o escorreito magistério do professor Moreira (1974, p. 236) a saber:
A denominação pode parecer, à primeira vista ou à primeira audição, um pouco rebarbativa, mas na realidade ela reflete muito bem um aspecto da providência instrumental no sentido de que visa a assegurar a eficácia de outra providência jurisdicional, quer cognitiva, quer executória. Neste sentido, até se poderia dizer que a providência cautelar é instrumental em segundo grau. Se todo processo se caracteriza pela instrumentalidade, já que o processo é sempre instrumento de realização do direito substantivo, o processo cautelar será algo como o instrumento do instrumento. Será dotado de uma instrumentalidade ao quadrado, se permitem. Essa instrumentalidade, Calamandrei a qualificava de hipotética. Por que hipotética ? Porque a medida cautelar é concedida para a hipótese de que aquele que a pleiteia eventualmente tenha razão.
Resta claro, assim, que a tutela acautelatória visa resguardar a eficácia de outro processo, não tendo por objetivo a tutela do direito subjetivo material. A afirmação a respeito da existência ou não do direito subjetivo material ou até mesmo a sua implementação ou efetivação ocorrerá sempre no denominado processo principal (cognitivo ou de execução).
3 DA MEDIDA CAUTELAR EX OFFICIO
Dispõe o artigo 797 do Estatuto Processual Civil que "só em casos excepcionais, expressamente autorizados por lei, determinará o juiz medidas cautelares sem a audiência das partes".
O referido artigo, com redação aparentemente simples vem suscitando no seio da doutrina e na práxis forense muitos equívocos e dúvidas na sua interpretação. Na verdade, o aludido artigo não mantém nenhuma relação com a possibilidade de concessão de medidas cautelares inaudita altera parte, matéria regrada pelo artigo 804 do Código de Processo Civil, bem como não versa o mesmo sobre a respeito da aplicação do princípio da fungibilidade às cautelares.
Trata o artigo em comento da possibilidade do juiz, na condução do processo (execução ou conhecimento), deferir medidas cautelares de ofício, sem que tal prática venha malferir o princípio da inércia ou da demanda (também conhecido por parte da doutrina como dispositivo).
Releva salientar que parte da doutrina vem admitindo a concessão de medidas cautelares de ofício apenas nos casos expressamente autorizados, previstos em lei, limitando, desta forma, o alcance da norma ora em estudo. Nesta direção, a lição de Machado (2006, p. 1388), dentre outros, que aduz de forma peremptória o seguinte, in verbis :
O artigo 797 proíbe terminantemente a concessão de medidas cautelares ex officio, isto é, de medidas sem o respectivo processo cautelar, fora de hipóteses expressamente autorizadas; sem audiência das partes, no texto, significa sem requerimento regular por ação. Assim, para que o magistrado possa conceder medida cautelar no bojo do processo de conhecimento ou de execução, independente de ação própria, é sempre necessária que a lei explícita e expressamente o autorize.
Realmente, o Código de Processo Civil cataloga algumas hipóteses em que se torna possível a concessão de medidas cautelares sem provocação da parte interessada, como ocorre com as medidas urgentes durante a suspensão do processo (art. 266), o arresto previsto no artigo 653, prestação de caução na execução em que o título é instável (execução provisória – art. 475-O e segs.) e reserva de quinhão no procedimento de inventário e partilha (arts. 1000 e 1001, ambos do Código de Processo Civil). Contudo, não comungo do entendimento de que a concessão de medidas cautelares de ofício só teria cabimento nas situações expressamente contempladas em lei. A meu ver, o artigo 797 do Código de Processo Civil deve ser interpretado de forma extensiva, para o fim de autorizar a determinação de medidas cautelares interinais de ofício em qualquer situação no processo em que ficar evidenciada a presença dos requisitos indispensáveis à concessão da tutela cautelar incidental, quais sejam , o fumus boni juris e o periculum in mora.
Aspecto relevante para a perfeita compreensão das medidas cautelares de ofício diz respeito ao interesse apto a acarretar proteção de natureza cautelar, circunstância que, infelizmente, vem passando ao largo do exame da doutrina. O interesse cautelar reside na necessidade de afastar determinada situação de perigo ao processo, com o fito de manter a idoneidade dos processos de conhecimento ou de execução. Deve ser indagado, portanto, se o Estado – Jurisdição não tem interesse no sentido de que o processo seja capaz de alcançar o seu objetivo maior de realização do direito material. Em suma, o Estado – Juiz não tem interesse em garantir a efetividade do processo? Apenas as partes possuem interesse de que o processo seja capaz de proteger o direito material, de modo a restaurar a paz social? A resposta só pode ser no sentido de que existem dois interesses: o interesse das partes na obtenção da tutela jurisdicional, o qual denomino de primário; e o interesse do Estado de que o processo seja dotado de efetividade, capaz, segundo a lição de Marinoni (1992, p. 15), de ser o instrumento que "possa realizar os fins ou produzir os efeitos a que se ordene".
Não é por outra razão que Marins (1996, p. 311) aduz que:
O interesse na plena eficácia da atividade jurisdicional, que autoriza o manejo do direito de ação, não se circunscreve ao plano dos interesses particulares ou privados, por refletir também, o interesse do Estado na consecução de um fim seu, que é a realização do direito objetivo, uma vez reclamado pelo seu titular. Com o monopólio da atividade jurisdicional torna-se evidente o interesse do Estado em proporcionar a cada um o que é seu.
Fica claro, desta forma, que a possibilidade de concessão de medidas cautelares de ofício por parte do juiz encontra amparo na necessidade imperiosa que tem o Estado-Juiz de garantir ao processo plena efetividade, afastando qualquer situação de perigo ao próprio exercício da jurisdição. O juiz, portanto, deverá determinar de ofício a prática de medidas cautelares tendentes à salvaguarda do processo, resguardando a sua efetividade, ainda que para tal não tenha sido provocado. Aliás, juiz descomprometido com a efetividade de suas decisões é juiz desconectado com sua verdadeira missão de realizar a justiça.
O artigo 797 do Código de Processo, por outro turno, deve receber ampliação ampliativa, também pelo fato de que as situações de excepcionalidade, por abrangentes, também atingem os casos previstos em lei. Pontifica Aragão (1974, p. 134), com total razão, que "a lei não editou requisitos cumulativos e sim alternativos. Não se trata de casos excepcionais e expressamente autorizados em lei e sim de casos excepcionais ou expressamente autorizados em lê".
Obtempera Câmara (2005, p. 205) da mesma forma, que "apenas considerando-se alternativos os requisitos é que se poderia evitar a afirmação de que ali seriam encontradas palavras inúteis".
Da mesma forma, acentua Marinoni (2005, p. 57) que:
O entendimento contrário, no sentido de que o juiz somente poderia determinar medida cautelar de ofício nos casos expressamente previstos em lei , sendo que estes estariam previstos em lei porque excepcionais, não pode ser aceito, pois não há razão alguma para o legislador redigir um artigo para dizer que o juiz pode fazer alguma coisa que já lhe está autorizada pela lei. O artigo 797, em outras palavras, permite que o juiz aja de ofício, determinando medida cautelar, diante de qualquer caso excepcional, até porque, se o caso é realmente excepcional, não pode ser abstratamente formulado e previsto pelo legislador.
Ressalto, porém, que as medidas cautelares imprópria ou internas só poderão ser concedidas no âmbito dos processos de conhecimento ou execução, para a proteção ou manutenção da idoneidade de tais modalidades processuais, jamais de forma antecedente, sob pena de afronta ao princípio da demanda consagrado no artigo 262 do Código de Processo Civil. É que, nunca é demais repetir, não é possível ao juiz iniciar, ex officio, ações cautelares (nemo judex sine actore). As medidas cautelares que denomino de impróprias só podem ser concedidas no bojo dos processos que elas visam proteger, enquanto as medidas cautelares próprias são aquelas obtidas em sede de processo cautelar. O artigo 797 do Código de Processo Civil trata, à toda evidência, das medidas cautelares impróprias, também denominadas incidentais.
Da mesma forma, se é possível ao juiz, como já sobejamente demonstrado, a concessão de medidas cautelares incidentais nos processos de execução ou de conhecimento, para garantir a efetividade de tais processos, não existe, por razão de lógica jurídica, nenhum inconveniente no sentido de que a parte tome a iniciativa de postular a concessão de tais medidas.
4 CONCLUSÃO
A medida cautelar ex officio poderá ser concedida pelo juiz nos processos de conhecimento ou de execução, em qualquer situação de excepcionalidade, uma vez presentes os requisitos genéricos para a concessão da tutela acautelatória (aparência do direito e perigo de dano ao processo), devendo o juiz dar ao artigo 797 do Código de Processo Civil uma interpretação ampliativa.
A concessão de ofício de medidas cautelares incidentais ou interinais encontra justificativa no poder/dever do juiz de velar pela efetividade do processo, de modo que o Estado – Juiz proporcione ao Autor a atividade jurisdicional postulada na sua integralidade. O juiz deve externar no processo, através da concessão de medidas internas de proteção ao mesmo, o interesse do Estado de que o processo seja instrumento capaz de atingir os seus objetivos.
O juiz deve manter imparcialidade diante do tema litigioso que lhe é levado à apreciação, porém não deve ser neutro diante da conduta processual das partes, devendo, através da prática de atos processuais de eficácia imediata, assegurar às partes tratamento isonômico, transformando o processo em verdadeiro modelo ético-jurídico de realização do justo, capaz de resolver o conflito intersubjetivo existente entre as partes na sua inteireza. Ao demonstrar preocupação com o destino e eficácia de seus provimentos jurisdicionais, concedendo medidas para a proteção dos mesmos até de ofício, não estará o juiz agindo de forma parcial. Pelo contrário, estará buscando o cumprimento de sua missão constitucional de pacificação social.
REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. VII, São Paulo: Forense, 1974, p. 134.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. III, ed. Lumen e Juris, Rio de Janeiro: 2005, p. 205.
CAPELLETTI, Mauro. trad. Carlos Alberto A. de Oliveira Juízes Irresponsáveis? Porto Alegre: Sergio Fabris, 1989, p. 86.
LACERDA, Galeno.Comentários ao Código de Processo Civil. vol. VIII, tomo I, p. 116, ed. Forense, 1988.
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Comentado. 5ª edição, Barueri-SP: Editora Manole, 2006, p. 1388.
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Cautelar e Tutela Antecipatória. RT, 2ª edição, São Paulo: 1992, p. 15.
MARINONI, Luiz Guilherme.Manual do Processo de Conhecimento. 4ª edição, RT, São Paulo: 2005, p. 57.
MARINS, Victor Alberto Azi Bomfim. Tutela Cautelar. Curitiba: Juruá, 1996, p. 311.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil. Rio de janeiro: Líber Júris, 1974, p. 236.