Sumário: 1. Introdução - 2. Tratamento Comunitário dos Direitos humanos - 3. Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e a Corte Européia de Direitos Humanos - 4. Jurisprudência do Tribunal de Justiça em sede de direitos humanos - 5. Conclusão - 6. Bibliografia -
1. INTRODUÇÃO
Após a segunda metade do século XX, o Direito Internacional passou por acentuada mudança: superou o positivismo voluntarista sempre superveniente à ordem estatal (paradigma interestatal), adotou os "valores comuns superiores" do jusnaturalismo e passou a reconhecer a pessoa humana como titular de direitos no âmbito internacional. Dessa forma, o Direito Internacional passou por processo de humanização, o que, também, se verificou no Direito Constitucional. [01] Nessa esteira, Roberto Luiz Silva anota que "não se pode falar em direitos do homem garantidos pela ordem jurídica internacional se o homem não for sujeito de Direito Internacional. Negar a personalidade internacional do homem é negar ou deturpar a existência de uma série de instrumentos da vida jurídica internacional". [02]
A consolidação da União Européia, após a celebração dos tratados de Maastricht (1992) e de Amsterdam (1997), trouxe inúmeras inovações e com enormes repercussões jurídicas. Além da criação de uma moeda única, entra em cena o fenômeno da supranacionalidade e, também, um Direito Comunitário totalmente autônomo que, por vezes, se sobrepõe ao direito interno de cada Estado-parte, mas que deve se curvar às normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
O presente artigo tem o escopo de analisar o impacto do Direito Comunitário sobre a proteção da pessoa humana, ou seja, como a União Européia enfrenta a problemática dos Direitos Humanos fundamentais, uma vez que a proteção da pessoa humana, nas palavras do professor Cançado Trindade, representa um dos maiores desafios do Século XXI. [03] Nessa esteira, há que se perguntar se a mesma tendência de humanização experimentada pelo Direito Internacional será confirmada pelo Direito Comunitário.
O presente artigo pretende enfrentar, ainda, os desafios da coexistência dos diversos sistemas de proteção dos Direitos Humanos (pluralidade), especialmente como devem ser as relações entre a Corte Européia de Direitos Humanos e o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. Como devem ser solucionados os conflitos de competência entre essas duas Cortes?
2. TRATAMENTO COMUNITÁRIO DOS DIREITOS HUMANOS
Vejamos, primeiramente, como a União Européia tem enfrentado a questão dos Direitos Humanos.
Em primeiro lugar, cumpre lembrar que os tratados que instituíram a União Européia não incluíam, num primeiro momento, a proteção jurídica dos Direitos Humanos fundamentais. Não havia, no princípio, preocupação com a tutela dos direitos fundamentais no âmbito das Comunidades Européias. No entanto, as Cortes Constitucionais italiana e alemã provocaram profunda reflexão sobre o tema, fazendo que a Comunidade Européia reexaminasse a sua postura diante dessa questão, [04] uma vez que a supremacia do Direito Comunitário sobre o Direito Interno fora adotada como princípio.
Segundo a Constituição italiana, a norma de direito interno em conflito com o Direito Comunitário seria inconstitucional. Porém, o acórdão Frontini, exarado pela Corte Constitucional italiana, em 1973, considera que a norma de direito interno deve prevalecer sobre a norma de direito comunitário se esta violar direitos fundamentais. Nessa condição, tal violação convalidaria a norma de direito interno, que passaria a ser considerada constitucional, embora contrariasse uma norma de direito Comunitário, que em princípio teria prevalência. No mesmo norte, oriundos da Corte Constitucional alemã saíram dois acórdãos emblemáticos, Solange I e Solange II (1986), com o entendimento de que o Direito Comunitário não poderia violar uma norma interna de direito fundamental. As normas Comunitárias, portando, deveriam seguir a tradição Constitucional dos Estados-membros; por conseguinte, o respeito aos direitos humanos seria um requisito para a sua validade. [05]
Sob a influência das Cortes Constitucionais, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias passaram a seguir a tendência de humanização consagrada no Direito Internacional, reconhecendo a necessidade de se assegurarem os Direitos humanos no âmbito da Comunidade. Com os acórdãos Stauder (1969) e Internationale Handelsgesellschaft (1970), o Tribunal de Justiça passou a reconhecer os direitos Humanos fundamentais, como verdadeiros princípios gerais de direito e, por conseguinte, o dever de salvaguardá-los. Mas convenhamos, o Direito Comunitário não poderia seguir outro caminho, pois os Estados europeus, na sua maioria, já se achavam irreversivelmente comprometidos com a proteção dos Direitos Humanos Fundamentais, através dos Pactos de Direitos Civis e, também, dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966. Ademais, como ficariam as Comunidades Européias diante da ONU, tendo em vista a fase de reconstrução dos Direitos Humanos que se verificou após a Segunda Guerra Mundial. [06] Ora, de qualquer forma, os Estados europeus, em nenhuma hipótese, poderiam apresentar uma norma de Direito Comunitário como escusa para violar Direitos Fundamentais da pessoa humana, consagrados no Direito das gentes.
Os acórdãos Van Gend & Loos (1963), Costa/ENEL (1964) e Simmenthal (1978) foram importantíssimos para os cidadãos europeus, uma vez que eles podem agora invocar perante os órgãos jurisdicionais nacionais as disposições dos Tratados. [07]
Segundo o site oficial da União Européia, os direitos fundamentais da pessoa humana são altamente considerados:
"Colocar o indivíduo e os interesses do indivíduo no centro da integração européia constitui a principal preocupação da União Européia. As instituições européias reconheceram o respeito dos direitos fundamentais como princípio geral do direito europeu e consagraram vários direitos relacionados com a livre circulação na União "Européia." [08]
A professora Flávia Piovesan observa que "o Tratado de Amsterdã reitera que a União Européia deve respeitar os direitos humanos fundamentais assegurados na Convenção Européia de Direitos Humanos, bem como os direitos decorrentes das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, como princípios gerais de Direito Comunitário". [09]
No entanto, Arno Dal Ri Júnior observa algumas resistências por parte da União Européia em salvaguardar os Direitos Fundamentais. Isto se verificou, sobretudo, com a possível adesão das Comunidades Européias à Convenção Européia dos Direitos Humanos. O parecer n. 2/94, solicitado aos juízes de Luxemburgo, reflete o receio de se submeter o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias ao controle de um outro tribunal previsto pela Convenção Européia de Direitos Humanos, o que enfraqueceria a sua atuação. Além disso, uma vez frustrada a adesão da Comunidade Européia à Convenção Européia dos Direitos Humanos surge a idéia, ainda que bem intencionada, de se elaborar uma Carta de Direitos Humanos. Foi isso o que ocorreu em dezembro de 2000, através do Conselho de Nice. A União Européia apresentou, portanto, a sua Carta dos Direitos Fundamentais, porém totalmente desvinculada do Tratado da União Européia, o que denota um certo constrangimento em matéria de Direitos Humanos Fundamentais. [10]
Cumpre ressaltar que o Tratado de Amsterdam (1997) embora desvincule a União Européia da Convenção Européia de Direitos Humanos (CEDH) e da Corte Européia, reconhece os direitos consagrados por esse documento. Ademais, ainda que a União Européia fosse omissa na tutela dos Direitos Humanos Fundamentais, os europeus poderiam contar com um sistema regional para a tutela dos Direitos Humanos Fundamentais, estruturado pela Convenção Européia de Direitos Humanos (1950).
A Convenção Européia de Direitos Humanos de 1950 criou uma Comissão de Direitos Humanos e a Corte Européia de Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo. Trata-se de uma Corte muito ativa em que os Estados europeus podem ser responsabilizados por violações de diretos fundamentais. A Corte Européia disponibiliza, através da internet, inúmeros julgados envolvendo o direito à liberdade religiosa. Geralmente esses julgados envolvem um particular e um Estado (pessoa humana versus Estado). Cumpre, entretanto, mencionar a crítica de autores europeus em relação às decisões da Corte Européia de Direitos Humanos, para quem os Estados são favorecidos através da utilização da doutrina da margem de apreciação em detrimento dos direitos humanos assegurados pela Convenção de 1959. [11]
Segundo o professor Guido Soares, o continente europeu atingiu um excelente patamar de proteção dos Direitos Humanos, com o protocolo n. 11 de 1997, porquanto a Corte de Estrasburgo passou a ser competente para receber reclamações diretamente dos indivíduos que tivessem os seus direitos violados, contra qualquer Estado-parte na Convenção Européia, o que difere do sistema americano. No sistema americano (Pacto de San José da Costa Rica) inexiste essa possibilidade de acesso direto dos indivíduos, sendo que as reclamações devem ser dirigidas, primeiramente, à Comissão de Direitos Humanos. [12]
3. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS COMUNIDADES EUROPÉIAS E A CORTE EUROPÉIA DE DIREITOS HUMANOS
A pluralidade é uma das Características dos Direitos Humanos Fundamentais. Existem uma pluralidade de direitos, de textos (Cartas, Tratados e Declarações de Direitos), uma pluralidade de sistemas (instrumentos) de proteção (sistema global, regional) e, por que não dizer, uma pluralidade de Cortes e Tribunais. Predomina, assim, um pluralismo em matéria de Direitos Humanos. [13] O Direito Comunitário aumentou ainda mais esse pluralismo, pois acabou por introduzir o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e a Carta de Direitos dos Direitos Fundamentais da União Européia. Nesse, contexto, cumpre indagar como ficam as relações ente Estrasburgo e Luxemburgo, entre a Corte Européia dos Direitos Humanos e o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, entre a Convenção Européia dos Direitos Humanos e a Carta dos Direitos Humanos da União Européia e, em última análise, qual é a relação entre o Direito Internacional e o Direito Comunitário.
Segundo a juíza Françoise Tulkens:
"É então essa pluralidade que é importante consagrar, inicialmente através de uma alteração de perspectiva, e em segunda, de outras finalidades. A concepção de um Direito Internacional dos Direitos Humanos é, hoje em dia, um desafio maior ao pensamento jurídico tradicional. Esse desenvolvimento torna mais frágil, menos justa, menos adequada a maneira piramidal de pensar; poderíamos dar múltiplos exemplos. ‘Da pirâmide à rede, a hierarquia é substituída pela alternância, a subordinação pela coordenação, a linearidade pela interação, o confronto pela coexistência, a oposição altruidade e a reciprocidade. Nessa perspectiva, que é decididamente a minha, as coisas se apresentam da mesma maneira. O objetivo da uniformização se esfumaça perante as vantagens das novas finalidades, as da conciliação e da harmonização." [14]
A harmonização entre o Direito Comunitário e o Direito Internacional depende, na visão da juíza da Corte Européia dos Direitos Humanos, de uma nova visão do direito, superação da visão tradicional (sistema piramidal) que pressupõe a subordinação. Assim a coordenação e colaboração devem substituir a subordinação.
4. JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM SEDE DE DIREITOS HUMANOS
A jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias envolve, principalmente, direitos econômicos sociais e culturais, relacionados com matérias de Direito Comunitário e, também, os direitos difusos e coletivos, relacionados com o direito ambiental e do consumidor. São questões que envolvem a cidadania européia, direitos do consumidor, meio ambiente e, principalmente, a livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento.
Seguem algumas questões apreciadas pelo Tribunal de Justiça, relacionadas com os direitos fundamentais: [15]
-Acórdão C-246/99 à meio ambiente
-Acórdão Kaur (C-192-99) à Cidadania européia
-Acórdão Gravier (1985) à formação profissional
-Acórdão Bosman (1995) à livre circulação dos trabalhadores (jogadores de futebol)
-Acórdão Van Binsbergen (1974) à livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento
-Acórdão Reyners (1974) à livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento
-Acórdão Cowan (1989) à indenização/ livre prestação de serviços
-Acórdão Defrenne (1971) à igualdade de remuneração entre homens e mulheres
-Kalanke (1995) à igualdade de remuneração entre homens e mulheres
-Marschall (1997) à igualdade de remuneração entre homens e mulheres
-Francovich (1991) à responsabilidade do Estado
5. CONCLUSÃO
Embora a União Européia tenha atingido um patamar excelente no que diz respeito à proteção dos Direitos Humanos, existem alguns impasses, principalmente no que tange a coexistência de três direitos autônomos: Direito Interno, Direito Internacional e Direito Comunitário. Existe, por conseguinte, necessidade de se harmonizar uma pluralidade de normas, tribunais e juízes. A proteção da pessoa humana na União Européia depende dessa harmonização.
As perplexidades desencadeadas com os processos de harmonização e assimilação do direito comunitário só podem ser resolvidas com o passar do tempo. O novo paradigma do Direito Comunitário deve ser assimilado por Estados assimétricos, sobretudo quando se observa uma ampliação da Comunidade Européia, com a inclusão de países mais pobres.
6. BIBLIOGRAFIA
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Notas
01 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O direito internacional em um mundo em transformação, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 1083-1087.
02 SILVA, Roberto Luiz. Direito internacional público, 2ª. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 391.
03 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit., p. 1086.
04 Cf. DAL RI JÚNIOR, Arno. O Dilema dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais no Sistema Jurídico Comunitário e na União Européia. In: Revista Seqüência, nº 43, Florianópolis-SC, 2001, pp. 147-148.
05 DAL RI JÚNIOR, Arno. O Dilema dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais no Sistema Jurídico Comunitário e na União Européia. In: Revista Seqüência, nº 43, Florianópolis-SC, 2001, pp. 148-150.
06 DAL RI JÚNIOR, Arno. Idem, 150-151.
07 Cf. SILVA, Roberto Luiz. Direito Econômico Internacional e o Direito Comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, pp. 171-182.
08 Site oficial da União Européia. Disponível em: <http://europa.eu.int/abc/rights_pt.htm>. Acessado em 07 de setembro de 2002.
09 PIOVESAN, Flávia. Globalização econômica, integração regional e direitos humanos. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional (PIOVESAN, Flávia –ORG) São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 53.
10 Cf. DAL RI JÚNIOR, Arno. O Dilema dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais no Sistema Jurídico Comunitário e na União Européia. In: Revista Seqüência, nº 43, Florianópolis-SC, 2001, pp. 153-163.
11 Nesse sentido, vide GUERREIRO, Sara. As fronteiras da tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na convenção européia dos direitos do homem. Coimbra: Almedina, 2005, pp. 249 e ss.
12 SOARES, F. S. Guido. União Européia, Mercosul e a proteção dos direitos humanos. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional (PIOVESAN, Flávia –ORG) São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 127-128.
13 Cf. TULKENS, Françoise e CALLEWAERT, Johan. A carta dos direitos fundamentais da união européia: o ponto de vista de uma juíza da Corte Européia de Direitos Humanos. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional (PIOVESAN, Flávia –ORG) São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 188.
14 TULKENS, Françoise e CALLEWAERT, Johan. A carta dos direitos fundamentais da união européia: o ponto de vista de uma juíza da Corte Européia de Direitos Humanos. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional (PIOVESAN, Flávia –ORG) São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 189.
15 Cf. site oficial da União Européia. Disponível em < http://curia.eu.int/pt/pres/cjieu.htm >. Acessado em 07 de setembro de 2002.