Tem sido amplamente noticiada a questão relativa à emenda número 3 inserida furtivamente no projeto de lei que cria a Super-Receita e que foi vetada pelo presidente Lula. Sempre de forma tendenciosa, os veículos de comunicação, em sua grande maioria, têm se posicionado francamente contra o veto, não veiculando qualquer argumento oposto que mostre alguma das conseqüências nefastas para a sociedade brasileira.
Em geral, a imprensa descreve a emenda 3 como a emenda que "acaba com a arbitrariedade dos fiscais" (na desconsideração de pessoas jurídicas fraudulentas) e exibe entrevistas com juristas, economistas, sociólogos e empresários engajados na "flexibilização" (ou "modernização") da legislação trabalhista (termos que têm sido utilizados para descrever reformas que consistem unicamente no corte de direitos dos trabalhadores).
Vejamos o que diz a emenda 3:
"No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta Lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá sempre ser precedida de decisão judicial".
A emenda, portanto, intenta impedir que pessoas jurídicas sejam desconstituídas ou desconsideradas pelos auditores-fiscais (da receita, previdência e do trabalho), mesmo que sua criação tenha ocorrido justamente para fraudar a legislação trabalhista ou tributária (o trabalhador cria uma empresa individual e passa a trabalhar para o empregador através de um contrato civil de prestação de serviços, mas na realidade exerce típica relação de emprego, que é tutelada pela CLT e demais legislação trabalhista). Há assim fraude ao fisco, pois a tributação das pessoas jurídicas é diferente da tributação das pessoas físicas, e à legislação trabalhista, praticamente a extinguindo.
Eventual reconhecimento da relação de emprego só poderia ser feito por juiz através de processo judicial. Os defensores da emenda 3 utilizam-se da tese de que se estaria aumentado o poder dos juízes mas haveria alguma razão atual em restringir tais atos somente aos juízes? Não. É bom lembrar que os auditores-fiscais sempre tiveram essa prerrogativa, no Brasil e em muitos países do mundo que fazem cumprir as normas de direito internacional que ratificaram. É o caso da Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho - OIT que trata da inspeção do trabalho estabelecendo parâmetros de atuação que se tornariam letra-morta caso fosse vedado o reconhecimento de relações de emprego pelos auditores-fiscais. A inspeção do trabalho no país seria dispensável porque não existiriam normas a serem fiscalizadas. Portanto, o Brasil estaria atuando na contra-mão da legislação internacional que trata do tema. Seriam como impedir os guardas de trânsito de multar sem prévio processo judicial. De outro lado, importante mencionar que empregadores não ficam eternamente subjugados a "arbitrariedades" de fiscais, visto que podem recorrer administrativamente e judicialmente de eventuais multas, como sempre puderam.
E por que não vemos nos meios de comunicação a exibição desses argumentos contrários à emenda 3? Por que todo noticiário da Rede Globo renitentemente a resume como sendo a emenda que põe fim nas "arbitrariedades" dos fiscais? Há um sentimento geral de que os auditores-fiscais têm sido arbitrários no reconhecimento de relações de emprego camufladas? Não, é só checar o número de ações tramitando na Justiça contra eventuais autuações por este motivo.
O que ocorre é que justamente nos meios de comunicação, especialmente nos setores de jornalismo, há muitos trabalhadores que prestam serviços dessa forma (criando empresas individuais para assinar contratos de prestação de serviço quando na realidade existe uma relação de emprego regular). Há forte pressão das empresas da comunicação para a aprovação da emenda e em toda matéria jornalística referente à emenda 3 tem-se vilipendiado as graves conseqüências que a emenda traria. Raros são os canais de televisão que abordam o tema de forma imparcial. Têm sido expostas opiniões favoráveis à emenda 3 e silenciado a posição oposta de importantes pessoas e entidades como as associações nacionais dos magistrados do trabalho, dos magistrados federais, dos procuradores do ministério público do trabalho, dos auditores-fiscais do trabalho e da receita federal, da associação dos advogados trabalhistas, da ordem dos advogados do Brasil, de todas as centrais sindicais, do presidente nacional da OAB e do atual ministro do trabalho, Carlos Lupi (PDT).
E quais seriam as conseqüências da aprovação da emenda 3? A CLT e a legislação trabalhista esparsa se aplicam às relações de emprego. Contratos de prestação de serviço não são regidos pela lei trabalhista. Uma pessoa que se maqueia de pessoa jurídica para prestar serviço não teria assegurado pela lei as férias, FGTS, 13º salário, horas extras, etc. E o mais grave, as normas regulamentares sobre saúde e segurança do Ministério do Trabalho não se aplicariam a eles. Assim, um auditor-fiscal verificando grave e iminente risco de vida para o trabalhador nada poderia fazer, pois todas essas normas partem do pressuposto do reconhecimento da relação de emprego: o fiscal exige o cumprimento da legislação (que só se aplica às relações de emprego) pois verificou que a relação era na realidade de emprego, apesar de haver a constituição de pessoa jurídica e um contrato de prestação de serviços. Impedido de reconhecer relação de emprego, o auditor-fiscal fica conseqüentemente impedido de exigir a aplicação de normas que se aplicam somente às relações de emprego.
O combate ao trabalho escravo que vem sendo travado pelo Ministério do Trabalho, conforme prescrito pela OIT, também restaria inviabilizado. Não haveria como coagir os empregadores a reconhecer qualquer direito dos trabalhadores degradados, existiria a necessidade de os mesmo pleitearem seus direitos na Justiça do Trabalho, o que poderia demorar anos. Inverte-se a lógica do sistema, o escravagista que antes poderia recorrer ao judiciário contra eventual multa agora é quem tem a vantagem de só ser demandado através de processo judicial.
Estariam revogadas as normas trabalhistas, dentre elas as Convenções da OIT das quais o Brasil é signatário? Na prática sim. Para qualquer empregador é mais vantajoso contratar prestadores de serviço do que empregados. Logo deixariam de registrar os empregados já que a fiscalização não poderia autuar por falta de registro. Restaria aos trabalhadores unicamente a possibilidade de recorrer à justiça, o que seria inviável: a Justiça do Trabalho no país é a justiça dos desempregados, pois já que não existe estabilidade no emprego (como em alguns países europeus), os trabalhadores não ingressam com ações judiciais temendo a demissão. Só o fazem depois que são demitidos. Também há o fenômeno jurídico da prescrição que no país é de 5 anos (o trabalhador só pode pleitear direitos referentes aos últimos 5 anos). Mesmo assim, o empregador antes de demitir um "prestador de serviço" poderia registrá-lo com efeitos retroativos inviabilizando qualquer pleito judicial. Isso se a empresa não optasse por não registrar e responder a um incerto processo trabalhista, que poderia levar anos. Acabaria também por inchar ainda mais o Poder Judiciário, contribuindo para maior morosidade até em ações referentes a outros temas.
Enfim, as empresas fatalmente deixariam de registrar seus empregados em vista da menor onerosidade. A CLT e a legislação trabalhista ficariam em completo desuso, deixando de existir em lei direitos como as férias, 13º salário, limite para jornada de trabalho, adicional de hora extra, direitos esses que foram sendo conquistados pelos trabalhadores lentamente desde o advento da revolução industrial, época onde a exploração de mão-de-obra era selvagem, sendo relatadas, por exemplo, a existência crianças trabalhando em jornadas de até 18 horas. Com um pequeno artigo inserido num projeto de lei (a emenda 3) estaria se realizando a mais devastadora reforma trabalhista que certos setores da sociedade pretendiam para o país.
Da inconstitucionalidade
A emenda 3 se choca frontalmente com o que prescreve a Constituição Federal do Brasil. Ela impediria a efetivação de todos os direitos trabalhistas previstos no art. 7º e outros, logo não haveria como sobreviver quando sua constitucionalidade fosse questionada judicialmente. O presidente da república e o ministro do trabalho poderiam até instruir a inspeção do trabalho a ignorar a emenda 3 sem necessidade de processo judicial, dada sua evidente inconstitucionalidade.
Mesmo que ela viesse proposta na forma de emenda constitucional se chocaria com cláusulas pétreas do art. 60. Os direitos dos trabalhadores que estariam sendo revogados poderiam enquadrar-se como direitos individuais como propõe parte da doutrina juslaboralista (além de chocar-se com o princípio da irretroação dos direitos sociais – ou princípio da norma mais favorável) o que ocasionaria contradição com o inciso I (que impossibilita emenda constitucional tendente a abolir direitos individuais) e, da mesma forma, com o inciso III (impede emenda tendente a abolir a separação dos poderes) pois o Poder Legislativo estaria interferindo indevidamente no poder de fiscalização (poder de polícia) inerente ao Poder Executivo. A Constituição impede que projetos de emenda constitucional desse tipo sejam sequer alvo de apreciação pelas casas legislativas.