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Aspectos controversos da interrupção do fornecimento de energia elétrica por falta de pagamento

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29/10/2008 às 00:00
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O usuário inadimplente não pode exigir a prestação ininterrupta do serviço em face do descumprimento culposo da obrigação, sob pena de enriquecimento ilícito.

1. INTRODUÇÃO

A noção de serviço público essencial e a possibilidade de sua interrupção tem sido objeto de longas controvérsias, tanto doutrinárias, quanto jurisprudenciais. Em razão da indefinição do aspecto da "essencialidade" inerente ao serviço, socorre-se com frequência à conceituação projetada pela Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, ao regulamentar o exercício do direito de greve. Em relação ao fornecimento de energia elétrica, dada a importância econômica, social e política que representa, a discussão não escapou à acirrada disputa judicial entre concessionárias e usuários do serviço, dentre eles consumidores individuais, entidades públicas e privadas.

Nesse contexto, o presente trabalho pretende expor os principais fundamentos e divergências da doutrina e jurisprudência em relação à possibilidade de interrupção do serviço público de fornecimento de energia elétrica aos usuários inadimplentes, sejam eles particulares ou entes de direito público.


2. O FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO SERVIÇO PÚBLICO

Uma vez que o Estado chamou para si a incumbência de fornecer energia elétrica aos destinatários, isto é, a entrega do bem móvel eletricidade ao universo de usuários (consumidores, indústrias e estruturas do próprio Poder Público), erigiu-a à categoria do gênero "serviços públicos", conforme art. 175, "caput", da Lei Maior. São, pois, atividades desenvolvidas pelo Estado com vistas a atender necessidades coletivas, essenciais ou não, mas que importam em prejuízo inestimável à sociedade caso não sejam prestadas, ou se exploradas ao sabor da iniciativa privada.

Salvo ausência de outorga normativa, esses serviços podem ser executados por terceiros (concessionários, permissionários ou autorizatários), mas sob a fiscalização ininterrupta do Poder Público. Nesse sentido, José dos Santos Carvalho Filho, com inegável acerto, assevera que serviço público é "toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob o regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade". [01]

Nem toda atividade, porém, pode ser considerada como "serviço público", mas somente aquelas designadas a suprir oportunamente as conveniências da sociedade, ainda que, em última análise, venha atender concomitantemente a interesses individuais. Na opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello, "a enumeração dos serviços que o Texto Constitucional considera públicos não é exaustiva". [02]

A principal consequência de se atribuir uma dada atividade como serviço público, evidentemente, é a sua sujeição ao regime jurídico de Direito Público. Surge daí uma série de regramentos próprios que se diferem do cotidiano das relações privadas, a exemplo do regime das concessões e permissões travado entre Poder Concedente e concessionário ou permissionário da atividade explorada. No mesmo rumo, todo o arcabouço de princípios corolários do Direito Público deve nortear a prestação dos serviços, em especial aqueles dirigidos à prestação dos serviços públicos: supremacia do interesse público sobre o privado, adaptabilidade ou atualização, universalidade, impessoalidade, continuidade.

Atualmente, tem-se adotado a divisão didática proposta por Hely Lopes Meirelles entre "serviço público essencial ou propriamente dito" e "serviço de utilidade pública", espécies, portanto, do gênero "serviço público". O primeiro reflete o conjunto de atividades desempenhadas diretamente pelo Poder Público, sem a interferência de terceiros, para o atendimento de necessidades gerais e inadiáveis da coletividade, tamanha a sua essencialidade (v.g., defesa nacional, segurança pública). De outro lado, serviço de utilidade pública é aquele que, embora de grande valia para a sociedade, não se presta a satisfazer interesses gerais de primeira necessidade, mas somente interesses secundários e individuais, cuja execução pode ser delegada a terceiros (v.g., transporte coletivo, abastecimento de gás, telefonia, energia elétrica). [03] Entretanto, esta delegação não retira o caráter público do serviço, uma vez que o terceiro, enquanto executor da atividade, o faz em nome do Poder Público ou com o consentimento deste.

Em relação à energia elétrica, esta pode ser alocada no conceito de "serviço de utilidade pública", eis que objetiva satisfazer, via de regra, um interesse particular do indivíduo mediante remuneração. Portanto, perfeitamente admissível a sua prestação por meio de terceiros delegados, submetidos, em qualquer caso, à atuação fiscalizadora do Poder Público, através de sua Agência Reguladora.


3. NATUREZA JURÍDICA DA REMUNERAÇÃO: TAXA, TARIFA OU PREÇO PÚBLICO?

Os serviços gerais, também chamados coletivos ou "uti universi", são prestados a uma massa indeterminada de destinatários, sem que haja uma identidade específica de quem está sendo beneficiado com a sua prestação, como, por exemplo, o serviço de iluminação pública e de segurança pública. Acrescente-se que, justamente por se tratar de um serviço geral, inexiste direito subjetivo à sua prestação, consoante anotou Hely Lopes Meirelles: "esses serviços satisfazem indiscriminadamente a população, sem que se erijam em direito subjetivo de qualquer administrado à sua obtenção". [04] Como o alvo final dos serviços gerais é a coletividade como um todo, não seria possível a sua divisão em quotas partes, tampouco a aferição do "quantum" que cada integrante da sociedade recebeu. Por isso, diz-se que a remuneração desses serviços ocorre mediante o pagamento de tributo geral.

De outro lado, os serviços individuais, também designados singulares ou "uti singuli", caracterizam-se por serem fruídos por usuários determinados, passíveis, portanto, de identificação. Nesse sentido, a prestação do serviço visa atender a um interesse particular, na medida em que o usuário pode ou não dele se utilizar, conforme sua conveniência. É possível, ainda, constatar qual parcela do serviço disponibilizado foi auferida pelo destinatário, extraindo-se daí a sua divisibilidade. Para essa situação a remuneração poderia se dar através de taxa (tributo específico), ou por preço público na modalidade de tarifa.

A taxa corresponde a uma espécie de tributo em que o fato gerador advém do exercício regular do poder de polícia do Estado ou, ainda, da prestação de um serviço público específico e divisível, prestado diretamente ao contribuinte ou posto à sua disposição, ainda que este não o utilize efetivamente (art. 145, II, da CF, e art. 77, do CTN). Com efeito, uma vez instituída a taxa por um Ente Federado, o seu pagamento é obrigatório para todos os contribuintes, desde que estejam no raio de alcance da disponibilidade do serviço a ser remunerado. Assim, o pagamento da taxa é sempre devido quando a utilização do serviço é compulsória, mesmo no caso em que não há efetiva fruição deste pelo contribuinte, mas pelo simples fato de poder utilizá-lo quando lhe for conveniente (v.g., serviço de esgoto, coleta de lixo).

Quando a utilização do serviço público não é compulsória, todavia, a remuneração do serviço é feita mediante tarifa ou preço público, restando excluída, portanto, a hipótese de pagamento por espécie tributária (taxa). Corroborando com o entendimento, Hugo Machado de Brito explica que,se a ordem jurídica não obriga a utilização do serviço público, posto que não proíbe o atendimento da correspondente necessidade por outro meio, então a cobrança da remuneração correspondente não ficará sujeita às restrições do sistema tributário. [05]

Neste caso, o pagamento pela prestação do serviço apenas é devido na hipótese do seu efetivo uso. Vale dizer, enquanto o destinatário não se beneficia, de fato, do serviço que lhe foi disponibilizado, não está sujeito à obrigação de pagar pelo não consumido. São exemplos tradicionais dessa modalidade de serviço singular o fornecimento de energia elétrica, de telefonia e de transporte urbano.


4. O SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Como a maioria dos serviços públicos, o fornecimento de energia elétrica também visa atender necessidades básicas da população, servindo-lhe de instrumento à garantia de qualidade de vida, num sentido mais amplo. Não obstante, o art. 170, "caput", da CF, assegura como princípio geral da atividade econômica a garantia à "existência digna, conforme os ditames da justiça social". Por isso, todo empreendimento deve proporcionar mecanismos de compensação às desigualdades geradas pelo sistema capitalista (art. 170, VII, da CF), em respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).

Não se deve perder de vista que a falta de energia elétrica pode acarretar danos não só na órbita patrimonial dos indivíduos, mas também enseja, algumas vezes, redução na sua qualidade de vida. Nesse aspecto, José Afonso da Silva acrescenta que:

Um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais para viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta e a miséria. [06]

Com efeito, quando a supressão do serviço público puder causar mácula à digna sobrevivência dos administrados, invadindo a sua esfera pessoal de direitos, a atividade econômica deverá suportar as medidas necessárias à manutenção daqueles princípios informadores da ordem constitucional. Em outras palavras, as concessionárias, em articulação com o Poder Público, devem propor alternativas concretas ao equilíbrio entre interesse econômico e justiça social, a exemplo do emprego das chamadas "tarifas sociais", com preços reduzidos à proporção do volume de consumo de energia.

O serviço público de energia elétrica tem o condão de proporcionar o desenvolvimento de outras atividades consideradas essenciais que são prestadas à coletividade, portanto, capaz de ratificar a proteção de interesses plurissubjetivos. Nesse esteio, a manutenção das estruturas e equipamentos hospitalares, praças públicas ou escolas, por exemplo, certamente dependerá da qualidade, adequação, eficiência e segurança com que é fornecido o serviço de energia elétrica.


5. FUNÇÃO SOCIAL DO SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA

Como corolário da atividade econômica, a exploração do serviço público de fornecimento de energia elétrica fica sujeita às distorções do sistema capitalista e, por isso, o Ordenamento Jurídico cuida de estabelecer alguns parâmetros a serem observados quando de sua execução. O principal limite, senão a sua razão de ser, reflete a função social que está inserida nos empreendimentos de um modo geral e, com maior intensidade, nos serviços públicos.

Ao disciplinar a ordem econômica e financeira, a Constituição Republicana fez expressa ressalva ao cumprimento da função social, que não se limita à propriedade privada, estendendo-se às atividades econômicas desenvolvidas pelos particulares ou pelo Estado. Vale dizer, "a Constituição não estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade privada, princípio também da ordem econômica e, portanto, sujeita, só por si, ao cumprimento daquele fim" [grifo do autor]. [07] Essa conclusão, ademais, encontra fundamento na aplicação do princípio da função social da propriedade anunciado no art. 5º, XXIII e no art. 170, III, da CF.

Atraindo para si a responsabilidade para a prestação de determinados serviços, o Estado retirou-os da livre iniciativa privada, permitindo sua execução indireta somente em circunstâncias especiais e sob sua fiscalização e regulação, objetivando resguardar aquele segmento econômico das mazelas da exploração econômica. Notadamente, a finalidade precípua do serviço público não é garantir uma rentabilidade ao Estado, mas assegurar que determinadas atividades reputadas como relevantes serão colocadas à disposição da sociedade. Nesse sentido, há quem considere tratar-se de "direitos cívicos, de conteúdo positivo, consistentes no poder de exigir da Administração ou de seu delegado o serviço que um ou outro se obrigou a prestar individualmente aos usuários". [08]

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O fornecimento de energia elétrica, então, cumpre com a sua função social ao satisfazer às necessidades essenciais da população, de modo adequado, eficiente e contínuo. Essa satisfação, entretanto, não é absoluta do ponto de vista individual, sendo suficiente que o serviço seja ofertado, porém, atendidas as exigências de adequação, eficiência, segurança, atualidade, generalidade e modicidade das tarifas, conforme exige o art. 6º, "caput" e § 1º da Lei nº 8.987/95, combinado com o art. 22, "caput", do CDC. Por outro lado, se o serviço interessa a toda a sociedade genericamente considerada, não só a disponibilidade, mas a sua contínua prestação deve ser garantida pela norma regente, máxime da primazia do interesse público.

A Constituição Federal de 1988, entretanto, silenciou a respeito de uma definição de "serviço público essencial", tarefa que coube ao legislador ordinário suprir (art. 9º, § 1º, da CF), conformando-se a realidade fática com o propósito teleológico da Lei Maior. [09] Nesse contexto, a Lei nº 7.783/89, ao disciplinar o exercício do direito de greve, é o diploma normativo que mais se aproxima de uma definição legal de serviços essenciais, por analogia.

Observe-se que, tamanha a relevância desses serviços para a sociedade e para o Estado, até mesmo o exercício do direito de greve constitucionalmente assegurado no art. 9º, "caput", da Constituição Republicana, pode ser limitado com vistas à preservação, ainda que parcial, daquelas atividades, em especial a "produção e distribuição de energia elétrica" (art. 10, I, da Lei nº 7.783/89). Em análise acurada acerca dos aspectos jurídicos e econômicos atinentes ao exercício do direito de greve, o Professor Ronald Amorim e Souza acrescenta que "a qualidade é algo de desejável em qualquer serviço, essencial ou não, mas o objetivo da lei é assegurar o serviço, ainda que de qualidade sofrível, mas o bastante para suprir a falta capaz de causar prejuízo irreparável à população". [10]

Parte da doutrina contemporânea, acompanhada por Henrique Macedo Hinz, tem afirmado que o rol de serviços ou atividades essenciais descritas no art. 10, da Lei nº 7.783/89 é exaustivo, [11] posto disciplinar limitação ao exercício de um direito social constitucionalmente assegurado, para a qual enseja uma interpretação restrita. De outro lado, é possível questionar que não só aqueles, mas também outros serviços cuja supressão possa acarretar "perigo iminente a sobrevivência, a saúde, ou a segurança da população", podem ser concebidos como essenciais, com fundamento no art. 11, § único, da Lei nº 7.783/89. A propósito, Arnaldo Süssekind adota posição semelhante, lecionando que:

Em princípio, esse elenco parece exaustivo; mas, em face do estatuído no aludido parágrafo, qualquer outro serviço ou atividade cuja paralisação coloque ‘em perigo iminente a sobrevivência a saúde ou a segurança da população’ deve ser, igualmente, enquadrado entre os essenciais, que não devem ser interrompidos. [12]

"Contrario sensu", a interpretação também pode ser feita por outro ponto de vista: embora o serviço esteja arrolado dentre as hipóteses em que é formalmente considerado essencial, se não houver "perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população" em função de sua interrupção, não há essencialidade na sua prestação. Assim, quando o serviço de fornecimento de energia elétrica é prestado "uti singuli", cujo usuário é individualmente beneficiado, a descontinuidade do seu fornecimento não fere a proibição consignada na Lei nº 7.783/89, já que não afeta, de regra, a incolumidade da população.

Diferentemente, em sendo o serviço prestado a uma coletividade indistinta, a ruptura na continuidade de sua prestação tem a potencialidade de causar danos de repercussão incalculável à sociedade, logo, a sua interrupção não pode prevalecer. Outrossim, ainda que o serviço de energia elétrica seja prestado individualmente a um determinado usuário, quando a atividade por ele desenvolvida serve-se ao interesse público, v.g., hospitais, unidades de tratamento de água e esgoto, controle de tráfego aéreo (art. 94, § único, da Resolução nº 456/00, de 29 de novembro de 2000, elaborada pela ANEEL), deve ser vedada a interrupção em virtude do caráter essencial que exprime.

Em síntese, pode-se dizer que a tutela jurídica do serviço público de fornecimento de energia elétrica perpassa pela função social a ela subjacente, em especial com a aferição, no caso concreto, da essencialidade do serviço em questão, com arrimo no art. 10, I, combinado com o art. 11, "caput" e § único, da Lei nº 7.783/89.


6. O SERVIÇO PÚBLICO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA NA RELAÇÃO DE CONSUMO

A prestação do serviço público de fornecimento de energia elétrica também está sujeita à disciplina do Código de Defesa do Consumidor, mormente quando vislumbrada a presença do fornecedor – seja ele o próprio Poder Público ou o particular que age em seu nome – e do usuário final beneficiado com a atividade (art. 2º, "caput" e parágrafo único, do CDC). Ademais, o seu fornecimento mediante concessão, permissão ou autorização não afasta a qualidade de fornecedor do terceiro prestador do serviço, salvo quando a energia provida integra a cadeia produtiva daquele que aparentemente seria o destinatário da operação.

Essa conjuntura, porém, distingue-se da relação firmada entre o Poder Público concedente e o particular responsável pela prestação direta do serviço de utilidade pública, regida preponderantemente pelas normas e princípios de Direito Público. se, assim, uma relação triangular em que figuram como sujeitos o Poder Público concedente, a concessionária prestadora do serviço, e o consumidor destinatário final daquele serviço colocado à sua disposição.

6.1. A NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO DA RELAÇÃO ENTRE PODER CONCEDENTE E CONCESSIONÁRIA

O primeiro liame da relação jurídica estabelecida no fornecimento de energia elétrica é aquela em que se verifica a delegação da prestação do serviço pelo Poder Público ao terceiro executor da atividade (também chamado de distribuidor). De acordo com o que prescrevem os arts. 21, XII, e 175, da CF, a exploração de determinados serviços, inclusive o de fornecimento de energia elétrica, sujeita-se ao regime de concessão, autorização ou permissão e, em qualquer caso, será precedido de procedimento licitatório. Retira-se daí o fundamento constitucional de que a relação entre o Poder Público e o terceiro delegatário está disciplinada essencialmente pelo Direito Público. [13] Nesse sentido, a relação sob enfoque submete-se à disciplina da Lei nº 8.987/95, que regulamenta as normas gerais para a concessão e permissão dos serviços públicos.

A titularidade do serviço público está reservada ao Poder Público obrigado a disponibilizá-lo à sociedade. Assim, a promoção do serviço corre a cargo do Estado, uma vez que este se arvorou da responsabilidade de ofertar as atividades consideradas substanciais para o desenvolvimento social. Não se confunde, porém, com a titularidade da prestação, que poderá ser transferida a um particular quando o interesse público assim o exigir. São atividades econômicas em que a presença direta do Estado pode não ser a solução mais apropriada, sob pena de tornar a prestação do serviço ineficiente, ao revés do que exige o art. 37, "caput", da CF.

Para isso, atribui-se ao particular a responsabilidade pelos riscos inerentes ao desempenho do serviço como em qualquer outra atividade empresarial, v.g., custos operacionais, encargos sociais e tributários, remuneração de mão de obra, obrigações perante terceiros.

Consoante determinado no art. 175 da CF, combinado com o art. 14 da Lei nº 8.987/95, e art. 2º da Lei nº 8.666/93, a titularidade da execução pode ser alvo de delegação a um terceiro estranho à estrutura do Estado, desde que entabulada por prévia licitação. A exigência do procedimento preparatório, ademais, objetiva a escolha da proposta que melhor atenda ao interesse público para, ao final, concluir-se num contrato administrativo.

Sabendo-se de antemão que a relação jurídica constituída entre o Estado e a concessionária de energia elétrica reveste-se das prerrogativas de Direito Público, não é demais destacar que a variação abrupta nos encargos ou obrigações estabelecidas no contrato administrativo poderá ensejar a readaptação destas à realidade concreta, tal como previsto no art. 9º, §§ 2º e 4º, da Lei nº 8.987/95. Surge daí a necessidade de perfazer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, isto é, a estabilização da "relação entre os encargos fixados no ato concessivo e o lucro então ensejado ao concessionário". [14]

Assim, com fulcro no princípio da proporcionalidade, resguarda-se a intangibilidade da cláusula econômica do contrato, materializada num núcleo imutável que deve se estender durante a vigência do ajuste. Do contrário, estar-se-ia ratificando o enriquecimento ilícito do Erário Público em detrimento da justa remuneração ao concessionário pela entrega do objeto pactuado (fornecimento de energia elétrica).

6.2. A NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO DA RELAÇÃO ENTRE CONCESSIONÁRIA E USUÁRIO

A outra extremidade do liame formado na prestação dos serviços públicos é a que envolve a figura do executor da atividade que age em nome do Estado e o usuário do serviço. Há quem entenda que o vínculo estabelecido entre concessionário ou permissionário fornecedor de eletricidade e o respectivo usuário do serviço caracteriza-se como um "contrato especial de venda de energia", regido pelas disposições do Direito Privado, restando afastada a hipótese de um contrato administrativo. [15] De acordo com esse entendimento, a parte contratada (prestador do serviço) se comprometeria em fornecer regularmente a eletricidade ao beneficiário-contratante (usuário final), este obrigado a pagar pela quantia de energia consumida.

Por se tratar de um contrato bilateral, seriam aplicáveis as disposições do Código Civil, em especial a hipótese de recusa à prestação da obrigação por uma das partes quando a outra não cumprir o pactuado, conforme previsto nos arts. 476 e 477, do CC/2002. Desse modo, a lesão decorrente do inadimplemento ensejaria resolução contratual com a respectiva indenização por perdas e danos.

Raul Luiz Ferraz Filho e Maria do Socorro Patello de Moares compartilham da mesma interpretação, e lecionam que o fornecimento de energia elétrica envolve necessariamente um negócio jurídico de natureza privada, para cuja validade exige-se agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. [16]

Por outro lado, a aplicação das disposições do Código Civil aos contratos de fornecimento de energia elétrica não afasta a incidência das normas de proteção ao consumidor, em inevitável atenção ao art. 5º, XXXII, da CF, bem como ao art. 48, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Uma vez inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais, a defesa do consumidor assume a feição de norma-princípio, cuja existência vincula o legislador, a Administração Pública e o Poder Judiciário no exercício de suas funções.

No mesmo sentido, o art. 170, V, da CF, elege como princípio da ordem econômica a defesa do consumidor, de cuja observância obriga não só o Poder Público, mas também o particular, enquanto agente de interferência no cenário econômico. Note-se que o dispositivo em referência afina-se com o texto do "caput" do art. 170, vez que, embora a iniciativa privada seja livre na sua origem, o seu exercício encontra limite no respeito à defesa do consumidor.

No fornecimento de energia elétrica, destarte, verifica-se que o objeto da relação é a prestação de um serviço, porém, com a característica peculiar que é a sua utilidade pública. O concessionário ou permissionário, nesse caso, funciona como fornecedor-intermediário em relação ao usuário-consumidor final, visto que desenvolve atividade de distribuição ou, mais precisamente, de prestação de serviços. Caracteriza-se aí a relação de consumo entre fornecedor e consumidor nos moldes dos arts. 2º e 3º, do CDC.

Consoante definido no art. 3º, § 2º, do CDC, entende-se por serviço toda e qualquer atividade prestada ao mercado de consumo, mediante remuneração. Obviamente, se a atividade não se destina ao consumo, mas à integralização do processo de produção, não há que se falar em prestação de serviço para efeito de aplicação da legislação de proteção ao consumidor. Vale dizer,se a energia elétrica é utilizada na fabricação de quaisquer produtos, ou no acondicionamento destes para fins de comercialização, isso se constituirá em mais um insumo do processo produtivo ou mercantil, retirando do industrial ou do comerciante a condição de destinatário final. [17]

De outra maneira, os tributos em geral não podem ser inseridos no âmbito da relação de consumo, já que inexistem as figuras típicas de fornecedor e consumidor, mas uma relação tributária entre Estado e contribuinte. Tampouco há comercialização de um produto ou prestação de um serviço, mas pagamento compulsório de tributo quando verificado o fato gerador da obrigação. Por essa razão, os serviços públicos remunerados mediante tributo geral ou taxa (espécie tributária) não permitem a caracterização da relação de consumo. Diversamente, quando o serviço é específico e facultativo, portanto, custeado por tarifa, há relação de consumo entre o prestador e o usuário. Nesse sentido, não há se confundir [...] referidos tributos com as 'tarifas', estas, sim, inseridas no contexto dos 'serviços' ou, mais particularmente, 'preço público', pelos 'serviços' prestados diretamente pelo Poder Público, ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa privada. [18]

Na grande maioria dos contratos de fornecimento de eletricidade, em particular, verifica-se que as cláusulas ali previstas são estipuladas unilateralmente pelo prestador do serviço ou pelo Poder Público concedente. Via de regra, o destinatário final da operação não interfere nas condições gerais da avença, v.g., o preço a ser pago como contraprestação, obrigações acessórias relativas à inadimplência (v.g., multa, juros), índice de reajuste, padrões técnicos de instalação. Não há, assim, plena autonomia quanto à disposição das condições contratuais.

A manifestação da vontade se resume à opção por aderir ao conjunto de regras previamente fixadas, concordando integralmente com elas, ou simplesmente não aceitá-las, o que implica, nesta última hipótese, em óbice ao nascimento do ajuste. De tal modo, quando o usuário solicita à concessionária o fornecimento de energia elétrica para sua residência, por exemplo, submete-se a uma espécie de "contrato de adesão", cuja disciplina recebe especial atenção no art. 54 e seguintes, do CDC.

No mesmo compasso, o art. 6º, X, do CDC, arrola como direito básico do consumidor a "adequada e eficaz prestação dos serviços públicos", o que, em última análise, coaduna-se com a previsão do art. 175, IV, da CF. Vale dizer, a prestação do serviço público deve atender às expectativas que dele legitimamente se espera, tanto no aspecto quantitativo quanto no aspecto qualitativo.

Destarte, o "modus operandi" da prestação deve se amoldar às necessidades dos usuários, bem como atingir o objetivo para o qual foi criado, que é, ao final, a entrega do bem da vida (no caso, a energia elétrica) ou a satisfação de interesses sociais relevantes. Mais uma vez o princípio da eficiência lançado no "caput" do art. 37, da CF, serve de lição para a diretriz da relação entre o prestador do serviço – delegatário, portanto, do Poder Público – e o consumidor, destinatário final do serviço.

A importância da sujeição dessa relação ao conjunto normativo de proteção ao consumidor pode ser sintetizada na possibilidade de se rediscutir o conteúdo dos contratos que, de outra maneira, estaria preservado sob o manto do "pacta sunt servanda". Mesmo nos contratos de adesão, embora a anuência do usuário possa aparentemente sugerir uma expressa concordância com os termos ali inseridos, nada obsta a possibilidade de revisão judicial do pacto quando presentes cláusulas ou condições que impunham ao consumidor obrigações exorbitantes ou contrárias à boa-fé. [19] Também as condutas contratuais que visam excluir, diminuir ou dificultar o exercício de direitos dos consumidores merecem a interferência do Poder Judiciário, "ex vi" do art. 6º, IV e V, do CDC.

Uma vez caracterizada a relação de consumo entre a concessionária e o usuário do serviço, deverá o liame receber a tutela específica da Lei nº 8.078/90 e, subsidiariamente, das demais disposições gerais do Direito Privado não conflitantes com a primeira, em atenção à regra de aplicação de direito intertemporal consignada no art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil. Incipiente, pois, uma interpretação sistemática do Ordenamento Jurídico pátrio, com vistas à preservação, sobretudo, dos princípios e mecanismos de defesa próprios que incidem sobre a relação de consumo, todos arraigados em matriz constitucional.

6.3. A PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO COMO UNIDADE CONSUMIDORA

Qualquer pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final pode ser compreendida como consumidor, consoante definição do art. 2º, "caput", da Lei nº 8.078/90. A partir da análise do dispositivo citado é possível constatar que não há restrição quanto à espécie de pessoa jurídica tutelada pela sistemática do CDC. Qualquer pessoa jurídica, seja ela uma pequena ou micro empresa, uma sociedade civil ou mesmo um grande empreendimento comercial, portanto, não está excluída da proteção normativa quando investida na qualidade de consumidora.

Também não há distinção entre a pessoa jurídica de Direito Privado e a pessoa jurídica de Direito Público para efeito de qualificá-las como consumidoras. Ademais, a "mens legis" é no sentido de estender a proteção do CDC a todo hipossuficiente na relação de consumo, ainda que constituído sob a forma de pessoa jurídica (art. 4º, I, do CDC). Em que pese essa vulnerabilidade ser relativa, o diploma normativo não recusa proteção às pessoas jurídicas de Direito Público, conquanto destinatárias finais de produtos ou serviços oferecidos no mercado de consumo.

Embora questionável a vulnerabilidade econômica da pessoa jurídica de Direito Público em face do fornecedor, remanesce ainda a sua fragilidade quanto ao domínio do aspecto técnico envolvido na relação. Nesse sentido, o conhecimento dos elementos atinentes aos meios de produção e distribuição de produtos e prestação de serviços, bem como a escolha do seu "modus operandi", permanece sob o monopólio do fornecedor. [20] Além disso, o art. 4º, I, do CDC, expressamente reconhece a vulnerabilidade do consumidor sem restrições, razão porque essa presunção também milita em favor da pessoa jurídica de Direito Público.

Não é demais frisar que, se o produto ou serviço adquirido integra o custo operacional da atividade desenvolvida pela pessoa jurídica de Direito Público, rompe-se a relação de consumo. Por outro lado, se o bem ou serviço compõe apenas as suas despesas, não sendo aproveitado em nenhuma fase do processo produtivo, há típica relação de consumo e, portanto, objeto de tutela específica da Lei nº 8.078/90.

Em sintonia com a abrangência pretendida pela norma, o art. 51, I, do CDC, dispõe acerca da possibilidade de limitação de indenização, justificadamente, nas relações de consumo travadas entre fornecedor e a pessoa jurídica consumidora, não estipulando qualquer empecilho à inclusão da pessoa jurídica de Direito Público no polo passivo da relação.

No caso do serviço de fornecimento de energia elétrica, a pessoa jurídica de Direito Público também poderá afigurar-se como destinatária final, mormente quando contrata o serviço para utilização, v.g., em suas repartições públicas, hospitais, praças, ginásios de esportes. Nesta situação, verifica-se que o serviço fornecido apenas acresce às despesas para a manutenção dos espaços públicos, sem integrar uma cadeia produtiva de fomento a outra atividade qualquer.

Destaque-se que a relação contratual estabelecida no fornecimento de energia elétrica prestado pela concessionária ao consumidor, ainda que o destinatário final seja uma pessoa jurídica de Direito Público, rege-se eminentemente pelas disposições do Direito Privado. Nesta seara, porém, a Administração Pública não assume posição privilegiada em relação ao particular prestador do serviço, característica esta adstrita aos contratos administrativos firmados sob a égide do Direito Público. A propósito, Luiz Gonzaga Pereira Neto leciona que "os contratos de fornecimento de energia elétrica a entes públicos não podem ser considerados contratos de direito administrativo, uma vez que a Administração não ocupa, nos mesmos, posição privilegiada em detrimento dos demais contratantes". [21]

O ente público titular do prédio beneficiado com o fornecimento da energia elétrica, portanto, receberá do fornecedor do serviço o mesmo tratamento dispensado aos demais particulares, isto é, o de unidade consumidora – compreendidos todos os direitos e obrigações advindas dessa caracterização.

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Sobre o autor
André Luiz Berro Pereira

Advogado Especialista em Direito Público pela UNIFACS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, André Luiz Berro. Aspectos controversos da interrupção do fornecimento de energia elétrica por falta de pagamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1946, 29 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11902. Acesso em: 4 nov. 2024.

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