1. Introdução
1.1. Objeto do Estudo
O presente estudo se propõe a analisar a previsão de dispensa da assistência de advogado nos Juizados Especiais Cíveis, tendo como premissa metodológica o chamado Direito Processual Constitucional e como referenciais científicos as atuais tendências do Processo Civil Brasileiro.
Para clareza da exposição, é indispensável o registro da matriz normativa da referida previsão, encontrada no artigo 9º da Lei nº 9.099/95:
"Art. 9º. Nas causas de valor até 20 (vinte) salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado, nas de valor superior, a assistência é obrigatória.
§ 1º. Sendo facultativa a assistência, se uma das partes comparecer assistida por advogado, ou se o réu for pessoa jurídica ou firma individual, terá a outra parte, se quiser, assistência judiciária prestada por órgão instituído junto ao Juizado Especial, na forma da lei local.
§ 2º. O juiz alertará as partes da conveniência do patrocínio por advogado, quando a causa o recomendar.
§ 3º. O mandato ao advogado poderá ser verbal, salvo quanto aos poderes especiais.
§ 4º. O réu, sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, poderá ser representado por preposto credenciado.".
1.2. A Premissa Metodológica Fundamental
Na feliz síntese de Cândido Rangel Dinamarco, por Direito Processual Constitucional entende-se "o método consistente em examinar o sistema processual e os institutos do processo à luz da Constituição e das relações mantidas com ela" (Instituições de Direito Processual Civil, volume I, São Paulo: Malheiros, 3ª edição, 2003, p.188).
Esta não é a sede própria para analisar a linha evolutiva do pensamento jurídico na direção da constitucionalização do processo, fenômeno cuja adequada análise, mesmo que sintética, mereceria um estudo apartado.
O que é indispensável assentar nesta oportunidade é que não se pode dispensar a profunda aplicação dos balizamentos constitucionais na análise de qualquer disposição legal, por mais singela que possa parecer.
Se é certo que a interpretação das normas requer a utilização integrada dos métodos gramatical, histórico, sistemático e teleológico, não é menos certo que, principalmente na aplicação do método sistemático, a Lei Maior é a principal fonte a ser considerada - por força do Princípio da Supremacia da Constituição - e que esta fonte mesma deve ser objeto de uma análise sistemática - por força do Princípio da Unidade da Constituição.
Este último aspecto deve ser mais detidamente considerado: a Constituição da República, mais do que regras, se presta a consolidar princípios fundamentais, que em situações concretas poderão mostrar-se conflitantes, na medida em que o desenvolvimento do raciocínio a partir de um ou de outro destes princípios, tomados isoladamente, pode levar a resultados contraditórios, sem que se possa tomar partido por um ou por outro - seja por um critério de hierarquia, dado que ambos têm a mesma categoria, seja por um critério de especialidade, porque, sendo ambos princípios, por definição são normas de baixa concretude.
Em casos que tais, a unidade da Constituição é preservada por meio da técnica de Ponderação de Bens ou Valores, de formulação antiga no Direito Penal, mas relativamente recente no Direito Constitucional, como observa Karl Engish:
"Anote-se de passagem que o princípio da ponderação dos bens jurídicos, que inicialmente foi elaborado para o direito penal e aparece expresso na nova formulação do § 34 do Código Penal, actua agora também cada vez mais na heurística de direito civil. (...) Da mesma forma, depois da chamada ´´decisão Lüth´´, de 15.1.1958 (BVerfGer. vol. 7, pp. 198 e ss. = JurZ 1958, pp. 119 e ss.; e sobre ela p. ex. MUNZ-DÜRIG, Kommentar z. GG, nºos 249 e ss., ao Art. 5 GG), o princípio da ponderação de bens foi introduzido no Direito Constitucional (designadamente com referência à delimitação dos direitos fundamentais), ou pelo menos também aí foi suscitada a respectiva questão." (Introdução ao Pensamento Jurídico, 6ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 350).
Deve ficar assentado, portanto, que a análise de qualquer disposição legal deve partir de uma visão integrada do ordenamento jurídico, em geral, e de uma ponderação de valores constitucionalmente assegurados, em particular.
1.3. As Tendências do Processo Civil
Ada Pellegrini Grinover, recorrendo ao magistério de José Carlos Barbosa Moreira, registra as três principais vertentes das atuais tendências do Direito Processual: "a) do abstrato ao concreto; b) do individual ao social; e c) do nacional ao internacional" (cf. "Modernidade do direito processual brasileiro" in O Processo em Evolução, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 3), esclarecendo que na primeira vertente se situa "o empenho pela efetividade e instrumentalidade do processo"; na segunda vertente se situa a preocupação com a universalização da tutela jurisdicional, que pode ser identificada em duas linhas-força: "de um lado, o processo desperta para a necessidade de assegurar a tutela jurisdicional a conflitos de interesses que, por sua dimensão metaindividual, mal se acomodam no quadro dos esquemas processuais clássicos; de outro, busca imprimir ao próprio tratamento dos conflitos interindividuais feição mais consentânea com certas exigências básicas do Estado social de direito, facilitando o acesso à justiça, independentemente de desníveis culturais, sociais e econômicos, de modo a tornar operativo o princípio no plano substancial" e na terceira vertente se situam, principalmente, "os esforços para assegurar a cooperação das justiças dos vários países".
Cândido Rangel Dinamarco, destacando conhecido trabalho de Mauro Cappelletti e Brian Garth, também identifica estas tendências, ao elaborar uma sinopse do presente estado da evolução dos estudos processualísticos:
"A gradativa mudança de atitude veio envolvida, segundo a análise feita com autoridade por Mauro Cappelletti, em três movimentos (principiados em 1965) que ele denominou ondas renovatórias: uma voltada à assistência judiciária aos necessitados, a segunda empenhada na absorção de pretensões à tutela coletiva, a terceira caracterizada pela reforma interna da técnica processual segundo os objetivos do sistema e à luz da consciência de seus pontos sensíveis.
Integra essa terceira onda renovatória a proposta de uma ´´Justiça mais acessível e participativa, atraindo a ela os membros dos grupos sociais e buscando a superação da excessiva burocratização´´" ("Nasce um Novo Processo Civil" in Fundamentos do Processo Civil Moderno, volume I, São Paulo: Malheiros, 5ª edição, 2002, p. 302).
Uma análise pormenorizada de cada uma das vertentes apresentadas foge aos limites do presente trabalho, mas sua enumeração é indispensável na medida em que, como observa Antonio de Pádua Ribeiro ("As Novas Tendências do Direito Processual Civil" in http://www.cjf.gov.br/revista/numero10/artigo10.htm, acesso em 12/05/2003), foi precisamente neste contexto que surgiu a Lei nº 9.099/95, cujo artigo 9º será objeto das considerações a seguir.
2. Da Constitucionalidade (ou Inconstitucionalidade?) da dispensa de advogado nos Juizados Especiais Cíveis
2.1. Síntese das Posições e seus Fundamentos
A constitucionalidade da dispensa da assistência de advogado, nas causas ajuizadas perante um Juizado Especial Cível, cujo valor não exceda a 20 (vinte) salários mínimos, não é um ponto pacífico na doutrina.
Alexandre Freitas Câmara, buscando apoio nos ensinamentos de José Afonso da Silva, sustenta a inconstitucionalidade da disposição em comento, por "tal regra contrariar o disposto no artigo 133 da Constituição da República, em cujos termos o advogado é essencial ao exercício da função jurisdicional, na forma da lei" (Lições de Direito Processual Civil, volume I, 8ª edição, 2003, Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 232), acrescentando que "à lei caberá regulamentar o exercício da atividade de advogado, mas sem jamais chegar ao ponto de tornar a presença do advogado facultativa, pois assim estar-se-ia negando à sua atividade o caráter de função essencial" (idem; ibidem).
Cândido Rangel Dinamarco, por outro lado, afirma a constitucionalidade da referida dispensa, ponderando que "A indispensabilidade do advogado não é princípio que deva sobrepor-se à promessa constitucional de acesso à justiça (Const., art. 5º, inc. XXXV), sendo notório que as causas menores, levadas aos juizados, nem sempre comportam despesas com advogado e nem sempre quem as promove tem como despender." (Instituições de Direito Processual Civil, volume II, São Paulo: Malheiros, 3ª edição, 2003, p. 287). Também Luiz Fux aceita sem ressalvas a previsão legal, que tributa às tendências da informalidade e simplicidade, destacando apenas que "dependendo da natureza da causa e da complexidade do thema iudicandum, ´´o juiz deverá alertar as partes da conveniência do patrocínio por advogado´´" (Juizados Especiais Cíveis e Criminais e Suspensão Condicional do Processo, Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 138).
2.2. Análise da Questão à luz da Premissa Metodológica e das Tendências apontadas
Partindo da premissa metodológica assumida no início deste trabalho, a aplicação do artigo 9º da Lei dos Juizados Especiais depende, naturalmente, de sua conformidade à Constituição da República. Note-se: conformidade à Constituição como um todo, não apenas a um de seus dispositivos, que guarde a mais óbvia pertinência temática com o texto legal em análise.
O exame da previsão em tela deve ter como alicerce o perfil constitucional do processo, no qual se insere o procedimento dos Juizados Especiais Cíveis. Este perfil é traçado pelas diversas garantias arroladas ao longo da Carta de 1988, as quais, na síntese sempre precisa de Cândido Rangel Dinamarco, são "interligadas pelo fio condutor que é o devido processo legal" e "têm um só e único objetivo central, que é o acesso à justiça" (Instituições de Direito Processual Civil, volume I, p. 248).
Não pode restar dúvida, portanto, de que o centro de gravidade de qualquer abordagem sobre a constitucionalidade do artigo 9º da Lei nº 9.099/95 é a garantia de acesso à justiça (artigo 5º, XXXV, da Constituição da República) e não a previsão da indispensabilidade do advogado à administração da justiça (artigo 133 da Constituição da República).
Cabe destacar, em reforço da coerência da exposição, que a adoção de um centro de gravidade não implica em transigência com a idéia de unidade da Constituição. O que ora se convencionou denominar Centro de Gravidade nada mais é do que o resultado da aplicação da conhecida técnica de Ponderação de Bens ou Valores, cujo correto manejo, como adverte Luís Roberto Barroso com apoio em Konrad Hesse, depende de "um esforço de otimização: é necessário estabelecer os limites de ambos os bens a fim de que cada um deles alcance uma efetividade ótima. Na busca dessa concordância prática, passa-se por um outro princípio, que se apreciará adiante: o da proporcionalidade" (Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 1998, p. 186).
Alcança-se aqui o ponto nodal da questão proposta no presente estudo: a análise da dispensa de assistência de advogado à luz da autêntica âncora axiológica de todo o ordenamento jurídico: a proporcionalidade, que se traduz na convergência dos seguintes requisitos: "(a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar-se se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos" (Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 209).
Sem esforço de raciocínio - e sem destacar ainda outras nuances das atuais tendências do Direito Processual, como a análise do processo do ponto de vista do consumidor da jurisdição - percebe-se que a exigência intransigente da assistência de advogado acaba por não atender ao objetivo último do processo, que é o acesso à ordem jurídica justa (onde assume relevo a tendência à universalização da jurisdição, embora nela não se esgote seu conteúdo, conforme a já clássica advertência de Kazuo Watanabe); tampouco se mostra exigível, ou mesmo necessária, para que a parte que tenha razão - seja ela o autor ou o réu - obtenha a tutela jurisdicional e por fim, menos ainda se mostra proporcional em sentido estrito, na medida em que não há qualquer justificativa democrática para a exigência da contratação de um profissional.
O fundamental é que o jurisdicionado esteja cônscio de seus direitos e seja praticamente apto a exercê-los. Em casos simples, como os que têm em mira a disposição legal em comento, não se justifica a imposição de que a parte contrate um advogado para patrocinar seus interesses em Juízo: bastar-lhe-á, no mais das vezes, que o profissional aja como um agente multiplicador, em atividade consultiva, como, por exemplo, em órgãos de proteção e defesa do consumidor (aqui empregada a expressão em seu sentido técnico, previsto na Lei nº 8.078/90, artigo 2º).
3. Conclusão
Acompanhar as atuais tendências do Direito Processual, tendo como referencial a Constituição da República, implica, sempre e necessariamente, em revisitar toda a dogmática sobre a qual se estruturou o conhecimento processualístico.
Esta atividade interpretativa a aplicativa não encontra limites na extensão possível dos conceitos conhecidos, mas sim nos valores eleitos pela Lei Maior, cuja concretização se realiza na reestruturação do direito vigente. Pode ocorrer que neste processo de reforma seja necessário abandonar um conceito, ou, ao menos, rever seus limites.
Esta contingência não deve gerar qualquer perplexidade ao operador: trata-se de compreender a própria lógica do Direito, que se revela mais claramente no ramo Processual, e que se pode resumir em uma palavra: Instrumentalidade.
Sem esta consciência, restarão mal-compreendidos avanços significativos em nossa técnica processual, como a previsão da dispensa da assistência de advogado, na hipótese prevista no artigo 9º da Lei nº 9.099/95, cuja validade, se compreendida a amplitude do impacto das normas constitucionais sob o ordenamento jurídico, mostra-se clara, sendo indiferente para o resultado da análise a circunstância de afastar-se a incidência do tradicional conceito de capacidade postulatória, que, nos parece, é o principal entrave à sua pacífica aceitação.