Já entrou em vigor a Lei Complementar nº 123, de 14 dezembro de 2006, que institui o Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. Trata-se de uma lei inovadora, cujo principal objetivo é estimular as atividades empresariais de pequeno porte, tendo por fundamento os artigos 146, "d" e 179 da Constituição Federal.
A alínea "d" do artigo 146 foi acrescentada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003, e estabelece que cabe à lei complementar a "definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 139."
Tal dispositivo constitucional, segundo Kiyoshi Harada, é a matriz da Lei Complementar nº 123, no que concerne à implantação do "regime tributário diferenciado para as micro e pequenas empresas em relação aos tributos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conhecido como Supersimples" e tem "aplicação cogente nas três esferas políticas, respeitada a opção do contribuinte". Segundo ele, o texto final da lei complementar tornou-se bastante complexo, senão confuso, em virtude as diversas emendas apresentadas no Congresso Nacional ao Projeto de Lei original. [01]
De fato, a Lei Complementar não se atém ao regime tributário diferenciado previsto no artigo 146, "d" da Constituição Federal. Revogando e alterando disposições de leis ordinárias e complementares, o Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte traz medidas que dizem respeito à redução da burocracia, ao estímulo ao crédito, à inovação, às relações trabalhistas e às licitações – tema deste trabalho.
Essas medidas encontram fundamento na Constituição Federal, mais especificamente no artigo 179, inserido no Capítulo que trata dos princípios gerais da atividade econômica, que dispõe: "a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei".
É dentro desse espírito de incentivo que a Lei Complementar institui determinados privilégios para a participação das micro e pequenas empresas nas licitações públicas. A aplicação do disposto nos artigos 46 a 49 dependem de regulamentação, enquanto os artigos 42 a 45 trazem disposições já aplicáveis, que serão abordadas no presente estudo.
Em primeiro lugar, a lei estabelece que a comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte somente será exigida para efeito de assinatura do contrato (art. 42). No entanto, não as exime de apresentar toda a documentação exigida para efeito de comprovação de regularidade fiscal, por ocasião da participação em certames licitatórios, mesmo que esta apresente alguma restrição (art. 43), caso em que terá o prazo de 2 (dois) dias úteis para sua regularização, contados da data em que for declarada vencedora do certame.
A princípio, o prazo do art. 43 para regularização dos documentos parece ir de encontro com o disposto no art. 42. No entanto, o § 2º do art. 43 estabelece que a não regularização dos documentos implicará decadência do direito à contratação, remetendo às penalidades do art. 81 da Lei Federal 8.666/93, que dispõe:
"Art. 81. A recusa injustificada do adjudicatário em assinar o contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente, dentro do prazo estabelecido pela Administração, caracteriza o descumprimento total da obrigação assumida, sujeitando-o às penalidades legalmente estabelecidas."
Assim, pode-se concluir que as microempresas e empresas de pequeno porte devem apresentar a documentação fiscal para fins de habilitação no certame. Contudo eventuais restrições não podem levar à sua inabilitação, pois lhes será concedido prazo para regularizar seus débitos, seja por meio do pagamento ou parcelamento, vindo a obter posteriormente certidão negativa ou certidão positiva com efeitos de negativa.
O prazo para apresentação dos novos documentos de regularidade fiscal somente poderá correr após a homologação, pois somente então é que se pode falar em eventual direito à contratação.
Entretanto, o Edital deverá ser claro quanto ao momento em que se dará a contagem do prazo, a fim de evitar questionamentos posteriores.
Outra questão polêmica é a preferência de contratação das microempresas e empresas de pequeno porte no caso de empate das propostas, prevista no art. 44:
"Art. 44. Nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte.
§ 1º Entende-se por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada.
§ 2º Na modalidade de pregão, o intervalo percentual estabelecido no § 1º deste artigo será de até 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço. "
O art. 45 traz o procedimento para o desempate. Nas modalidades previstas na Lei 8.666/93, a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame; caso não apresente nova proposta ou não ocorra sua contratação, deverão ser convocadas as demais micro ou pequenas empresas que se encontrem dentro dos limites referidos no art. 44; ainda, havendo empate, será realizado sorteio para definir qual delas poderá primeiro apresentar a melhor oferta.
Esse dispositivo traz mais uma exceção ao princípio da imutabilidade das propostas de preços, que vigora no nosso sistema. As demais exceções estão previstas na Lei Federal nº 8.666/93, nos arts 46, II (possibilidade de negociação das condições propostas nas licitações de melhor técnica) e 48, § 3º (possibilidade de apresentação de novas propostas, quando todas forem desclassificadas).
No entanto, segundo Carlos Ari Sundfeld, as duas exceções previstas na Lei nº 8.666/93 preservam a igualdade de tratamento [02] entre os licitantes:
"Todavia, em ambos os casos a exceção foi aberta sem colocar em risco a isonomia entre os licitantes. Na hipótese do art. 48, todos têm direito à melhoria de suas propostas, ficando preservada a necessária igualdade no tratamento entre eles. Na licitação por melhor técnica, a melhoria do preço é buscada junto ao vencedor, exatamente por que, pela posição obtida quanto ao critério de julgamento, dele será o direito à contratação, se houver." [03]
Para ele, a possibilidade de alteração das propostas em outras hipóteses compromete a seriedade do certame:
"Ao contrário do que normalmente imaginam os pouco afeitos à vida administrativa, aceitar a redução de preço por um licitante, no curso do procedimento, não atende o interesse público. Viola-o frontalmente, comprometendo a própria essência da licitação. Por isso, a medida é rechaçada universalmente (...)" [04]
Embora a Constituição Federal estabeleça a possibilidade de tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas, o privilégio inserido no novo Estatuto quanto à nova oferta de preço nas licitações fere o princípio da isonomia e da competitividade, uma vez que lhes é dada a oportunidade de ofertar nova proposta após terem conhecimento dos preços dos demais licitantes. Ressalte-se, ainda, que até a data da entrega das propostas, os demais licitantes não têm conhecimento se alguma micro ou pequena empresa estará ou não participando.
A lei não disciplina a forma ou prazo para apresentação da nova proposta, cabendo ao Edital disciplinar a questão.
Já no pregão a situação é diversa. O §3º do art. 45 estabelece que "a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada será convocada para apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 (cinco) minutos após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão."
Devido à própria sistemática do pregão, os licitantes, desde que preenchidos os requisitos legais, têm a oportunidade de ofertar lances, sabendo da participação da micro ou pequena empresa e da possibilidade do exercício da preferência prevista no dispositivo supra mencionado. Muito embora ainda possa ser considerado um privilégio, a disputa ocorre de forma mais clara.
É recomendável, pois, que já no momento do credenciamento seja verificada pelo pregoeiro a qualificação de micro ou pequena empresa, seja pela análise de documentos, seja por meio de declaração do próprio licitante, para, então, os competidores formulares seus lances de forma consciente.
Assim, finalizada a etapa de lances, o pregoeiro deverá verificar se existe alguma micro ou pequena empresa que se enquadre na hipótese do § 3º, do art. 45, oferecendo-lhe, caso positivo, a oportunidade para apresentar nova proposta, após o que a licitação terá seu prosseguimento nos termos do inc. XI do art. 4º, da Lei Federal nº 10.520/02.
Não é possível, ainda, avaliar o impacto dos efeitos do novo Estatuto nas contratações públicas. Estudo do SEBRAE, contudo, traça um perfil das micro e pequenas empresas no Brasil, que já representavam, em 2004, 98% das empresas brasileiras, sendo que cerca de 56% são estabelecimentos comerciais, 30% estão no setor de serviços e 14% na indústria; no comércio destacaram-se os minimercados e mercearias (11%), o varejo do vestuário (11%), o varejo de materiais de construção (7%), farmácias e perfumarias (5%), o comércio de autopeças (5%) e o comércio varejista de artigos e equipamentos para escritório e de informática (3%). No grupo das médias e grandes empresas estão, em geral, aquelas cujas atividades requerem elevado volume de recursos e/ou que envolvem grandes escalas de operação, tais como: mercados (de 300 a 5.000 m2), o comércio atacadista em geral, a venda de produtos de elevado valor unitário (por exemplo: veículos e eletrodomésticos) e hipermercados. [05]
Notas
01 HARADA, Kiyoshi. Estatuto nacional das micro e pequenas empresas. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1265, 18 dez. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9293>. Acesso em: 13 fev. 2007.
02 A doutrina não é unânime no que concerne à hipótese prevista no art. 48, § 3º. Marçal Justen Filho entende que "Se todas as propostas foram desclassificadas não há fundamento jurídico para restringir a apresentação de novas propostas apenas aos anteriores participantes. Essa restrição é indevida e ofende os princípios da isonomia, da moralidade e da competitividade. Impede indevida e injustificadamente a participação de interessados no procedimento licitatório". (Comentários à lei de licitações e contratos. 9ª ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 436).
03 SUNDFELD, Carlos Ari. O formalismo no procedimento licitatório. Revista Zênite de Licitações e Contratos. nº 155 – janeiro/07, p. 20/21
04 op. cit., p. 21.
05 BEDÊ, Marco Aurélio (coord). Onde estão as Micro e Pequenas Empresas no Brasil. 1ª ed. - São Paulo : SEBRAE, 2006. Vários colaboradores. Disponível em: <http:// http://www.biblioteca.sebrae.com.br > Acesso em: 13 fev. 2007.