Artigo Destaque dos editores

Princípios constitucionais do Direito de Família

27/10/2006 às 00:00
Leia nesta página:

          A Constituição Federal de 1988 provocou uma revolução no sistema jurídico brasileiro. O foco do legislador constituinte, sempre voltado para a organização do próprio Estado, desloca-se para o indivíduo e, mais ainda, para a coletividade, contemplando amplamente os direitos individuais sem repousar seu campo de abrangência sobre os direitos difusos e coletivos.

          O artigo 1º da Constituição Federal destaca que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

          Nota-se, ao longo dos anos, a passagem do conceito de Estado, da esfera da legitimidade para a legalidade, como ensina Peirengelo Schiera [1], em que o fenômeno político passou a enquadrar-se num processo mais geral de formalização do próprio Estado, em que se tornava cada vez menos necessária a personificação na figura do monarca, assinalando uma fase do Estado moderno, ou seja, a do Estado de Direito, fundada sobre a liberdade política e a igualdade de participação dos cidadãos perante o poder.

          A Constituição de 1988 é antropocêntrica, destaca como objetivos principais a construção de uma sociedade livre, justa e soberana, a garantia do desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza. Neste aspecto, destaca-se que a Magna Carta reconhece que somos um país pobre, ao colocar a erradicação da pobreza como um de seus objetivos.

          Nesta linha de raciocínio, o legislador constituinte deu especial atenção aos direitos e garantias fundamentais, pois abordou inicialmente estes temas, para depois pensar na organização do Estado. Apenas para termos um elemento concreto de comparação, a Constituição de 1824 iniciava tratando do Império do Brasil, seu território, governo, dinastia e religião, e só vai abordar os direitos dos cidadãos brasileiros no artigo 173, sob o título 8º, que tratava das disposições gerais, e garantias dos direitos civis.

          Por outro lado, a família foi reconhecida como base da sociedade e recebe proteção do Estado, nos termos dos artigos 226 e seguintes.

          A família como formação social, na visão de Pietro Perlingieri [2], é garantida pela Constituição não por ser portadora de um direito superior ou superindividual, mas por ser o local ou instituição onde se forma a pessoa humana.

          "A família é valor constitucionalmente garantido nos limites de sua conformação e de não contraditoriedade aos valores que caracterizam as relações civis, especialmente a dignidade humana: ainda que diversas possam ser as suas modalidades de organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela pertencem.

          O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente às relações de sangue, mas, sobretudo, àquelas afetivas, que se traduzem em uma comunhão espiritual e de vida."

          A família teve o reconhecimento do legislador constituinte como base da sociedade, e a sua importância na formação das pessoas mereceu todo o aparato jurídico estatal, formado por normas e princípios, isto para aqueles que não os consideram norma jurídica.

          Ultrapassada esta breve introdução, passaremos a nos ocupar do tema central deste trabalho, navegando pelos Princípios Constitucionais do Direito de Família.


Princípio do respeito à dignidade da pessoa humana

          Este princípio está plasmado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal e demonstra uma nova ótica do Direito Constitucional e do Direito de Família em especial.

          As Constituições passadas, bem como o Código Civil de 1916, só reconheciam a família decorrente do casamento, como instituição de produção e reprodução dos valores sociais, culturais, éticos, religiosos e econômicos. A Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002 colocam a família sob o enfoque da tutela individualizada dos seus membros, ou seja, a visão constitucional antropocêntrica já abordada neste trabalho, coloca o homem como centro da tutela estatal, valorizando o indivíduo e não apenas a instituição familiar.

          Ainda que se entenda a dignidade da pessoa humana como um direito metaindividual, posição adotada por alguns juristas, e, neste sentido, a proteção seria da coletividade, que estaria sendo violentada como um todo, com a ofensa individual perpetrada a um único cidadão, este princípio no direito de família pode assegurar outros tantos direitos e garantias.

          Carlos Roberto Gonçalves [3] ressalta que este princípio é decorrente do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal e, citando Gustavo Tepedino, destaca que:

          "A milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos".

          E prossegue Carlos Roberto Gonçalves:

          "O Direito de Família é o mais humano de todos os ramos do Direito. Em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico de exclusões, como preleciona Rodrigo da Cunha, ‘é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cuja base e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania’. A evolução do conhecimento científico, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo, acrescenta o mencionado autor, que ainda enfatiza: ‘Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um declínio do patriarcalismo e lançaram as bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as instituições democráticas’".

          Maria Helena Diniz [4] ministra que referido princípio constitui base da comunidade familiar, garantido o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente, e critica juristas, que ante a nova concepção de família, falam em crise, desagregação e desprestígio, salientando que a família passa, sim, por profundas modificações, mas como organismo natural, ela não se acaba e como organismo jurídico está sofrendo uma nova organização.

          A Constituição Federal de 1988 destaca como princípio fundamental, dentre outros que enumera, a Dignidade da Pessoa Humana. Rizazato Nunes destaca em sua obra sobre o tema que o respeito à dignidade da pessoa humana pressupõe assegure-se concretamente os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal, que por sua vez está atrelado ao artigo 225, normas essas que garantem como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, assim como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Acrescento a esta lista a proteção estatal à família como base da sociedade.

          Assim, seja na visão religiosa, em que o casamento religioso, que para a Igreja Católica foi elevado à comunidade mais nobre entre todas as comunidades humanas, à categoria de sacramento, ultrapassa, por vontade de Cristo, todos os conceitos e possibilidades naturais, conferindo-lhe uma dignidade e grandeza verdadeiramente inaudita (ALVES, Martins Antonio, 1976), ou na visão de Cormac Burke (In tradução de Gabriel Périsse, 1991), onde o amor conjugal não está destinado a permanecer apenas como o amor entre duas pessoas e provavelmente não sobreviverá se não ultrapassar este estágio, tornando-se amor familiar, a família tem reconhecida a sua importância no seio da sociedade, ganhando proteção com status constitucional.


Princípio da igualdade jurídica dos cônjuges e companheiros

          A revolução provocada pela Constituição Federal de 1988 já foi abordada neste trabalho, e este princípio insere mais uma inovação que cortou no cerne a vigência de inúmeros dispositivos legais do Código Civil de 1916.

          O artigo 226, § 5º, da Constituição Federal de 1988 traz plasmado que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

          A isonomia conjugal estatuída pela Magna Carta provocou a ira de alguns juristas que vêm na medida a desagregação conjugal como resultado. Maria Helena Diniz, ao contrário, assevera que a regulamentação instituída no aludido dispositivo acaba com o poder marital e com o sistema de encapsulamento da mulher, restrita a tarefas domésticas e à procriação. E continua destacando que o patriarcalismo não se coaduna com a época atual, em que grande parte dos avanços tecnológicos e sociais está diretamente vinculados às funções da mulher na família e referendam a evolução moderna, confirmando verdadeira revolução social.

          Carlos Roberto Gonçalves, em obra já citada, comenta que com esse princípio desaparece o poder marital, e a autocracia do chefe de família é substituída por um sistema em que as decisões devem ser tomadas de comum acordo entre conviventes ou entre marido e mulher, pois os tempos atuais requerem que a mulher e o marido tenham os mesmos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal.

          O Código Civil de 2002, seguindo aos ditames constitucionais, corrigiu as distorções advindas de ultrapassada legislação, já revogadas em sua maioria pelo advento da Magna Carta.

          Na verdade, a evolução tecnológica muito contribuiu para a atualização da legislação e correção de distorções que vitimavam as mulheres ao longo de séculos. No entanto, entendo que a mulher conquistou esta isonomia quando saiu para o mercado de trabalho, assumindo uma carreira, uma casa, filhos, enfim, uma família, e provou ter capacidade, não raro muito maior que a dos homens, pois talento e capacidade não têm dependência com o sexo da pessoa, e a mulher sofria com o preconceito de que era inferior.

          Assim, ao ganhar independência financeira, e muitas vezes sustentar a família, nela incluído o próprio marido, ora vítima do desemprego, ora de salário inferior ao da esposa, conquistou a isonomia jurídica conjugal, pois a isonomia social ela já havia conquistado há muito tempo. Em uma sociedade capitalista como a nossa, o aumento do poder aquisitivo da mulher é que lhe deu condições de igualdade, igualdade esta que em situações em que a mulher é desprovida de cultura e de renda própria, é muito mais tênue ou desapercebida.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Princípio da igualdade jurídica de todos os filhos

          Plasmado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, § 6º, e repetido no Código Civil de 2002, nos artigos 1.596 a 1.629, e, ainda, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, iguala a condição dos filhos havidos ou da relação do casamento, ou por adoção, não mais admitindo-se qualquer diferenciação entre os mesmos.

          O referido princípio não admite distinção entre os filhos legítimos, naturais e adotivos, quanto ao nome, poder familiar, alimentos e sucessão; permite o reconhecimento a qualquer tempo de filhos havidos fora do casamento; proíbe que conste no assento do nascimento qualquer referência à filiação ilegítima e veda designações discriminatórias relativas à filiação.


Princípio da paternidade responsável e planejamento familiar

          O artigo 226, § 7º, da Constituição Federal dispõe que o planejamento familiar é livre decisão do casal, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.

          Em um país de dimensões gigantes como o nosso, não se poderia admitir qualquer restrição impositiva à procriação.

          A Lei nº 9.253/96 regulamentou a questão, principalmente no tocante à responsabilidade do Poder Público. O Código Civil de 2002, no artigo 1.565, traçou diretrizes asseverando que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e que é vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições públicas e privadas.


Princípio do pluralismo familiar ou da liberdade de constituição de uma comunhão de vida familiar

          Carlos Roberto Gonçalves [5] destaca que a Constituição Federal permite que a constituição de uma comunhão de vida familiar seja pelo casamento ou pela união estável, sem qualquer imposição ou restrição de pessoa jurídica de direito público ou privado.

          Maria Helena Diniz [6] chama este princípio de pluralismo familiar, uma vez que a norma constitucional abrange a família matrimonial e as entidades familiares (união estável e família monoparental), ressaltando que o novo Código Civil nada fala sobre a família monoparental, formada por um dos genitores e a prole, esquecendo-se que 26% de brasileiros, aproximadamente, vivem nessa modalidade de entidade familiar.

          Silvio de Salvo Venosa [7] ministra que a Constituição Federal de 1988 consagra a proteção à família no artigo 226, compreendendo tanto a família fundada no casamento, como a união de fato, a família natural e a família adotiva. De há muito, diz o mestre, o país sentia necessidade de reconhecimento da célula familiar independentemente da existência de matrimônio:

          "A família à margem do casamento é uma formação social merecedora de tutela constitucional porque apresenta as condições de sentimento da personalidade de seus membros e a execução da tarefa de educação dos filhos. As formas de vida familiar à margem dos quadros legais revelam não ser essencial o nexo família-matrimônio: a família não se funda necessariamente no casamento, o que significa que casamento e família são para a Constituição realidades distintas. A Constituição apreende a família por seu aspecto social (família sociológica). E do ponto de vista sociológico inexiste um conceito unitário de família." (Francisco José Ferreira Muniz. In: Teixeira, 1993: 77)

          O Direito é norma da conduta social; a família, base da sociedade; a evolução desta não pode escapar à evolução do Direito, sob pena de termos normas jurídicas legítimas, mas ineficazes.


Bibliografia

          BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. Dicionário de Política, cit., p. 430.

          DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. V. V, Direito

          de Família. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

          GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. V. VI, Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2005.

          PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 243.

          VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Direito de Família. V VI. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2005.


NOTAS

          [1] BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. Dicionário de Política, cit., p. 430.

          [2] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 243.

          [3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. V. VI, Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2005.

          [4] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. V. V, Direito de Família. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

          [5] GONÇALVES, op. cit., p. 9.

          [6] DINIZ, op. cit., p. 21.

          [7] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Direito de Família. V VI. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2005.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Edson Teixeira de Melo

Advogado, sócio da Ferreira e Melo Advogados Associados, Especialista em Direito Tributário, Societário, Civil e Terceiro Setor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Edson Teixeira. Princípios constitucionais do Direito de Família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1213, 27 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9093. Acesso em: 16 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos