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Direito de igualdade

01/01/2007 às 00:00
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Direito de igualdade

            Os evangelhos (Mt 26, 11; Mc 14, 5; Jo 12, 8) narram um episódio, no mínimo, intrigante. Estando Jesus em Betânia, aproximou-se dele uma mulher trazendo um frasco de alabastro de perfume precioso e pôs-se a derramá-lo sobre sua cabeça, enquanto ele estava na mesa. Ao verem isso, os discípulos ficaram indignados e diziam: "A troco de que esse desperdício? Pois isso poderia ser vendido bem caro e distribuído aos pobres." Mas Jesus, ao perceber essas palavras, disse-lhes: "Por que aborreceis a mulher? Ela, de fato, praticou uma boa ação para comigo. Na verdade, sempre tereis os pobres convosco, mas a mim nem sempre tereis."

            Será verdade que a humanidade está condenada à desigualdade da má distribuição de renda, alguns tendo tanto e a maioria não tendo nada? Onde está o direito de igualdade?

            Os textos bíblicos não nos ajudam muito, pois suas páginas nos mostram grandes homens, grandes santos, que eram ricos. Abraão, o homem justo, o santo, era muito rico em rebanhos, em prata e em ouro (Gn 13, 2). Ló, que acompanhava Abraão, tinha igualmente ovelhas, bois e tendas (Gn, 13, 5). Isaac, filho de Abraão, também era muito rico. Semeou naquela terra e, naquele ano, colheu o cêntuplo. Iahweh o abençoou, e o homem se enriqueceu, enriqueceu-se cada vez mais, até tornar-se extremamente rico. Ele tinha rebanhos de bois e ovelhas e numerosos servos (Gn 26, 12-14). Jacó adquiriu propriedades. O homem se enriqueceu enormemente e teve rebanhos em quantidade, servas e servos, camelos e jumentos (Gn 30, 43). José, filho de Jacó, que fez a política agrária no Egito (Gn 47, 13-26), era riquíssimo.

            E nós, como ficamos: ricos ou pobres para sempre?

            A igualdade é o signo fundamental da democracia. Não aceita privilégios e distinções consagrados por um regime simplesmente liberal. A burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade.

            Aristóteles (384-322 a.C.), na Ética a Nicômaco, livro quinto, vinculou a idéia de igualdade à idéia de justiça: "A justiça nas transações entre os homens é uma espécie de igualdade, e a injustiça, desigualdade. A lei deve considerar apenas o caráter do delito e tratar as partes como iguais. Se uma comete, a outra sofre a injustiça: uma é autora, a outra, a vítima. A justiça corretiva será o intermediário entre a perda e o dano. O justo é um meio termo, pois é o juiz que restabelece a igualdade. O igual é intermediário entre a linha maior e a menor pela proporção aritmética." Sua igualdade de justiça relativa é a que dá a cada um o que é seu, uma igualdade impensável sem a desigualdade complementar.

            Alguns pensadores sustentam que a desigualdade é a característica do universo. Os seres humanos nascem e perduram desiguais. Para eles, nominalistas, essa igualdade não passaria de um simples nome, sem significação no mundo real.

            Outros, idealistas, como Locke (1632-1704), postulam um igualitarismo absoluto entre as pessoas, liberdade natural ligada à hipótese do estado de natureza, em que reinava uma igualdade absoluta.

            Rousseau (1712-1778) tinha essa posição, mas admitia duas espécies de desigualdade entre os homens: uma, natural ou física, estabelecida pela natureza, consistente na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; outra, moral ou política, que depende de uma espécie de convenção e é estabelecida pelo consentimento dos homens, consistindo nos diferentes privilégios que uns gozam em detrimento dos outros, como ser mais ricos, mais nobres, mais poderosos.

            A posição realista reconhece que os homens são desiguais sob múltiplos aspectos, mas são criaturas iguais, pois a igualdade se revela na própria identidade de essência dos membros da espécie.

            O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão cunhou o princípio de que os homens nascem e permanecem iguais em direito (Déclaration des droits de l’Homme et du citoyen. Article premier – Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l´utilité commune). Mas aí firmara a igualdade no plano político, de caráter puramente negativo, visando a abolir os privilégios, isenções econômicas, porque fundada numa visão individualista do homem.

            Nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade como igualdade perante a lei, no sentido de que a lei e a sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. O art. 5º, caput, da atual Constituição – "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, (...)" – deve ser aferido com outras normas constitucionais, buscando a igualização dos desiguais pela outorga de direitos sociais substanciais, nos ensinando com Rui Barbosa (1849-1923) "a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade" (Oração aos Moços, p. 26).

            A Constituição procura aproximar os dois tipos de isonomia, não se limitando ao simples enunciado da igualdade entre homens e mulheres, e acrescenta vedações a distinção de qualquer natureza e a qualquer forma de discriminação (arts. 5º, I, e 7º, XXX a XXXII).


Igualdades constitucionais

            A biblicista Eliana cumprimentou-me pela citação dos textos referentes aos patriarcas Abraão, Ló, Isaac, Jacó e José. Mas, educadamente, indagou-me a respeito das desigualdades brasileiras concretas do nosso dia-a-dia de homens e mulheres perante o juiz, perante a tributação, perante a lei penal e tantas outras, como sexo, origem, cor, raça, idade, trabalho, credo religioso, convicções filosóficas ou políticas.

            O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26/08/1789, cunhou o princípio de que os homens nascem e permanecem iguais em direito (Déclaration des droits de l’Homme et du citoyen. Article premier – Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune).

            Igualdade (égalité) é um dos lemas da Revolução Francesa, de 1789, considerada a mais importante realização da história contemporânea. Com base nos ideais iluministas, igualdade ecoou em todo o mundo, derrubando os regimes absolutistas.

            A palavra de ordem igualdade (égalité) atende aos ideais dos direitos sociais, econômicos e culturais. É um fazer do Estado em prol dos menos favorecidos, pela ordem social e econômica. Esses direitos surgiram em um segundo momento do capitalismo, com o aprofundamento das relações entre capital e trabalho.

            A igualdade de homens e mulheres está expressa no artigo 5º, I (homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição), pondo fim a qualquer resquício da autoridade marital, de prevalência ou preferência do sexo masculino sobre o feminino. É uma regra que resume décadas de lutas das mulheres contra discriminações, abrangendo também a igualdade no lar e na família (art. 226, § 5º).

            A igualdade perante a lei e jurisdicional ou perante o juiz é voltada para o legislador, proibindo-o de elaborar dispositivos que estabeleçam desigualdade entre as pessoas, privilegiando ou perseguindo algumas. Igualmente é dirigida para o juiz, como interdição de fazer distinção entre situações iguais, ao aplicar a lei.

            Essa igualdade de justiça condena os tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII), pois a Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 10, estabelece que todo o homem tem direito a um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres (Universal Declaration of Human Rights. Article 10 – Everyone is entitled in full equality to a fair and public hearing by an independent and impartial tribunal, in the determination of his rights and obligations and of any criminal charge against him).

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            A igualdade tributária estabelece tratamento igual entre iguais e desigual entre os desiguais: quem ganha mais paga mais; quem ganha menos paga menos; quem não ganha nada não paga nada. Veda assim a instituição de "tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente" (art. 150, II), relacionando-se com a justiça distributiva em matéria fiscal (art. 145, § 1º).

            A igualdade perante a lei penal significa que a mesma lei penal e seus sistemas de sanções hão de se aplicar a todos quantos pratiquem o fato típico nela definido como crime.

            A igualdade "sem distinção de qualquer natureza" (art. 5º, caput), ou seja, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas, é consectária de tratamento igual a situações iguais e tratamento desigual a situações desiguais. Os fatores de discrime continuam como fontes de discriminações odiosas e, por isso, proibidas expressamente (art. 3º, IV).

            A vigente Constituição é veemente na condenação da falta de equiparação entre pessoas, exemplificando situações concretas, decorrentes desse princípio, por exemplo:

            a)igualdade "sem distinção de sexo e de orientação sexual", pois o sexo sempre foi um fator de discriminação, uma vez que o sexo feminino esteve sempre inferiorizado na ordem jurídica. Só recentemente vem conquistando posição paritária igual à do homem;

            b)igualdade "sem distinção de origem, cor e raça" é uma condenação das discriminações com base nesses fatores, repúdio à barbárie nazista. É abrangente, pois dirige-se contra o preconceito à cor negra, aos nordestinos e às pessoas de origem social humilde (arts. 4º, VIII, e 12, § 2º);

            c)igualdade "sem distinção de idade", mormente nas relações de trabalho, recusando-se emprego a pessoas mais idosas e pagando-se menos a jovens (arts. 7º, XXX e XXXIII, e 227, § 3º, I);

            d)igualdade "sem distinção de trabalho", significando a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII), vedando "distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos" (art. 7º, XXXII);

            e)igualdade "sem distinção de credo religioso", sem que sua religião possa ser levada em conta (art. 5º, VI, VIII);

            f)igualdade "sem distinção de convicções filosóficas ou políticas" que foi tão desrespeitada, negando-se às pessoas a possibilidade de exercício de funções públicas e de realizar concursos públicos em igualdade de condições com outros candidatos, o que é uma violência sem nome.

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. Direito de igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1279, 1 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9344. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Artigo baseado na compilação de textos publicados no "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre 26/06 e 06/07/2003.

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