Introdução
Há bastante tempo já se descobriu que não há como preservar os direitos fundamentais sem limitar os poderes do Estado. Com o tempo, porém, essa construção revelou-se insuficiente para o fim a que se destinava. Percebeu-se que não basta que o Estado se abstenha de violar tais direitos. Também deve protegê-los.
O princípio da proporcionalidade, que já foi estudado com profundidade como "proibição do excesso", tem outra vertente, ainda pouco debatida, que se traduz pela fórmula "proibição de proteção deficiente".
Este artigo buscará demonstrar que o princípio da proibição da proteção insuficiente tem amparo jurisprudencial e doutrinário no Brasil. Depois, irá analisar a utilização do postulado, enquanto critério hermenêutico, no âmbito da Jurisdição.
A leitura do ordenamento jurídico a partir dos princípios: pós-positivismo e as novas diretrizes hermenêuticas do direito.
O positivismo jurídico vem bem representado no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual, em caso de omissão legislativa, o juiz deve se valer da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito. Para a LICC, os princípios têm aplicação subsidiária: devem ser invocados em caso de lacuna da lei.
Hoje, porém, fala-se em uma corrente chamada pós-positivista, que eleva os princípios a outro patamar. Tanto a lei como os princípios seriam espécies do gênero norma jurídica. Essas duas espécies teriam o mesmo grau de normatividade e a mesma força vinculante.
O pós-positivismo tem sido encarado como o eixo filosófico do novo direito constitucional1. Para essa doutrina, uma vez que o Estado reconheceu a supremacia da Constituição na estrutura normativa nacional, terminou o período de vida do positivismo jurídico, para o qual a jurisdição tinha como tarefa aplicar a lei na forma em que concebida pelo legislador, sem questionar o seu conteúdo2.
Nas palavras de Ferrajoli, "a jurisdição já não é mais a simples sujeição do juiz à lei, mas também análise crítica de seu significado como meio de controlar sua legitimidade constitucional"3.
Alguns autores já começam a falar em um movimento chamado neoconstitucionalismo. "O neoconstitucionalismo exige a compreensão crítica da lei em face da Constituição, para ao final fazer surgir uma projeção ou cristalização da norma adequada, que também pode ser entendida como `conformação da lei´"4.
A grande novidade dessa visão está na idéia de que o juiz não mais se limitaria a aplicar a lei: passaria a construir o seu conteúdo. "A obrigação do jurista não é mais apenas a de revelar as palavras da lei, mas sim a de projetar uma imagem, corrigindo-a e adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais"5.
Nesse quadro, os princípios constitucionais, que traduzem um sistema de valores6, passam a ser tratados como direito7 e vinculam toda a hermenêutica jurídica.
O princípio da proporcionalidade no contexto pós-positivista
Para viabilizar essa nova forma de interpretação do direito, tem fundamental importância a construção doutrinária que resultou no princípio da proporcionalidade8.
Ordinariamente, apontam-se no referido princípio duas grandes funções. Pela primeira, a idéia da proporcionalidade se destina a proteger os direitos fundamentais contra os abusos cometidos pelo Estado no exercício de suas atribuições, inclusive contra os abusos legislativos9. Pela segunda, o princípio da proporcionalidade também é tido como um método para solucionar colisões entre princípios constitucionais, conforme os interesses envolvidos no caso concreto. Nas palavras de Paulo Bonavides, "uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos"10.
A discussão acerca da eficácia dos direitos fundamentais determinando o grau de importância do princípio da proporcionalidade
A jurisprudência brasileira entende que "os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados" (STF, RE 201.819, Ellen Gracie, 27.10.2006).
Trata-se de opção pela doutrina que reconhece a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, na forma concebida pela jurisprudência alemã11. Ou seja, os direitos fundamentais incidem não apenas nas relações verticais (Estado e indivíduo), mas também têm aplicação nas relações horizontais (indivíduo e indivíduo)12.
A adesão à doutrina da eficácia horizontal tem especial conseqüência quanto ao princípio da proporcionalidade, tornando-o imprescindível. Sim, porque, a partir do momento em que se reconhece a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre dois indivíduos, fatalmente haverá inúmeros casos de colisão entre direitos fundamentais. Tal circunstância torna necessário o princípio da proporcionalidade. Como lembra Dieter Grimm, "(...) é difícil imaginar outro meio de resolver conflitos entre direitos diferentes senão com recurso à proporcionalidade e à ponderação"13.
O princípio da proporcionalidade entendido como proibição de proteção deficiente
De tudo o que foi dito, resulta que o princípio da proporcionalidade tem importância central no direito brasileiro. Não é sem razão que a jurisprudência, sobretudo a do Supremo Tribunal Federal, invoca o postulado à exaustão14.
Mas, se a finalidade é manter íntegros os direitos fundamentais, não apenas evitando a violação desses direitos, mas também os protegendo, com prestações não meramente negativas, mas também positivas, deve-se passar a aplicar a idéia da proporcionalidade também com o sentido de proibição de proteção insuficiente.
Na Alemanha, esses dois flancos da atuação estatal – proibição do excesso e proibição de omissão – já são fundamentados há algum tempo pela idéia da proporcionalidade, que "se consolidou como uma técnica para decidir casos que envolvam direitos fundamentais clássicos. Com exceção da dignidade humana (Art. 1 da Grundgesetz [Lei Fundamental]), que é considerada uma fonte para todas as garantidas que se seguem na Declaração de Direitos, a Corte Constitucional alemã não reconhece uma hierarquia de direitos fundamentais. Na ausência de tal hierarquia é difícil imaginar outro meio de resolver conflitos entre direitos diferentes senão com recurso à proporcionalidade e à ponderação. Se isso é verdade, a proibição de ir longe demais (Übermaβverbot) e a proibição de fazer muito pouco (Untermaβverbot) são o mesmo mecanismo, visto por diferentes ângulos"15.
Por essa visão, o princípio da proibição de proteção insuficiente também vincularia o legislador, conforme o magistério de Gilmar Ferreira Mendes: "O conceito de discricionariedade no âmbito da legislação traduz, a um só tempo, idéia de liberdade e de limitação. Reconhece-se ao legislador o poder de conformação dentro de limites estabelecidos pela Constituição. E, dentro desses limites, diferentes condutas podem ser consideradas legítimas. Veda-se, porém, o excesso de poder, em qualquer de suas formas (Verbot der Ermessensmissbrauchs; Verbot der Ermessensüberschreitung). Por outro lado, o poder discricionário de legislar contempla, igualmente, o dever de legislar. A omissão legislativa (Ermessensunterschreitung; der Ermessensmangel) parece equiparável, nesse passo, ao excesso de poder legislativo"16.
Nessa mesma linha, as palavras de Carlos Bernal Pulido: "A segunda variável do princípio da proporcionalidade, que também se aplica para controlar a constitucionalidade da legislação penal, mas desde o ponto de vista da satisfação das exigências impostas pelos direitos de proteção, é a proibição de proteção deficiente (...) Este princípio se aplica para determinar se as omissões legislativas, que não oferecem um máximo nível de asseguramento dos direitos de proteção, constituem violações destes direitos. Quando se interpretam como princípios, os direitos de proteção implicam que o legislador lhes outorgue prima facie a máxima proteção. Se este não é o caso – pelo contrário, o legislador protege um direito somente de maneira parcial ou deixa de protegê-lo por completo – a falta de proteção ótima deve ser avaliada então desde o ponto de vista constitucional mediante a proibição de proteção deficiente"17.
O princípio da proibição de proteção deficiente na Alemanha: estudo de caso
O Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF) tem inúmeros precedentes em que adere a essa ótica. Disso é exemplo a posição que foi firmada quando, por meio da 5ª Lei de Reforma do Direito Penal, de 18 de junho de 1974, tornou-se lícito na Alemanha o aborto praticado por médico com a concordância da gestante, desde que realizado em até doze semanas após a concepção. A Câmara Federal alemã ajuizou ação de controle normativo abstrato contra o dispositivo. O TCF declarou a regra nula.
Nessa famosa decisão, proferida no ano de 1975, o Tribunal, primeiramente, deslocou a questão dos direitos do nascituro para o quadrante dos direitos fundamentais. Colhe-se do julgado:
"O dever do Estado, de proteger a vida humana, pode ser derivado já diretamente do Art. 2 II 1 GG. Ele também resulta de norma expressa do Art. 1 2 GG, pois a vida em desenvolvimento desfruta também da proteção do Art. 1 I GG, que garante a dignidade humana. Onde houver vida humana, caberá a dignidade humana. Não importa se o titular desta dignidade tem [ou não] dela consciência, sabendo como preservá-la por si mesmo. As potenciais capacidades inerentes ao ser humano são suficientes para fundamentar a dignidade humana"
Depois, decidiu por impor ao legislador a obrigação de sancionar criminalmente o aborto praticado, sem motivo justificante, durante a gestação. Na ótica da Corte, o Parlamento teria violado o princípio da proibição de proteção deficiente:
"Em caso extremo, se, a saber, a proteção ordenada constitucionalmente não puder ser alcançada de outra maneira, o legislador é obrigado a valer-se dos instrumentos do direito penal para garantir a vida em desenvolvimento."
O princípio da proibição de proteção deficiente no Supremo Tribunal Federal
No julgamento do RE nº. 418.376-5, datado de 09.02.06, o princípio em análise foi debatido pelo Plenário do STF. O caso era de uma menina que, dos nove aos doze anos de idade, mantivera relações sexuais com seu tutor, estendendo-se o crime até quando engravidou, momento em que iniciou uma união estável com seu agressor.
O réu, alegando a união estável que mantinha com a vítima, pretendia ver decretada a extinção de sua punibilidade, com base no art. 107, VII, CP, vigente ao tempo dos fatos. Invocava, da mesma forma, a norma do art. 226, CF, segundo a qual a família é a base da sociedade, estando protegida pelo Estado.
O Ministro Marco Aurélio, relator, assim delineou o problema, apontando no princípio da proporcionalidade o eixo para sua solução:
"Quanto ao confronto de valores, cumpre deliberar se o mais importante para o Estado é a preservação da família ou o remédio para a ´ferida social` causada pelo insensato intercurso sexual, dada a idade da jovem"
O Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, explicitando sua posição, que foi vencedora no acórdão, decidiu por impor a sanção penal ao réu, ao fundamento de que:
"De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico".
E, acerca do princípio da proporcionalidade, disse:
"Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental.
(...)
Conferir à situação dos presentes autos o status de união estável, equiparável a casamento, para fins de extinção da punibilidade (nos termos do art. 107, VII, do Código Penal) não seria consentâneo com o princípio da proporcionalidade no que toca à
proibição de proteção insuficiente Isso porque todos os Poderes do Estado, dentre os quais evidentemente está o Poder Judiciário, estão vinculados e obrigados a proteger a dignidade das pessoas"
Como se vê, o princípio da proibição de proteção insuficiente não apenas vincula o legislador, mas também dá ao intérprete da lei instrumental para determinar que o Estado atue com maior rigor e efetividade em favor dos direitos fundamentais.
Conclusão
A constatação de que a proibição de proteção deficiente compõe o princípio da proporcionalidade é fundamental para que este postulado seja compreendido com coerência: às vezes, não é pelo excesso, mas pela fragilidade da reprimenda que o Estado ofende os direitos fundamentais.
Tendo isso em conta, e especialmente o fato de que a jurisprudência brasileira enveredou-se por uma diretriz consentânea com os referidos princípios, o Poder Judiciário passa a ter, na idéia da proporcionalidade, novas possibilidades hermenêuticas aptas a viabilizar a projeção do conteúdo principiológico da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico.
Cabe, aqui, a título de advertência, a verificação feita por Dieter Grimm: "Não pode haver dúvida de que, em conseqüência desse desenvolvimento, o Legislativo perde poder. Para ser exato, ele perde o poder de permanecer inativo em face de um perigo manifesto para um direito fundamental ou o poder de preterir grosseiramente um interesse constitucional protegido em favor de outro. O poder perdido pelo legislador é ganho pela Corte Constitucional"20.
De fato, não é possível desatrelar os temas surgidos da era pós-positivista, como é o caso do princípio da proporcionalidade, de preocupações relativas à separação dos Poderes, à ordem democrática e aos limites da jurisdição. É a pergunta: até que ponto o Poder Judiciário, que não é eleito, tem legitimidade para a construção do direito?
É por isso que esse novo quadro deve trazer, além de entusiasmo, a intensificação dos estudos sobre a interpretação das normas. Para que o arbítrio não tome o lugar da hermenêutica.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 Barroso, Luís Roberto, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito, A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 207.
2 Ferrajoli, Luigi, Pasado y futuro del Estado de derecho. In: Miguel Carbonell (org.), Neoconstitucionalismo, 2003, pp. 14-17.
3 Ferrajoli, Luigi, Derechos y garantias – La ley del más débil, Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 68.
4 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 46.
5 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 45.
6 Rudolf Smend, Constituición y derecho constitucional, p. 232-233.
7 Bonavides, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 9a edição, Malheiros, 2000, p. 237.
8 postulado que, segundo muitos autores e o Supremo Tribunal Federal, estaria positivado, localizando-se no art. 5º, LIV, da CF. Nesse sentido: SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 95.
9 Essa idéia foi consagrada pelo próprio STF, conforme se lê no julgamento da ADIMC-1407/DF, CELSO DE MELLO, DJ 24.11.00.
10 Bonavides, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 9a edição, Malheiros, 2000, p. 386.
11 SCHWABE, Jüngen. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 270.
12 Nos Estados Unidos, entende-se de forma diferente, conforme se colhe de trecho do voto do Chief Justice Rehnquist em DeShaney vs. Winnebago County Department of Social Services, 489 U.S. 189 (1989): "Nada na linguagem do devido processo legal exige do Estado que proteja a vida, liberdade e propriedade dos cidadãos contra invasões praticadas por agentes privados (...) O propósito dessa cláusula é apenas proteger as pessoas contra o Estado, não assegurar que o Estado proteja umas das outras."
13 GRIMM, Dieter, A Função Protetiva do Estado, A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 162.
14 Aponta-se como leading case o julgamento da ADI-MC 855 / PR, DJ 01-10-1993.
15 Grimm, Dieter, A Função Protetiva do Estado, A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 162.
16 Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 247-48
17 Pulido, Carlos Bernal, O Princípio da Proporcionalidade na Legislação Penal, A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 826/827.
18 SCHWABE, Jüngen. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 270.
19 SCHWABE, Jüngen. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 171.
20 Grimm, Dieter, A Função Protetiva do Estado, A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 164.