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Aspectos controversos da interrupção do fornecimento de energia elétrica por falta de pagamento

Aspectos controversos da interrupção do fornecimento de energia elétrica por falta de pagamento

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O usuário inadimplente não pode exigir a prestação ininterrupta do serviço em face do descumprimento culposo da obrigação, sob pena de enriquecimento ilícito.

1. INTRODUÇÃO

A noção de serviço público essencial e a possibilidade de sua interrupção tem sido objeto de longas controvérsias, tanto doutrinárias, quanto jurisprudenciais. Em razão da indefinição do aspecto da "essencialidade" inerente ao serviço, socorre-se com frequência à conceituação projetada pela Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, ao regulamentar o exercício do direito de greve. Em relação ao fornecimento de energia elétrica, dada a importância econômica, social e política que representa, a discussão não escapou à acirrada disputa judicial entre concessionárias e usuários do serviço, dentre eles consumidores individuais, entidades públicas e privadas.

Nesse contexto, o presente trabalho pretende expor os principais fundamentos e divergências da doutrina e jurisprudência em relação à possibilidade de interrupção do serviço público de fornecimento de energia elétrica aos usuários inadimplentes, sejam eles particulares ou entes de direito público.


2. O FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO SERVIÇO PÚBLICO

Uma vez que o Estado chamou para si a incumbência de fornecer energia elétrica aos destinatários, isto é, a entrega do bem móvel eletricidade ao universo de usuários (consumidores, indústrias e estruturas do próprio Poder Público), erigiu-a à categoria do gênero "serviços públicos", conforme art. 175, "caput", da Lei Maior. São, pois, atividades desenvolvidas pelo Estado com vistas a atender necessidades coletivas, essenciais ou não, mas que importam em prejuízo inestimável à sociedade caso não sejam prestadas, ou se exploradas ao sabor da iniciativa privada.

Salvo ausência de outorga normativa, esses serviços podem ser executados por terceiros (concessionários, permissionários ou autorizatários), mas sob a fiscalização ininterrupta do Poder Público. Nesse sentido, José dos Santos Carvalho Filho, com inegável acerto, assevera que serviço público é "toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob o regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade". [01]

Nem toda atividade, porém, pode ser considerada como "serviço público", mas somente aquelas designadas a suprir oportunamente as conveniências da sociedade, ainda que, em última análise, venha atender concomitantemente a interesses individuais. Na opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello, "a enumeração dos serviços que o Texto Constitucional considera públicos não é exaustiva". [02]

A principal consequência de se atribuir uma dada atividade como serviço público, evidentemente, é a sua sujeição ao regime jurídico de Direito Público. Surge daí uma série de regramentos próprios que se diferem do cotidiano das relações privadas, a exemplo do regime das concessões e permissões travado entre Poder Concedente e concessionário ou permissionário da atividade explorada. No mesmo rumo, todo o arcabouço de princípios corolários do Direito Público deve nortear a prestação dos serviços, em especial aqueles dirigidos à prestação dos serviços públicos: supremacia do interesse público sobre o privado, adaptabilidade ou atualização, universalidade, impessoalidade, continuidade.

Atualmente, tem-se adotado a divisão didática proposta por Hely Lopes Meirelles entre "serviço público essencial ou propriamente dito" e "serviço de utilidade pública", espécies, portanto, do gênero "serviço público". O primeiro reflete o conjunto de atividades desempenhadas diretamente pelo Poder Público, sem a interferência de terceiros, para o atendimento de necessidades gerais e inadiáveis da coletividade, tamanha a sua essencialidade (v.g., defesa nacional, segurança pública). De outro lado, serviço de utilidade pública é aquele que, embora de grande valia para a sociedade, não se presta a satisfazer interesses gerais de primeira necessidade, mas somente interesses secundários e individuais, cuja execução pode ser delegada a terceiros (v.g., transporte coletivo, abastecimento de gás, telefonia, energia elétrica). [03] Entretanto, esta delegação não retira o caráter público do serviço, uma vez que o terceiro, enquanto executor da atividade, o faz em nome do Poder Público ou com o consentimento deste.

Em relação à energia elétrica, esta pode ser alocada no conceito de "serviço de utilidade pública", eis que objetiva satisfazer, via de regra, um interesse particular do indivíduo mediante remuneração. Portanto, perfeitamente admissível a sua prestação por meio de terceiros delegados, submetidos, em qualquer caso, à atuação fiscalizadora do Poder Público, através de sua Agência Reguladora.


3. NATUREZA JURÍDICA DA REMUNERAÇÃO: TAXA, TARIFA OU PREÇO PÚBLICO?

Os serviços gerais, também chamados coletivos ou "uti universi", são prestados a uma massa indeterminada de destinatários, sem que haja uma identidade específica de quem está sendo beneficiado com a sua prestação, como, por exemplo, o serviço de iluminação pública e de segurança pública. Acrescente-se que, justamente por se tratar de um serviço geral, inexiste direito subjetivo à sua prestação, consoante anotou Hely Lopes Meirelles: "esses serviços satisfazem indiscriminadamente a população, sem que se erijam em direito subjetivo de qualquer administrado à sua obtenção". [04] Como o alvo final dos serviços gerais é a coletividade como um todo, não seria possível a sua divisão em quotas partes, tampouco a aferição do "quantum" que cada integrante da sociedade recebeu. Por isso, diz-se que a remuneração desses serviços ocorre mediante o pagamento de tributo geral.

De outro lado, os serviços individuais, também designados singulares ou "uti singuli", caracterizam-se por serem fruídos por usuários determinados, passíveis, portanto, de identificação. Nesse sentido, a prestação do serviço visa atender a um interesse particular, na medida em que o usuário pode ou não dele se utilizar, conforme sua conveniência. É possível, ainda, constatar qual parcela do serviço disponibilizado foi auferida pelo destinatário, extraindo-se daí a sua divisibilidade. Para essa situação a remuneração poderia se dar através de taxa (tributo específico), ou por preço público na modalidade de tarifa.

A taxa corresponde a uma espécie de tributo em que o fato gerador advém do exercício regular do poder de polícia do Estado ou, ainda, da prestação de um serviço público específico e divisível, prestado diretamente ao contribuinte ou posto à sua disposição, ainda que este não o utilize efetivamente (art. 145, II, da CF, e art. 77, do CTN). Com efeito, uma vez instituída a taxa por um Ente Federado, o seu pagamento é obrigatório para todos os contribuintes, desde que estejam no raio de alcance da disponibilidade do serviço a ser remunerado. Assim, o pagamento da taxa é sempre devido quando a utilização do serviço é compulsória, mesmo no caso em que não há efetiva fruição deste pelo contribuinte, mas pelo simples fato de poder utilizá-lo quando lhe for conveniente (v.g., serviço de esgoto, coleta de lixo).

Quando a utilização do serviço público não é compulsória, todavia, a remuneração do serviço é feita mediante tarifa ou preço público, restando excluída, portanto, a hipótese de pagamento por espécie tributária (taxa). Corroborando com o entendimento, Hugo Machado de Brito explica que,se a ordem jurídica não obriga a utilização do serviço público, posto que não proíbe o atendimento da correspondente necessidade por outro meio, então a cobrança da remuneração correspondente não ficará sujeita às restrições do sistema tributário. [05]

Neste caso, o pagamento pela prestação do serviço apenas é devido na hipótese do seu efetivo uso. Vale dizer, enquanto o destinatário não se beneficia, de fato, do serviço que lhe foi disponibilizado, não está sujeito à obrigação de pagar pelo não consumido. São exemplos tradicionais dessa modalidade de serviço singular o fornecimento de energia elétrica, de telefonia e de transporte urbano.


4. O SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Como a maioria dos serviços públicos, o fornecimento de energia elétrica também visa atender necessidades básicas da população, servindo-lhe de instrumento à garantia de qualidade de vida, num sentido mais amplo. Não obstante, o art. 170, "caput", da CF, assegura como princípio geral da atividade econômica a garantia à "existência digna, conforme os ditames da justiça social". Por isso, todo empreendimento deve proporcionar mecanismos de compensação às desigualdades geradas pelo sistema capitalista (art. 170, VII, da CF), em respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).

Não se deve perder de vista que a falta de energia elétrica pode acarretar danos não só na órbita patrimonial dos indivíduos, mas também enseja, algumas vezes, redução na sua qualidade de vida. Nesse aspecto, José Afonso da Silva acrescenta que:

Um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais para viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta e a miséria. [06]

Com efeito, quando a supressão do serviço público puder causar mácula à digna sobrevivência dos administrados, invadindo a sua esfera pessoal de direitos, a atividade econômica deverá suportar as medidas necessárias à manutenção daqueles princípios informadores da ordem constitucional. Em outras palavras, as concessionárias, em articulação com o Poder Público, devem propor alternativas concretas ao equilíbrio entre interesse econômico e justiça social, a exemplo do emprego das chamadas "tarifas sociais", com preços reduzidos à proporção do volume de consumo de energia.

O serviço público de energia elétrica tem o condão de proporcionar o desenvolvimento de outras atividades consideradas essenciais que são prestadas à coletividade, portanto, capaz de ratificar a proteção de interesses plurissubjetivos. Nesse esteio, a manutenção das estruturas e equipamentos hospitalares, praças públicas ou escolas, por exemplo, certamente dependerá da qualidade, adequação, eficiência e segurança com que é fornecido o serviço de energia elétrica.


5. FUNÇÃO SOCIAL DO SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA

Como corolário da atividade econômica, a exploração do serviço público de fornecimento de energia elétrica fica sujeita às distorções do sistema capitalista e, por isso, o Ordenamento Jurídico cuida de estabelecer alguns parâmetros a serem observados quando de sua execução. O principal limite, senão a sua razão de ser, reflete a função social que está inserida nos empreendimentos de um modo geral e, com maior intensidade, nos serviços públicos.

Ao disciplinar a ordem econômica e financeira, a Constituição Republicana fez expressa ressalva ao cumprimento da função social, que não se limita à propriedade privada, estendendo-se às atividades econômicas desenvolvidas pelos particulares ou pelo Estado. Vale dizer, "a Constituição não estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade privada, princípio também da ordem econômica e, portanto, sujeita, só por si, ao cumprimento daquele fim" [grifo do autor]. [07] Essa conclusão, ademais, encontra fundamento na aplicação do princípio da função social da propriedade anunciado no art. 5º, XXIII e no art. 170, III, da CF.

Atraindo para si a responsabilidade para a prestação de determinados serviços, o Estado retirou-os da livre iniciativa privada, permitindo sua execução indireta somente em circunstâncias especiais e sob sua fiscalização e regulação, objetivando resguardar aquele segmento econômico das mazelas da exploração econômica. Notadamente, a finalidade precípua do serviço público não é garantir uma rentabilidade ao Estado, mas assegurar que determinadas atividades reputadas como relevantes serão colocadas à disposição da sociedade. Nesse sentido, há quem considere tratar-se de "direitos cívicos, de conteúdo positivo, consistentes no poder de exigir da Administração ou de seu delegado o serviço que um ou outro se obrigou a prestar individualmente aos usuários". [08]

O fornecimento de energia elétrica, então, cumpre com a sua função social ao satisfazer às necessidades essenciais da população, de modo adequado, eficiente e contínuo. Essa satisfação, entretanto, não é absoluta do ponto de vista individual, sendo suficiente que o serviço seja ofertado, porém, atendidas as exigências de adequação, eficiência, segurança, atualidade, generalidade e modicidade das tarifas, conforme exige o art. 6º, "caput" e § 1º da Lei nº 8.987/95, combinado com o art. 22, "caput", do CDC. Por outro lado, se o serviço interessa a toda a sociedade genericamente considerada, não só a disponibilidade, mas a sua contínua prestação deve ser garantida pela norma regente, máxime da primazia do interesse público.

A Constituição Federal de 1988, entretanto, silenciou a respeito de uma definição de "serviço público essencial", tarefa que coube ao legislador ordinário suprir (art. 9º, § 1º, da CF), conformando-se a realidade fática com o propósito teleológico da Lei Maior. [09] Nesse contexto, a Lei nº 7.783/89, ao disciplinar o exercício do direito de greve, é o diploma normativo que mais se aproxima de uma definição legal de serviços essenciais, por analogia.

Observe-se que, tamanha a relevância desses serviços para a sociedade e para o Estado, até mesmo o exercício do direito de greve constitucionalmente assegurado no art. 9º, "caput", da Constituição Republicana, pode ser limitado com vistas à preservação, ainda que parcial, daquelas atividades, em especial a "produção e distribuição de energia elétrica" (art. 10, I, da Lei nº 7.783/89). Em análise acurada acerca dos aspectos jurídicos e econômicos atinentes ao exercício do direito de greve, o Professor Ronald Amorim e Souza acrescenta que "a qualidade é algo de desejável em qualquer serviço, essencial ou não, mas o objetivo da lei é assegurar o serviço, ainda que de qualidade sofrível, mas o bastante para suprir a falta capaz de causar prejuízo irreparável à população". [10]

Parte da doutrina contemporânea, acompanhada por Henrique Macedo Hinz, tem afirmado que o rol de serviços ou atividades essenciais descritas no art. 10, da Lei nº 7.783/89 é exaustivo, [11] posto disciplinar limitação ao exercício de um direito social constitucionalmente assegurado, para a qual enseja uma interpretação restrita. De outro lado, é possível questionar que não só aqueles, mas também outros serviços cuja supressão possa acarretar "perigo iminente a sobrevivência, a saúde, ou a segurança da população", podem ser concebidos como essenciais, com fundamento no art. 11, § único, da Lei nº 7.783/89. A propósito, Arnaldo Süssekind adota posição semelhante, lecionando que:

Em princípio, esse elenco parece exaustivo; mas, em face do estatuído no aludido parágrafo, qualquer outro serviço ou atividade cuja paralisação coloque ‘em perigo iminente a sobrevivência a saúde ou a segurança da população’ deve ser, igualmente, enquadrado entre os essenciais, que não devem ser interrompidos. [12]

"Contrario sensu", a interpretação também pode ser feita por outro ponto de vista: embora o serviço esteja arrolado dentre as hipóteses em que é formalmente considerado essencial, se não houver "perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população" em função de sua interrupção, não há essencialidade na sua prestação. Assim, quando o serviço de fornecimento de energia elétrica é prestado "uti singuli", cujo usuário é individualmente beneficiado, a descontinuidade do seu fornecimento não fere a proibição consignada na Lei nº 7.783/89, já que não afeta, de regra, a incolumidade da população.

Diferentemente, em sendo o serviço prestado a uma coletividade indistinta, a ruptura na continuidade de sua prestação tem a potencialidade de causar danos de repercussão incalculável à sociedade, logo, a sua interrupção não pode prevalecer. Outrossim, ainda que o serviço de energia elétrica seja prestado individualmente a um determinado usuário, quando a atividade por ele desenvolvida serve-se ao interesse público, v.g., hospitais, unidades de tratamento de água e esgoto, controle de tráfego aéreo (art. 94, § único, da Resolução nº 456/00, de 29 de novembro de 2000, elaborada pela ANEEL), deve ser vedada a interrupção em virtude do caráter essencial que exprime.

Em síntese, pode-se dizer que a tutela jurídica do serviço público de fornecimento de energia elétrica perpassa pela função social a ela subjacente, em especial com a aferição, no caso concreto, da essencialidade do serviço em questão, com arrimo no art. 10, I, combinado com o art. 11, "caput" e § único, da Lei nº 7.783/89.


6. O SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA NA RELAÇÃO DE CONSUMO

A prestação do serviço público de fornecimento de energia elétrica também está sujeita à disciplina do Código de Defesa do Consumidor, mormente quando vislumbrada a presença do fornecedor – seja ele o próprio Poder Público ou o particular que age em seu nome – e do usuário final beneficiado com a atividade (art. 2º, "caput" e parágrafo único, do CDC). Ademais, o seu fornecimento mediante concessão, permissão ou autorização não afasta a qualidade de fornecedor do terceiro prestador do serviço, salvo quando a energia provida integra a cadeia produtiva daquele que aparentemente seria o destinatário da operação.

Essa conjuntura, porém, distingue-se da relação firmada entre o Poder Público concedente e o particular responsável pela prestação direta do serviço de utilidade pública, regida preponderantemente pelas normas e princípios de Direito Público. se, assim, uma relação triangular em que figuram como sujeitos o Poder Público concedente, a concessionária prestadora do serviço, e o consumidor destinatário final daquele serviço colocado à sua disposição.

6.1. A NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO DA RELAÇÃO ENTRE PODER CONCEDENTE E CONCESSIONÁRIA

O primeiro liame da relação jurídica estabelecida no fornecimento de energia elétrica é aquela em que se verifica a delegação da prestação do serviço pelo Poder Público ao terceiro executor da atividade (também chamado de distribuidor). De acordo com o que prescrevem os arts. 21, XII, e 175, da CF, a exploração de determinados serviços, inclusive o de fornecimento de energia elétrica, sujeita-se ao regime de concessão, autorização ou permissão e, em qualquer caso, será precedido de procedimento licitatório. Retira-se daí o fundamento constitucional de que a relação entre o Poder Público e o terceiro delegatário está disciplinada essencialmente pelo Direito Público. [13] Nesse sentido, a relação sob enfoque submete-se à disciplina da Lei nº 8.987/95, que regulamenta as normas gerais para a concessão e permissão dos serviços públicos.

A titularidade do serviço público está reservada ao Poder Público obrigado a disponibilizá-lo à sociedade. Assim, a promoção do serviço corre a cargo do Estado, uma vez que este se arvorou da responsabilidade de ofertar as atividades consideradas substanciais para o desenvolvimento social. Não se confunde, porém, com a titularidade da prestação, que poderá ser transferida a um particular quando o interesse público assim o exigir. São atividades econômicas em que a presença direta do Estado pode não ser a solução mais apropriada, sob pena de tornar a prestação do serviço ineficiente, ao revés do que exige o art. 37, "caput", da CF.

Para isso, atribui-se ao particular a responsabilidade pelos riscos inerentes ao desempenho do serviço como em qualquer outra atividade empresarial, v.g., custos operacionais, encargos sociais e tributários, remuneração de mão de obra, obrigações perante terceiros.

Consoante determinado no art. 175 da CF, combinado com o art. 14 da Lei nº 8.987/95, e art. 2º da Lei nº 8.666/93, a titularidade da execução pode ser alvo de delegação a um terceiro estranho à estrutura do Estado, desde que entabulada por prévia licitação. A exigência do procedimento preparatório, ademais, objetiva a escolha da proposta que melhor atenda ao interesse público para, ao final, concluir-se num contrato administrativo.

Sabendo-se de antemão que a relação jurídica constituída entre o Estado e a concessionária de energia elétrica reveste-se das prerrogativas de Direito Público, não é demais destacar que a variação abrupta nos encargos ou obrigações estabelecidas no contrato administrativo poderá ensejar a readaptação destas à realidade concreta, tal como previsto no art. 9º, §§ 2º e 4º, da Lei nº 8.987/95. Surge daí a necessidade de perfazer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, isto é, a estabilização da "relação entre os encargos fixados no ato concessivo e o lucro então ensejado ao concessionário". [14]

Assim, com fulcro no princípio da proporcionalidade, resguarda-se a intangibilidade da cláusula econômica do contrato, materializada num núcleo imutável que deve se estender durante a vigência do ajuste. Do contrário, estar-se-ia ratificando o enriquecimento ilícito do Erário Público em detrimento da justa remuneração ao concessionário pela entrega do objeto pactuado (fornecimento de energia elétrica).

6.2. A NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO DA RELAÇÃO ENTRE CONCESSIONÁRIA E USUÁRIO

A outra extremidade do liame formado na prestação dos serviços públicos é a que envolve a figura do executor da atividade que age em nome do Estado e o usuário do serviço. Há quem entenda que o vínculo estabelecido entre concessionário ou permissionário fornecedor de eletricidade e o respectivo usuário do serviço caracteriza-se como um "contrato especial de venda de energia", regido pelas disposições do Direito Privado, restando afastada a hipótese de um contrato administrativo. [15] De acordo com esse entendimento, a parte contratada (prestador do serviço) se comprometeria em fornecer regularmente a eletricidade ao beneficiário-contratante (usuário final), este obrigado a pagar pela quantia de energia consumida.

Por se tratar de um contrato bilateral, seriam aplicáveis as disposições do Código Civil, em especial a hipótese de recusa à prestação da obrigação por uma das partes quando a outra não cumprir o pactuado, conforme previsto nos arts. 476 e 477, do CC/2002. Desse modo, a lesão decorrente do inadimplemento ensejaria resolução contratual com a respectiva indenização por perdas e danos.

Raul Luiz Ferraz Filho e Maria do Socorro Patello de Moares compartilham da mesma interpretação, e lecionam que o fornecimento de energia elétrica envolve necessariamente um negócio jurídico de natureza privada, para cuja validade exige-se agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. [16]

Por outro lado, a aplicação das disposições do Código Civil aos contratos de fornecimento de energia elétrica não afasta a incidência das normas de proteção ao consumidor, em inevitável atenção ao art. 5º, XXXII, da CF, bem como ao art. 48, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Uma vez inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais, a defesa do consumidor assume a feição de norma-princípio, cuja existência vincula o legislador, a Administração Pública e o Poder Judiciário no exercício de suas funções.

No mesmo sentido, o art. 170, V, da CF, elege como princípio da ordem econômica a defesa do consumidor, de cuja observância obriga não só o Poder Público, mas também o particular, enquanto agente de interferência no cenário econômico. Note-se que o dispositivo em referência afina-se com o texto do "caput" do art. 170, vez que, embora a iniciativa privada seja livre na sua origem, o seu exercício encontra limite no respeito à defesa do consumidor.

No fornecimento de energia elétrica, destarte, verifica-se que o objeto da relação é a prestação de um serviço, porém, com a característica peculiar que é a sua utilidade pública. O concessionário ou permissionário, nesse caso, funciona como fornecedor-intermediário em relação ao usuário-consumidor final, visto que desenvolve atividade de distribuição ou, mais precisamente, de prestação de serviços. Caracteriza-se aí a relação de consumo entre fornecedor e consumidor nos moldes dos arts. 2º e 3º, do CDC.

Consoante definido no art. 3º, § 2º, do CDC, entende-se por serviço toda e qualquer atividade prestada ao mercado de consumo, mediante remuneração. Obviamente, se a atividade não se destina ao consumo, mas à integralização do processo de produção, não há que se falar em prestação de serviço para efeito de aplicação da legislação de proteção ao consumidor. Vale dizer,se a energia elétrica é utilizada na fabricação de quaisquer produtos, ou no acondicionamento destes para fins de comercialização, isso se constituirá em mais um insumo do processo produtivo ou mercantil, retirando do industrial ou do comerciante a condição de destinatário final. [17]

De outra maneira, os tributos em geral não podem ser inseridos no âmbito da relação de consumo, já que inexistem as figuras típicas de fornecedor e consumidor, mas uma relação tributária entre Estado e contribuinte. Tampouco há comercialização de um produto ou prestação de um serviço, mas pagamento compulsório de tributo quando verificado o fato gerador da obrigação. Por essa razão, os serviços públicos remunerados mediante tributo geral ou taxa (espécie tributária) não permitem a caracterização da relação de consumo. Diversamente, quando o serviço é específico e facultativo, portanto, custeado por tarifa, há relação de consumo entre o prestador e o usuário. Nesse sentido, não há se confundir [...] referidos tributos com as 'tarifas', estas, sim, inseridas no contexto dos 'serviços' ou, mais particularmente, 'preço público', pelos 'serviços' prestados diretamente pelo Poder Público, ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa privada. [18]

Na grande maioria dos contratos de fornecimento de eletricidade, em particular, verifica-se que as cláusulas ali previstas são estipuladas unilateralmente pelo prestador do serviço ou pelo Poder Público concedente. Via de regra, o destinatário final da operação não interfere nas condições gerais da avença, v.g., o preço a ser pago como contraprestação, obrigações acessórias relativas à inadimplência (v.g., multa, juros), índice de reajuste, padrões técnicos de instalação. Não há, assim, plena autonomia quanto à disposição das condições contratuais.

A manifestação da vontade se resume à opção por aderir ao conjunto de regras previamente fixadas, concordando integralmente com elas, ou simplesmente não aceitá-las, o que implica, nesta última hipótese, em óbice ao nascimento do ajuste. De tal modo, quando o usuário solicita à concessionária o fornecimento de energia elétrica para sua residência, por exemplo, submete-se a uma espécie de "contrato de adesão", cuja disciplina recebe especial atenção no art. 54 e seguintes, do CDC.

No mesmo compasso, o art. 6º, X, do CDC, arrola como direito básico do consumidor a "adequada e eficaz prestação dos serviços públicos", o que, em última análise, coaduna-se com a previsão do art. 175, IV, da CF. Vale dizer, a prestação do serviço público deve atender às expectativas que dele legitimamente se espera, tanto no aspecto quantitativo quanto no aspecto qualitativo.

Destarte, o "modus operandi" da prestação deve se amoldar às necessidades dos usuários, bem como atingir o objetivo para o qual foi criado, que é, ao final, a entrega do bem da vida (no caso, a energia elétrica) ou a satisfação de interesses sociais relevantes. Mais uma vez o princípio da eficiência lançado no "caput" do art. 37, da CF, serve de lição para a diretriz da relação entre o prestador do serviço – delegatário, portanto, do Poder Público – e o consumidor, destinatário final do serviço.

A importância da sujeição dessa relação ao conjunto normativo de proteção ao consumidor pode ser sintetizada na possibilidade de se rediscutir o conteúdo dos contratos que, de outra maneira, estaria preservado sob o manto do "pacta sunt servanda". Mesmo nos contratos de adesão, embora a anuência do usuário possa aparentemente sugerir uma expressa concordância com os termos ali inseridos, nada obsta a possibilidade de revisão judicial do pacto quando presentes cláusulas ou condições que impunham ao consumidor obrigações exorbitantes ou contrárias à boa-fé. [19] Também as condutas contratuais que visam excluir, diminuir ou dificultar o exercício de direitos dos consumidores merecem a interferência do Poder Judiciário, "ex vi" do art. 6º, IV e V, do CDC.

Uma vez caracterizada a relação de consumo entre a concessionária e o usuário do serviço, deverá o liame receber a tutela específica da Lei nº 8.078/90 e, subsidiariamente, das demais disposições gerais do Direito Privado não conflitantes com a primeira, em atenção à regra de aplicação de direito intertemporal consignada no art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil. Incipiente, pois, uma interpretação sistemática do Ordenamento Jurídico pátrio, com vistas à preservação, sobretudo, dos princípios e mecanismos de defesa próprios que incidem sobre a relação de consumo, todos arraigados em matriz constitucional.

6.3. A PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO COMO UNIDADE CONSUMIDORA

Qualquer pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final pode ser compreendida como consumidor, consoante definição do art. 2º, "caput", da Lei nº 8.078/90. A partir da análise do dispositivo citado é possível constatar que não há restrição quanto à espécie de pessoa jurídica tutelada pela sistemática do CDC. Qualquer pessoa jurídica, seja ela uma pequena ou micro empresa, uma sociedade civil ou mesmo um grande empreendimento comercial, portanto, não está excluída da proteção normativa quando investida na qualidade de consumidora.

Também não há distinção entre a pessoa jurídica de Direito Privado e a pessoa jurídica de Direito Público para efeito de qualificá-las como consumidoras. Ademais, a "mens legis" é no sentido de estender a proteção do CDC a todo hipossuficiente na relação de consumo, ainda que constituído sob a forma de pessoa jurídica (art. 4º, I, do CDC). Em que pese essa vulnerabilidade ser relativa, o diploma normativo não recusa proteção às pessoas jurídicas de Direito Público, conquanto destinatárias finais de produtos ou serviços oferecidos no mercado de consumo.

Embora questionável a vulnerabilidade econômica da pessoa jurídica de Direito Público em face do fornecedor, remanesce ainda a sua fragilidade quanto ao domínio do aspecto técnico envolvido na relação. Nesse sentido, o conhecimento dos elementos atinentes aos meios de produção e distribuição de produtos e prestação de serviços, bem como a escolha do seu "modus operandi", permanece sob o monopólio do fornecedor. [20] Além disso, o art. 4º, I, do CDC, expressamente reconhece a vulnerabilidade do consumidor sem restrições, razão porque essa presunção também milita em favor da pessoa jurídica de Direito Público.

Não é demais frisar que, se o produto ou serviço adquirido integra o custo operacional da atividade desenvolvida pela pessoa jurídica de Direito Público, rompe-se a relação de consumo. Por outro lado, se o bem ou serviço compõe apenas as suas despesas, não sendo aproveitado em nenhuma fase do processo produtivo, há típica relação de consumo e, portanto, objeto de tutela específica da Lei nº 8.078/90.

Em sintonia com a abrangência pretendida pela norma, o art. 51, I, do CDC, dispõe acerca da possibilidade de limitação de indenização, justificadamente, nas relações de consumo travadas entre fornecedor e a pessoa jurídica consumidora, não estipulando qualquer empecilho à inclusão da pessoa jurídica de Direito Público no polo passivo da relação.

No caso do serviço de fornecimento de energia elétrica, a pessoa jurídica de Direito Público também poderá afigurar-se como destinatária final, mormente quando contrata o serviço para utilização, v.g., em suas repartições públicas, hospitais, praças, ginásios de esportes. Nesta situação, verifica-se que o serviço fornecido apenas acresce às despesas para a manutenção dos espaços públicos, sem integrar uma cadeia produtiva de fomento a outra atividade qualquer.

Destaque-se que a relação contratual estabelecida no fornecimento de energia elétrica prestado pela concessionária ao consumidor, ainda que o destinatário final seja uma pessoa jurídica de Direito Público, rege-se eminentemente pelas disposições do Direito Privado. Nesta seara, porém, a Administração Pública não assume posição privilegiada em relação ao particular prestador do serviço, característica esta adstrita aos contratos administrativos firmados sob a égide do Direito Público. A propósito, Luiz Gonzaga Pereira Neto leciona que "os contratos de fornecimento de energia elétrica a entes públicos não podem ser considerados contratos de direito administrativo, uma vez que a Administração não ocupa, nos mesmos, posição privilegiada em detrimento dos demais contratantes". [21]

O ente público titular do prédio beneficiado com o fornecimento da energia elétrica, portanto, receberá do fornecedor do serviço o mesmo tratamento dispensado aos demais particulares, isto é, o de unidade consumidora – compreendidos todos os direitos e obrigações advindas dessa caracterização.


7. A INTERPRETAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAR SERVIÇOS CONTÍNUOS, QUANDO ESSENCIAIS

Como corolário do princípio da continuidade inerente aos serviços públicos de um modo geral, os misteres prestados pelo Estado, direta ou indiretamente, devem ser mantidos sem paralisação, em razão do interesse público que exprimem. Afinal, não haveria sentido em alçar à responsabilidade do Poder Público a titularidade de determinados serviços, excluindo-os do campo da livre iniciativa privada (ou reservando-os a determinados sujeitos – concessionários, permissionários ou autorizatários – submetidos a normas regulamentares), senão para que a sua manutenção fosse garantida à população que deles necessita. Por isso, também o CDC, em seu art. 22, estabeleceu como obrigatória a continuidade dos serviços públicos considerados essenciais, "in verbis":

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.

A partir da leitura do dispositivo é possível inferir que, além de adequados, eficientes e seguros, a norma em comento exige o elemento adicional da "continuidade" quando a essencialidade estiver presente no serviço prestado. Com efeito, a doutrina tem entendido que "ocorre a chamada falta do serviço, gerando a responsabilidade da administração pública, quando o serviço não funciona, devendo funcionar (falta de eficiência); funciona mal (falta de adequação); ou funciona tardiamente (falta de continuidade)". [22]

O princípio da continuidade, então, tem lugar não só nas relações submetidas ao regime jurídico de Direito Público (como no exemplo da relação entre Poder Público concedente e concessionária), mas também quando o objeto do contrato de natureza privada envolver a prestação de um serviço público essencial em que, não obstante, o Estado é titular.

Analisando a relação jurídica triangular com um todo – isto é, o ciclo estabelecido entre o Poder Público concedente, a concessionária executora do serviço, e usuário destinatário final da prestação –, é possível observar que há incidência tanto de normas imperativas de Direito Público como de normas de caráter privado. Depreende-se daí uma confluência entre interesse público e interesse privado. [23] Em outras palavras, existem pontos de convergência onde os interesses públicos e privados se confundem, o que não implica em óbice à aplicação de regras e princípios próprios de ambas as searas jurídicas.

Não há, assim, uma veemente dicotomia que permita apontar com exatidão os limites dos interesses envolvidos. Diversamente, verificar-se-á uma linha tênue em que, de acordo com a natureza jurídica da relação, ora haverá preponderância das normas de Direito Público, ora de Direito Privado, sem que haja, no entanto, absoluta exclusão de umas em detrimento das outras.

Na concessão do serviço público de fornecimento de energia elétrica (relação entre Poder Público concedente e concessionária), v.g., regido por típico contrato administrativo, haverá a preponderância das normas próprias do Direito Público, o que não inviabiliza a observância também de regras de caráter privado, como os direitos e obrigações dos usuários referidos na Lei nº 8.078/90 (art. 7º, "caput", da Lei nº 8.987/95), e a imposição à concessionária para que ofereça ao consumidor o mínimo de seis opções de datas distintas para o vencimento de seus débitos (art. 7º-A, da Lei nº 8.987/95).

Já no fornecimento de energia elétrica diretamente à unidade consumidora (relação entre concessionária e consumidor), quer dizer, a execução propriamente dita do serviço, evidente a preponderância de normas de Direito Privado, uma vez que os contratos são firmados sob a expressão da vontade das partes, em que pese a maioria deles ser caracterizada como "contrato de adesão". Ainda assim, observar-se-á a incidência de algumas disposições de caráter público, a exemplo dos princípios da eficiência (art. 37, "caput", da CF e art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95), da informação (art. 7º, II, da Lei nº 8.987/95) e da continuidade dos serviços públicos (art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95 e art. 22, "caput", do CDC).

Por outro lado, o § 3º do art. 6º da Lei nº 8.987/95, ao estatuir sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, expressamente dispõe acerca das hipóteses em que, uma vez caracterizadas, a interrupção não constitui descontinuidade do serviço, quais sejam: situações emergenciais, razões de ordem técnica ou de segurança das instalações, e a inadimplência do usuário.

Há quem entenda que, a partir da literalidade do art. 22, do CDC, todo e qualquer serviço público considerado essencial jamais pode ser interrompido. Para Bruno Miragem, em função da essencialidade investida no serviço público de fornecimento de energia elétrica, "intuitivo que não lhe seja permitida a interrupção, sob pena de graves prejuízos a pessoa, quando consumidor residencial, vulnerável, que tem na energia fornecida para sua moradia, um meio fundamental para sua sobrevivência". [24] Segundo esse entendimento, portanto, a solução de continuidade do serviço essencial é medida ilegal e desautorizada pelo sistema do CDC, levando-se em consideração o elemento humanitário envolvido em sua prestação.

Pretende-se, pois, uma mitigação da obrigação de pagar – elemento contratual que reflete interesses econômicos – em benefício da manutenção da qualidade de vida dos indivíduos, como supedâneo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e da Política Nacional de Relações de Consumo (art. 4º, "caput", do CDC). Ainda segundo essa corrente, a interrupção do serviço essencial ultrapassa a responsabilidade patrimonial do devedor, fazendo recair sobre si, por exemplo, as nefastas consequências da carência de eletricidade em sua moradia, o que evidencia uma inadmissível responsabilidade pessoal.

Luiz Antônio Rizzatto Nunes, sustentando a hipotética inconstitucionalidade do § 3º do art. 6º da Lei nº 8.987/95, defende que todo serviço essencial é contínuo por sua própria natureza, logo, o corte do seu fornecimento implica em interrupção irregular, da qual urge a responsabilidade objetiva da concessionária pela violação direta ao direito do cidadão. [25] Em outro dizer, a continuidade é um elemento substancial do serviço essencial, irrefutável por cláusula contratual ou mesmo por disposição legal. Essa interpretação, portanto, considera que a continuidade do serviço, desde que essencial, é um princípio absoluto, intocável por qualquer outro ato normativo.

Nesse contexto, surge a dificuldade de definição de "serviço essencial". O art. 9º, § 1º, da CF, outorga à lei ordinária a prerrogativa de definir quais seriam os serviços essenciais em que o direito de greve é limitado em função da garantia das necessidades inadiáveis da comunidade. Assim, aplicar-se-á ao conceito de essencialidade buscado no art. 22 do CDC, por analogia, o disposto na Lei nº 7.783/89 (Lei de Greve), em que são arroladas as atividades das quais não pode haver interrupção total por conta do movimento paredista. A tese defendida por esta corrente doutrinária consiste que, em função de o art. 10, I, da Lei nº 7.783/89, considerar essencial a produção e distribuição de energia elétrica, estaria obstaculizada a sua interrupção ante a proibição legal.

Segundo ainda os que advogam a impossibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica, a supressão do serviço pela concessionária não pode lograr êxito, uma vez que a medida utilizada imprime ao consumidor um gravame desnecessário, em conflito com o princípio da proporcionalidade. Isso porque o fornecedor do serviço poderia valer-se da demanda judicial para a persecução de seu crédito sem, entretanto, sobrestar a execução do serviço em prejuízo do usuário. [26]

Poder-se-ia questionar, na sequência, que a interrupção se operacionaliza como um instrumento indireto de cobrança coercitiva que, além de extrapolar os limites da legalidade, anuncia o exercício de autotutela do fornecedor. Vale dizer, a ameaça de interrupção tem caráter meramente sancionador, resquício de justiça privada, já que o crédito não é plenamente satisfeito com a supressão do serviço, mas com o efetivo pagamento. Nesse carrear de ideias, o consumidor é submetido a um procedimento vexatório de cobrança tão logo seja compelido a pagar, sob pena do subsequente corte do serviço, o que viola o art. 42, do CDC.

Tendo em vista que o cumprimento da obrigação deve ocorrer de modo menos gravoso ao consumidor inadimplente, ante a existência de duas vias possíveis para a manifestação do credor, isto é, interrupção do serviço ou cobrança judicial, à concessionária não seria lícito optar pela primeira. O executor do serviço, portanto, seria obrigado a abdicar da prerrogativa de rompimento do vínculo contratual para socorrer-se à tutela judicial, mantendo-se o serviço até ulterior decisão em contrário.

Semelhante entendimento acusa que, embora a concessionária tenha direito à contraprestação pecuniária, o empreendimento assume o risco pelo inadimplemento de alguns usuários. [27] Isto porque, como qualquer outro negócio rentável e que objetive o lucro, a prestadora do serviço tem condições de planejar a avaliação de suas perdas. Assim, a mera potencialidade de prejuízo decorrente da inadimplência obviamente já está embutida no preço da tarifa cobrada aos demais usuários adimplentes.

De outro modo, o art. 6º, X, do CDC, dispõe que é direito do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral. E o art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95 complementa: serviço adequado é aquele que satisfaz, dentre outras condições, a continuidade.

De fato, havendo controvérsia na aplicação da lei, entende-se que as normas do CDC devem ser interpretadas favoravelmente ao consumidor – parte vulnerável na relação jurídica entabulada. Não obstante, assim também o recomenda o próprio conjunto principiológico inaugurado por aquele diploma normativo. Esta noção pode ser extraída do art. 4º, "caput" e VII, do CDC, mormente ao estabelecer como um dos princípios informadores da Política Nacional de Relações de Consumo a "racionalização e melhoria dos serviços públicos".

Num primeiro momento, pode-se questionar acerca de um aparente conflito entre a Lei nº 8.987/95, ao estatuir as hipóteses que descaracterizam a descontinuidade do serviço público, e a Lei nº 8.078/90, ao não permitir, em tese, a interrupção daquela atividade. Admitindo-se, por hipótese, a existência de antinomia entre os diplomas normativos, necessária a aplicação da regra de solução de conflitos de leis, articulada no art. 2º, §§ 1º e 2º da LICC.

A doutrina contemporânea tem reiteradamente afirmado que o CDC constitui um microssistema ou, para alguns, um "subsistema autônomo" que estabelece um corte transversal no sistema jurídico. [28] Sendo assim, infere-se que o CDC disciplina, de modo particular, as relações de consumo, logo, um diploma especial que prevalece sobre disposições gerais. De outro lado, a Lei nº 8.987/95 dedica-se a situar minuciosamente as regras inerentes ao regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, o que consubstancia o caráter especial também deste último diploma normativo.

Tendo em vista que ambas as normas, além de mesma hierarquia (leis ordinárias federais), são igualmente especiais no que tange aos respectivos objetos, remanesce a regra de aplicação da norma posterior que estabelece disposições especiais a par das já existentes (art. 2º, § 2º, da LICC) sem, entretanto, revogá-las. Vale dizer, impinge à situação concreta a interpretação sistemática do CDC ajustado às disposições da lei nova, no caso a Lei nº 8.987/95, no sentido de que uma deve complementar a outra.

Feitas essas ponderações, cabe destacar que o fornecimento de energia elétrica, quando prestado de modo individual ou "uti singuli", é remunerado diretamente pelo próprio usuário, na modalidade de tarifa. Com efeito, a sua fruição é facultativa, razão porque o pagamento somente é devido quando da efetiva utilização do serviço. Nessa hipótese, a energia elétrica não beneficia uma coletividade indeterminada, mas apenas o usuário contratante daquele serviço. Outrossim, a cessação do fornecimento de energia decorrente da falta de contrapartida pelo consumidor não afeta o interesse da coletividade, limitando-se à esfera patrimonial do particular inadimplente.

Diversamente, quando a utilização do serviço é compulsória, não pode a Administração Pública suprimi-lo ante a falta de pagamento. Nesse caso, sua remuneração se exprime através de tributo, cuja cobrança possui via própria para a satisfação do crédito (execução fiscal). [29]

Não há que olvidar, destarte, que o art. 10, I, da Lei nº 7.783/89, ao estatuir a produção e distribuição de energia elétrica como serviço essencial, deve estar em consonância com o parágrafo único do art. 11, ou seja, são inadiáveis os serviços cujo desatendimento coloque em perigo iminente a sobrevivência, a saúde, ou a segurança da população. Em suporte, o Professor Ronald Amorim e Souza pontifica que "os serviços, assim, serão tidos como essenciais sempre e quando, interrompidos, venham a representar grave ameaça ou perigo à vida, à segurança ou à saúde de qualquer pessoa, de parte ou de toda a população". [30]

Em termos práticos, a falta de energia elétrica a um determinado consumidor não causa calamidade social nem põe em risco a incolumidade de parte ou de toda a população, quando muito, um mero dissabor pessoal. Ora, se o art. 22 do CDC impunha a continuidade do serviço público somente quando o for essencial, por exclusão, destituído desse elemento, embora enquadrado no rol de serviços públicos, a obrigatoriedade de ininterrupção não prevalece.

Obriga-se a concessionária, entretanto, a não deixar de oferecer o serviço a quem se dispunha a pagar pelo preço convencionado. Diferentemente dos demais negócios operados sob a autonomia da vontade, as concessionárias de serviços públicos não são absolutamente livres para escolher a quem prestá-los. Vale dizer, a atividade, embora privada e livre em sua iniciativa, não admite plena liberdade em seu exercício, eis que sofre especial atenuação em face da função social do serviço público, com lastro no art. 170, "caput" combinado com o seu inciso III, e art. 5º, XXIII, da CF.

O interesse público na prestação do serviço deve ser compreendido a partir da premissa de que, atendidas as condições técnicas e jurídicas, não pode subsistir negativa à sua oferta, [31] conferindo tratamento prejudicial a quem, em igualdade de condições, está apto a ser usuário do serviço. Em outras palavras, é defeso à concessionária, ao seu exclusivo talante, decidir pela disponibilidade ou não do serviço a quem preencha ou não as qualidades do perfil de clientela por ela desejado. Nesse sentido, é possível afirmar que:

‘Os serviços essenciais devem ser contínuos’, no sentido de que não podem deixar de ser ofertados a todos os usuários, vale dizer, prestados no interesse coletivo. Ao revés, quando estiverem em causa interesses individuais, de determinado usuário, a oferta de serviço pode sofrer solução de continuidade, se não forem observadas as normas administrativas que regem a espécie. [32]

Ao descumprir com a obrigação de remunerar pelo serviço auferido, o usuário rompe unilateralmente o vínculo outrora ajustado, ensejando à outra parte, também, a correspondente desobrigação de adimplir com o que pactuou. Outrossim, ausente o pagamento da tarifa pelo consumidor, de um lado, não se pode compelir a concessionária no fornecimento ininterrupto de energia.

Do contrário, apenas uma das partes estaria cumprindo regularmente com o seu encargo, enquanto que a outra sempre seria beneficiada com a própria inércia. Em termos práticos, os débitos do usuário acumular-se-iam indefinidamente até que a sua consciência lhe aprouvesse de outro modo. Enquanto isso, o custo operacional do sistema seria suportado parcialmente pelos usuários adimplentes ao pagarem preços mais elevados nas tarifas. Nesse sentido, também não está descartada a possibilidade de o próprio Poder Público intervir em parcela das despesas, tendo em vista o favorecimento da modicidade das tarifas (art. 11, da Lei nº 8.987/95).

De toda sorte, haveria uma "socialização" desequilibrada dos custos, tendo em vista que muitos que podem pagar não o fazem por mera desídia, enquanto outros tantos acabariam suportando o encargo geral. Vale mencionar que, havendo modificação na cláusula financeira do contrato, é lícito à concessionária pleitear revisão das tarifas, restabelecendo-se o equilíbrio econômico-financeiro anterior, "ex vi" do art. 9º, §§ 2º, 3º e 4º, da Lei nº 8.987/95.

Embora a atividade empresarial deva suportar os riscos que lhes são inerentes, a Lei nº 8.987/95, em seu art. 11, é severa ao limitar o uso de outras fontes de receitas, admitindo-as apenas com a finalidade de viabilizar a modicidade dos preços das tarifas, e não como forma de captação extraordinária de lucros. Essa disposição, destarte, advém da "política tarifária" a cargo de lei ordinária, a ser observada no regime de concessão ou permissão, conforme adverte art. 175, § único, II, da CF. Conclui-se, portanto, que as tarifas são as principais fontes de remuneração das concessionárias, já que as demais advindas de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, visam tão-somente assegurar preços razoavelmente acessíveis à população. [33]

Os contratos sinalagmáticos, dos quais é espécie o fornecimento de energia elétrica ao consumidor final, exigem reciprocidade nas obrigações, ou seja, cada contratante deve cumprir com a sua parte no ajuste. Havendo quebra na sintonia contratual, nenhum dos contratantes pode exigir do outro o implemento correspondente, sem antes ter cumprido com o que lhe cabia na avença, conforme elucida o art. 476, do CC/2002.

Se isto acontecer, cabe ao demandado opor-se ao cumprimento da obrigação, ante o inadimplemento de quem competiria prestá-la em primeiro lugar. É a solução indicada pelo art. 477, do CC/2002, possibilitando-se a defesa através da chamada da "exceptio non adimpleti contractus". Com efeito, a interrupção do fornecimento de energia elétrica como consectário do inadimplemento do consumidor não possui natureza jurídica de sanção. Não visa, de modo algum, retirar abruptamente o serviço do usuário, como um instrumento indireto de penalidade ou coerção. Diversamente, exprime a ideia de oposição do credor em cumprir a prestação do serviço, sob o fundamento de falta de pagamento a que competia ao usuário.

Não obstante, a cessação do serviço até então fornecido também pode ser encarada como consequência de uma resolução por inexecução voluntária do contrato. [34] Verificado o descumprimento da prestação pecuniária, por culpa do devedor, desenha-se a hipótese de encerramento do vínculo, o que afasta a exigibilidade do seu objeto.

Com o desfazimento da relação contratual, não há mais o que ser prestado em favor do usuário contratante, isto é, desaparece o objeto do contrato – o serviço de fornecimento individual de energia elétrica. Assim, a interrupção do serviço não se afigura medida unilateral com caráter sancionador, mas reflexo da extinção da relação contratual, mediante resolução.

Tecidas essas reflexões, não é demais destacar que a possibilidade de interrupção do serviço, mediante a ausência do pagamento da tarifa correspondente, também pode ser socorrida pela boa-fé objetiva inerente aos contratos sinalagmáticos, consoante prenuncia o art. 113 do CC/2002. Nesse sentido, a conduta do indivíduo deve ajustar-se ao modelo ideal de comportamento social, pautado nos brios da honestidade, lealdade e probidade. [35]

Não há que perquirir, por puro exercício de ilação, o sentimento subjetivo ou psicológico do devedor que o conduziu à inadimplência. Diversamente, averiguar-se-á a compatibilidade do comportamento adotado "in concreto" com a regra de conduta socialmente admitida, cuja expectativa circunda a relação contratual. Vale dizer, ao firmarem o pacto oneroso de prestação de serviço, é legítimo que ambas as partes esperem, uma da outra, um comportamento diligente, pautado na retidão e desvencilhado de trapaças, exploração, desdém ou qualquer outro tipo de subversão da lógica contratual.

Com efeito, os compromissos mutuamente assumidos, num "plano ideal", deveriam ser criteriosamente observados, inclusive quanto à contraprestação pecuniária, sob pena de ratificar precedente ao desacordo generalizado. Ressalvam-se, porém, as hipóteses de excesso ou abuso produzido no contexto das cláusulas contratuais que, além de rechaçados pelo art. 51 e seguintes do CDC, igualmente violam a boa-fé contratual.

Analisando a questão por outra vertente, também não se pode admitir que a concessionária seja compelida a fornecer serviço ininterrupto sem a respectiva remuneração. De acordo com o princípio da legalidade consubstanciado no art. 5º, II, da CF, como garantia e direito fundamental, vigora para o particular a lógica da não-contradição, máxime do brocardo em que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Ora, se não há determinação normativa de gratuidade da prestação, inexiste direito subjetivo à percepção de serviço sem a devida remuneração.

Ao reverso, uma hipotética presunção de gratuidade apenas importaria em ratificar o locupletamento sem causa do usuário desidioso, já que, sem pagar pelo serviço prestado, dele se beneficia diretamente. Nessa situação, o art. 884, "caput", do CC/2002, é claro ao estatuir o dever de restituir o que indevidamente se auferiu.

Ao proceder a interrupção do fornecimento de energia, desde que respeitadas rigorosamente as hipóteses de cabimento e os direitos dos usuários e consumidores, a concessionária atua sob o respaldo do art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.987/95, dos arts. 14, I e 17, "caput", da Lei nº 9.427/96, além do art. 91 da Resolução nº 456/00 da ANEEL. Logo, sua conduta está revestida de licitude, eis que pautada em expresso permissivo legal. Mesmo o princípio da continuidade esculpido no art. 22 do CDC, e no art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95, caso compreendido sob o aspecto absoluto, não tem o condão de imunizar o inadimplente contra eventual interrupção do serviço, vez que este não se encontra em situação juridicamente protegida pela norma. [36]

Outrossim, caso impossibilitada a descontinuidade do serviço de forma idêntica e genérica a todo e qualquer usuário, tanto inadimplente quanto adimplente, restaria vulnerado o princípio da isonomia material (art. 5º, "caput", da CF). Isto porque o tratamento dispensado aos demais usuários, que se encontram numa mesma circunstância jurídica protegida, não se estende, necessariamente, àqueles que não partilham da mesma realidade, de modo que a situação desigual "in concreto" merece ser tratada desigualmente, na medida de seu desequilíbrio. [37]

Por todo o exposto, é razoável se entender que não é dada à concessionária a conveniência e oportunidade de oferecer o serviço quando e a quem lhe aprouver, nem tampouco suprimi-lo mediante ato desvencilhado de embasamento normativo. Em outras palavras, o art. 22 do CDC parece demonstrar que o princípio da continuidade ali inserido informa que o fornecedor não pode fazer cessar a prestação do serviço de modo abrupto, unilateral e arbitrário. [38]

Via de regra, portanto, preenchidas as condições técnicas e jurídicas para o uso ou consumo adequado da energia, não é lícito negar arbitrariamente o seu fornecimento. Assim, o serviço é contínuo no sentido de que a concessionária deve disponibilizá-lo permanentemente a toda a população, a fim de permitir o acesso dos consumidores individualmente considerados.


8. A INADIMPLÊNCIA NA CONTRAPRESTAÇÃO

Sem prejuízo da contínua prestação do serviço público, o art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.987/95, dispõe de modo exaustivo das situações em que a sua interrupção é excepcionalmente permitida, a saber: (i) em caso de emergência; (ii) circunstâncias específicas de origem conhecida e previsível, desde que precedidas de aviso (razões de ordem técnica, segurança das instalações e inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade).

Interessa-nos a terceira hipótese contemplada na Lei nº 8.987/95, que enseja a interrupção do serviço em face da inadimplência do usuário quanto ao pagamento do valor cobrado a título de remuneração pela prestação do serviço. Enquanto, de um lado, a concessionária tem o dever de disponibilizar um serviço adequado, eficiente, seguro e contínuo, desde que essencial, de outro lado, cumpre ao usuário remunerá-la pelo serviço prestado.

Nesse sentido, para o fornecimento de energia elétrica, o art. 14, I, da Lei nº 9.427/96 expressamente dispõe que o consumidor final é responsável pela contraprestação pela execução do serviço, mediante o pagamento de tarifa. Idêntica assertiva contém o art. 91, da Resolução nº 456 da ANEEL, "in verbis":

Art. 91. A concessionária poderá suspender o fornecimento, após prévia comunicação formal ao consumidor, nas seguintes situações:

I - atraso no pagamento da fatura relativa a prestação do serviço público de energia elétrica.

O descumprimento intencional da obrigação, portanto, implica em violação ao dever de pagar pelo benefício auferido e incorporado à esfera patrimonial do devedor. Isto é, embora ciente do "quantum debeatur", o usuário voluntariamente deixa de adimplir com a obrigação pecuniária devida e, por isso, obtém vantagem econômica ao não despender a quantia que seria investida como contraprestação.

No tocante ao fornecimento de energia elétrica, o serviço é feito em prestações continuadas, o que quer dizer que a obrigação de pagar se renova a cada vencimento, mês a mês. Nessa hipótese, o vencimento da obrigação, desde que acompanhado de prévio aviso, constitui o devedor desidioso em mora, nos termos do art. 394, combinado com o art. 397 do CC/2002.

Cumpre destacar que o art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.987/95, ao arrolar a inadimplência do usuário como causa de interrupção do serviço a ele prestado, desde que pré-avisado, não faz referência ao descumprimento fortuito da obrigação. Considerando-se que a regra em comento é medida excepcional e restritiva da esfera de direitos dos usuários, plausível que seja interpretada nos limites de sua redação.

Nesse sentido, não deve o operador do Direito, ao interpretar o conteúdo da norma, expandir o alcance da restrição pretendida pelo legislador ordinário, em prejuízo dos usuários do serviço. Como a Lei previu a inadimplência pura e simples, sem qualquer destaque quanto ao descumprimento fortuito, é certo que a leitura do dispositivo deve contemplar somente a hipótese de inadimplência culposa da obrigação.

Com efeito, não seria razoável admitir como causa de interrupção do serviço a inadimplência do usuário em função de fator alheio à sua vontade. Se o evento que repercutiu a mora escapa ao domínio do usuário, impõe-se reconhecer a ilegalidade da interrupção fundada nesse motivo, com lastro no art. 396, combinado com o art. 393, "caput", do CC/2002.

Não obstante, ao permitir a interrupção do serviço público quando verificada a inadimplência do consumidor, o art. 6º, § 3º, II, da Lei nº 8.987/95, ressalva: "considerado o interesse da coletividade". "A priori", a interrupção do serviço por falta de pagamento afeta somente a esfera de direitos patrimoniais do consumidor individualmente considerado. Não há repercussão direta contra terceiros estranhos à relação firmada entre a concessionária e o consumidor contratante do serviço, ora inadimplente.

No serviço de fornecimento de energia elétrica, considerando que a sua execução se dá de modo específico e de livre fruição, portanto, um serviço "uti singuli" remunerado por tarifa, a prestação pode ser suprimível quando verificada a inadimplência do usuário. O mesmo não acontece com os serviços gerais ou "uti universi", isto é, aqueles prestados compulsoriamente e remunerados por tributo geral, o que, consequentemente, impede o seu sobrestamento.

Destarte, em situações peculiares a interrupção pode inviabilizar determinadas atividades relevantes para a sociedade, cuja ausência importa em graves prejuízos não só ao consumidor inadimplente, mas também ao universo de sujeitos indeterminados que mantém alguma relação de dependência com aquele. Haveria, então, reflexos tanto na esfera privada do devedor como nos vários indivíduos beneficiados com a atividade por ele desempenhada. Assim, quando a energia é fornecida a entidades que prestam serviços públicos essenciais propriamente ditos, v.g., hospitais e estações de tratamento de água, sua prestação é insusceptível de interrupção. Nesse sentido, Fábio Amorim da Rocha assevera:

Evitando prejuízos à coletividade, dificuldades no Judiciário em se reverter liminares concedidas, jamais a suspensão do fornecimento do serviço por falta de pagamento deverá atingir as redes de iluminação pública, praças e logradouros públicos, assistência médica e hospitalar, tratamento e abastecimento de água, captação e tratamento de esgoto e lixo, transporte coletivo, creches, escolas, etc [grifo nosso]. [39]

Do contrário, restaria prejudicada toda a coletividade indistintamente, mormente quando somadas as mazelas desencadeadas com a falta de energia naqueles estabelecimentos, como o aumento da violência em locais ermos, equipamentos hospitalares inoperantes, escassez generalizada de água nas residências, ou o acúmulo de lixo orgânico em decomposição nos centros urbanos, por exemplo. Por isso, antes de paralisar o serviço, a despeito da falta de pagamento, a concessionária deve observar se há interesse da coletividade envolvido, caso em que estará desautorizada a interrupção, segundo o disposto no art. 6º, § 3º, II, da Lei nº 8.987/95.

O fato de a norma ressalvar o interesse coletivo, porém, não significa impossibilidade absoluta de interrupção do serviço quando o usuário é o próprio Poder Público. Ao contratar o fornecimento de energia elétrica para um determinado órgão ligado ao Ente Federado, por exemplo, a Administração Pública faz às vezes do consumidor, posto ser ela a destinatária final da relação. Da mesma forma, quando uma entidade pública com personalidade jurídica própria pactua junto à concessionária o fornecimento de energia elétrica para as suas instalações, há relação de consumo e, por isso, remanesce o vínculo obrigacional entre as partes.

De um lado, a concessionária se obriga a disponibilizar o serviço de modo adequado e contínuo e, de outro, o Ente Público usuário do serviço responsabiliza-se pela remuneração correspondente. Nesse sentido, "a continuidade do serviço público é assegurada não por conta da natureza jurídica do respectivo ente, mas em favor do interesse da coletividade que não pode ser privada dos serviços essenciais ao bem comum". [40]

Muitos municípios inadimplentes têm advogado no sentido de que não seria possível a interrupção do fornecimento de energia elétrica, pois, em se tratando de serviço prestado ao Poder Público enquanto unidade consumidora, haveria sucumbência do interesse público em proveito do particular. Para essa corrente, embora não se trate de um contrato administrativo disciplinado pelas normas próprias do Direito Público, aplicar-se-ia o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular ao ajuste firmado entre o Ente consumidor e o fornecedor do serviço, mesmo sendo esta relação contratual regida preponderantemente pelo Direito Privado:

Por outro lado, se o usuário do serviço for pessoa jurídica de Direito Público, a interrupção do fornecimento é inadmissível, porque, além de estar em causa o interesse público – cuja supremacia é indiscutível em termos principiológicos –, o ente público pode invocar, em sentido diametralmente oposto, o postulado da continuidade dos serviços que presta à população em geral. [41]

É cediço que o interesse público deve prevalecer quando em conflito com interesse privado. Todavia, a inadimplência contumaz da Administração Pública não deve ser tomada como pressuposto de manutenção da estrutura administrativa do Estado. Afinal, vale a regra de que as despesas do Erário Público devem ser previstas e lançadas no orçamento, cujo cumprimento deve ser minuciosamente observado na gestão financeira, conforme determina o art. 165 e seguintes da CF.

Ora, se o custo do fornecimento de energia é antecipadamente lançado no orçamento, atrelado à respectiva fonte de receita, a falta de pagamento da obrigação pecuniária somente pode resultar da desídia do gestor público, quando não raro da destinação diversa da verba que fora reservada segundo a Lei Orçamentária. Tal conduta, além de moralmente repreensível, poderá ensejar responsabilização na esfera administrativa, cível e criminal. Nesse sentido, Raul Luiz Ferraz Filho e Maria do Socorro Patello de Moraes acrescentam que:

Ao coagir seu co-contratante a desembolsar seus recursos para custear a prestação de serviços públicos, a Administração Pública viola a garantia patrimonial da concessionária, pois desequilibra a equação econômico-financeira da concessionária e a liberdade de trabalho do agente econômico, ao mesmo tempo em que viola a garantia de imutabilidade contratual e modifica o seu objeto, já que se impõe a adição de contrato acessório de financiamento. E tal ilícito não tem sustentação na ordem jurídica, que se funda na boa-fé dos contratos. [42]

A propósito, Luiz Gonzaga Pereira Neto, ao analisar o princípio da continuidade do serviço público, explica que "sua função teleológica é proteger a coletividade e não a Administração Pública". [43] Por isso, o princípio da supremacia do interesse público não pode ser aclamado em defesa de um suposto direito de continuidade "ad aeternum" do serviço prestado à pessoa jurídica de Direito Público, sob pena de institucionalização da inadimplência contumaz.


9. CONCLUSÃO

Quando a utilização do serviço específico e divisível é compulsória, a sua mera disponibilidade faz surgir para o usuário a obrigação de pagamento, na modalidade de taxa (tributo específico). De outro lado, quando a utilização do serviço público é facultativa, a remuneração deste é feita mediante tarifa ou preço público, sendo devida apenas quando efetivamente auferido o serviço pelo usuário. É o que ocorre, na maioria das vezes, com o fornecimento de energia elétrica, mormente quando prestado via concessionária.

Não obstante, a atividade econômica ligada à prestação de serviços públicos sofre especial limitação no seu exercício, sobretudo ao ser submetida às regras próprias do regime de Direito Público, tendo em vista a preservação do interesse da coletividade. Através da aplicação do princípio constitucional da função social da propriedade, tanto as concessionárias prestadoras de serviços públicos quanto o próprio Poder Público concedente devem buscar alternativas concretas de modo a viabilizar a confluência entre a atividade econômica e a garantia da existência digna, tracejada pelos ditames da justiça social, a exemplo das chamadas "tarifas sociais". Até porque, a principal finalidade do serviço público não é garantir uma rentabilidade ao Estado, mas assegurar a disponibilidade de determinadas atividades reputadas relevantes à sociedade.

Assim, o fornecimento de energia elétrica cumpre com a sua função social ao satisfazer às necessidades essenciais da população, de modo adequado, eficiente e contínuo, desde que atendidos, ainda, os requisitos de segurança, atualidade, generalidade e modicidade das tarifas. Vale destacar que, se o serviço interessa a toda a sociedade, deve ser garantida não só a sua disponibilidade, mas também a sua contínua prestação, com fulcro na supremacia do interesse público.

Em função do relevante interesse público investido na prestação do fornecimento de serviço de energia elétrica, sabe-se que o próprio exercício do direito de greve constitucionalmente assegurado na Lei Maior pode sofrer limitação, com o objetivo de preservar, ainda que parcialmente, as atividades reputadas essenciais. Em que pese considerar-se exaustivo o rol de atividades essenciais descritas no art. 10, da Lei nº 7.783/89, que regulamenta o exercício do direito de greve, é possível questionar que não só aqueles, mas também outros serviços cuja supressão possa acarretar "perigo iminente a sobrevivência, a saúde, ou a segurança da população", podem ser concebidos como essenciais, com supedâneo no art. 11, parágrafo único, daquele mesmo diploma legal.

Entrementes, a relação firmada entre o Poder Público concedente e o particular a quem foi delegada a execução do serviço não se confunde com a relação entre este último e o usuário do serviço. A primeira situação é regida eminentemente pelas disposições e princípios inerentes ao regime de Direito Público; a segunda, quase sempre evidencia uma relação de consumo – própria do Direito Privado –, desde que o usuário seja o destinatário final do serviço prestado.

A exploração do serviço público de fornecimento de energia elétrica, à luz do art.175, da CF, está sujeita à concessão, autorização ou permissão, exigindo-se, para tanto, prévia licitação. Todavia, embora a execução possa ser transferida a um particular quando assim aprouver o interesse público, a titularidade do serviço permanece sob a responsabilidade do Poder Público concedente, que não se desincumbe do dever de fiscalização, através de sua Agência Reguladora.

Como corolário do regime jurídico inerente aos contratos administrativos estabelecidos entre o Poder Público e as concessionárias de serviço público, elementar a sujeição dessa relação, sobretudo, aos princípios do inescusável do Estado de promover-lhe a prestação; supremacia do interesse público; adaptabilidade; universalidade; impessoalidade; continuidade; transparência; motivação; modicidade das tarifas; e controle sobre as condições de sua prestação. Destarte, com lastro no princípio da proporcionalidade, é garantida à concessionária a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, "ex vi" do art. 9º, §§ 2º e 4º, da Lei nº 8.987/95.

Por outra vertente, a relação enveredada ao usuário do serviço em face da concessionária evidencia uma típica relação de consumo, desde que o fornecimento encontre nesse usuário a figura do destinatário final do serviço, nos moldes dos arts. 2º e 3º, do CDC. Todavia, se o serviço prestado se destina à integralização do processo produtivo, exclui-se a caracterização da relação de consumo.

Nesse sentido, os serviços públicos remunerados por tributo não podem ser inseridos no âmbito da relação de consumo, eis que corrobora numa relação tributária entre Estado e contribuinte. Diferentemente, os serviços custeados por tarifa admitem a caracterização da relação de consumo, já que excluída do campo da incidência tributária.

A partir da análise do art. 2º, "caput", do CDC, verifica-se que não há óbice para que a pessoa jurídica de Direito Público seja considerada consumidora e, portanto, sujeita à especial proteção daquele diploma normativo. Com efeito, compreende-se que a presunção de vulnerabilidade (art. 4º, I, do CDC), ao menos sob o aspecto do domínio da técnica, estende-se também ao Poder Público, desde que destinatário final de produtos ou serviços disponibilizados no mercado de consumo.

Figurando no polo da relação de consumo, a Administração Pública não assume posição privilegiada perante a concessionária, tal como ocorreria nos contratos administrativos regidos pelo Direito Público. Assim, a pessoa jurídica de Direito Público, enquanto unidade consumidora, receberá o mesmo tratamento dispensado aos demais usuários do serviço.

Quanto à interpretação da obrigatoriedade da prestação de serviços contínuos, quando essenciais, a doutrina e a jurisprudência não são pacíficas. Há quem entenda que, a partir da proposta lançada no art. 22, do CDC, além de adequados, eficientes e seguros, nenhum serviço essencial pode sofrer solução de continuidade.

Em aparente colisão com o disposto no art. 22, do CDC, o art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.987/95, disciplina as hipóteses em que a interrupção não constitui descontinuidade do serviço, a saber: situações emergenciais, razões de ordem técnica ou de segurança das instalações, e a inadimplência do usuário.

Segundo a corrente defensora da impossibilidade de interrupção do serviço essencial, a medida impõe ao devedor consequências que ultrapassam a sua órbita patrimonial, fazendo recair sobre ele a responsabilidade pessoal pela inadimplência, o que fere de morte o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Além disso, em decorrência da própria essencialidade do serviço, a sua supressão total encontra-se vedada pela Lei nº 7.783/89, aplicada por analogia, mormente ao restringir o exercício do direito de greve em atividades consideradas essenciais.

Conforme ainda os que advogam a ilegalidade da medida de interrupção do fornecimento de energia elétrica em face da inadimplência do usuário, a concessionária não poderia optar pela via mais gravosa ao consumidor, posto lhe ser facultado o manejo da demanda judicial para a satisfação do crédito. Vale dizer, a interrupção evidenciaria uma medida indireta de cobrança de dívida, o que escapa à "mens legis". Destarte, o empreendimento responsabiliza-se pelo o risco inerente à sua atividade, inclusive quanto ao inadimplemento de alguns usuários.

Em que pese as respeitáveis argumentações em defesa da inadmissibilidade da interrupção do fornecimento de energia elétrica aos usuários inadimplentes, tal entendimento pode ser refutado à luz de uma interpretação sistemática da legislação vigente e dos princípios constitucionais.

Levando-se em consideração a existência hipotética de antinomia entre as normas regentes, dois aspectos merecem destaque. Num primeiro momento, dada a vulnerabilidade do consumidor na relação jurídica e o caráter principiológico das normas do CDC, há de se reconhecer que os dispositivos legais devem ser interpretados favoravelmente ao consumidor. Num segundo plano, porém, aplicando-se a regra de solução em direito intertemporal, verifica-se que tanto pela regra da especialidade como pela regra da posterioridade a Lei nº 8.987/95 não é derrogada pelo CDC.

A essencialidade do serviço de "produção e distribuição de energia elétrica" explicitada no art. 10, I, da Lei nº 7.783/89, deve ser interpretada em consonância com disposto no art. 11, parágrafo único, daquele mesmo diploma legal. Vale dizer, são essenciais os serviços dos quais, além de inseridos no rol dos que são insusceptíveis de paralisação pelo movimento paredista, seu desatendimento coloque em perigo iminente a sobrevivência, a saúde, ou a segurança da população. Assim, à luz do que dispõe o art. 22, do CDC, por exclusão, não há obrigação de continuidade quando o serviço não é considerado essencial.

Descumprindo o usuário com a obrigação de remunerar pelo serviço prestado e consumido, ocorre o rompimento unilateral da avença, restando inexigível da concessionária o adimplemento correspondente, com fundamento na "exceptio non adimpleti contractus" (art. 477, do CC/2002). A interrupção do fornecimento de energia decorre, portanto, da resolução contratual por inexecução culposa do devedor, o que afasta a ideia de caráter de cobrança indireta ou sanção.

Além disso, não se pode obrigar o fornecedor a prestar gratuitamente um serviço, se assim não se obrigou por força de contrato ou por determinação legal. Do contrário, a continuidade nessas circunstâncias importaria em enriquecimento ilícito por parte do devedor contumaz (art. 884, "caput", do CC/2002), o que também realça ofensa ao princípio da boa-fé objetiva (art. 113, do CC/2002) e ao princípio da isonomia material (art. 5º, "caput", da CF).

Cumpre destacar que, ao atuar sob o amparo do art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.987/95, dos arts. 14, I e 17, "caput", da Lei nº 9.427/96, além do art. 91 da Resolução nº 456/00 da ANEEL, o ato de interrupção manejado pela concessionária reveste-se de licitude. Todavia, subsiste à concessionária o dever de disponibilizar permanentemente o serviço à população, de modo a permitir o acesso universal ao serviço, tendo em vista a função social que lhe é inerente. Em outras palavras, não é facultado à concessionária interromper arbitrariamente o serviço segundo sua conveniência e oportunidade.

Há, ainda, situações em que, embora inicialmente permitida a interrupção do serviço ante a inadimplência do usuário, a ausência do serviço importa em prejuízo que transcende ao indivíduo inadimplente. É o caso em que o serviço é prestado a um usuário determinado que desenvolve atividade de interesse público, v.g., as hipóteses enumeradas no art. 94, parágrafo único, da Resolução nº 456/00, da ANEEL, dentre elas unidades hospitalares e de tratamento de água e esgoto. Nessas situações peculiares, em razão do interesse maior da coletividade, a possibilidade de interrupção resta obstada, em conformidade com o que dispõe o art. 6º, § 3º, II, da Lei nº 8.987/95.

A ressalva ao interesse coletivo, todavia, não autoriza a desídia por parte do Poder Público, enquanto unidade consumidora, na obrigação de pagar a respectiva remuneração pelo serviço auferido, já que não se justifica como interesse público.

Há que se prevalecer, portanto, a possibilidade de interrupção do serviço público de fornecimento de energia elétrica, mediante a inadimplência do usuário, salvo circunstâncias excepcionais em que há potencial prejuízo ao interesse público.


Notas

  1. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 259.
  2. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 635.
  3. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 320-1.
  4. Id. p. 322.
  5. BRITO, Hugo Machado de. Curso de Direito Tributário. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 442.
  6. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.765.
  7. SILVA, 2002, op. cit. p. 281.
  8. LAZZARINI, 1999, op. cit. p. 26.
  9. NISHIYAMA, Adolfo Mamore. A Proteção Constitucional do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 168.
  10. SOUZA, Ronald Amorim e. Greve & Locaute: aspectos jurídicos e económicos. Coimbra: Almedina, 2004. p. 176.
  11. HINZ, Henrique Macedo. Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 118.
  12. SÜSSEKIND, Arnaldo. et al. Instituições de Direito do Trabalho. 21. ed. São Paulo: LTr, 2003. v. 2. p.1267-8.
  13. CARVALHO FILHO, 2003, op. cit. p. 260.
  14. MELLO, 2004, op. cit. p. 684.
  15. ROCHA, Fábio Amorim da. A Legalidade da Suspensão do Fornecimento de Energia Elétrica aos Consumidores Inadimplentes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 26.
  16. FERRAZ FILHO, 2002, op. cit. p. 78.
  17. FERRAZ FILHO, 2002, op. cit. p. 92.
  18. GRINOVER, Pellegrini. et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do Anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 49.
  19. NUNES, 2005, op. cit. p. 133-5.
  20. NUNES, 2005, op. cit. p. 125-6.
  21. PEREIRA NETO, Luiz Gonzaga. Possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica a pessoas jurídicas de direito público inadimplentes . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1350, 13 mar. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9589>. Acesso em: 14 mar. 2007.
  22. PASQUALOTTO, apud NISHIYAMA, 2002, op. cit. p. 166-7.
  23. ZANOBINI, apud MELLO, 2004, op. cit. p. 662-3.
  24. MIRAGEM, Bruno. A Regulação do Serviço Público de Energia Elétrica e o Direito do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n.51, p. 68-100, jul.-set. 2004. p. 97.
  25. NUNES, 2005, op. cit. p. 105-9.
  26. FERRAZ FILHO, 2002, op. cit. p. 149-50.
  27. MIRAGEM, 2004, op. cit. p. 97.
  28. NUNES, 2005, op. cit. p. 65-6.
  29. GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 280.
  30. SOUZA, 2004, op. cit. p. 174.
  31. MELLO, 2004, op. cit. p. 690.
  32. GRINOVER, 2004, op. cit. p. 215.
  33. MELLO, 2004, op. cit. p. 681.
  34. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.3. p. 116-7.
  35. MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 411-5.
  36. FERRAZ FILHO, 2002, op. cit. p. 122.
  37. MORAES, 2003, op. cit. p. 64-5.
  38. ROCHA, 2004, op. cit. p. 33.
  39. ROCHA, 2004, op. cit. p. 75.
  40. PEREIRA NETO, 2007, op cit. ib.
  41. GRINOVER, 2004, . cit. p. 216.
  42. FERRAZ FILHO, 2002, op. cit. p. 128.
  43. PEREIRA NETO, 2007, op. cit. ib.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, André Luiz Berro. Aspectos controversos da interrupção do fornecimento de energia elétrica por falta de pagamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1946, 29 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11902. Acesso em: 3 maio 2024.