7. A INTERPRETAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAR SERVIÇOS CONTÍNUOS, QUANDO ESSENCIAIS
Como corolário do princípio da continuidade inerente aos serviços públicos de um modo geral, os misteres prestados pelo Estado, direta ou indiretamente, devem ser mantidos sem paralisação, em razão do interesse público que exprimem. Afinal, não haveria sentido em alçar à responsabilidade do Poder Público a titularidade de determinados serviços, excluindo-os do campo da livre iniciativa privada (ou reservando-os a determinados sujeitos – concessionários, permissionários ou autorizatários – submetidos a normas regulamentares), senão para que a sua manutenção fosse garantida à população que deles necessita. Por isso, também o CDC, em seu art. 22, estabeleceu como obrigatória a continuidade dos serviços públicos considerados essenciais, "in verbis":
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.
A partir da leitura do dispositivo é possível inferir que, além de adequados, eficientes e seguros, a norma em comento exige o elemento adicional da "continuidade" quando a essencialidade estiver presente no serviço prestado. Com efeito, a doutrina tem entendido que "ocorre a chamada falta do serviço, gerando a responsabilidade da administração pública, quando o serviço não funciona, devendo funcionar (falta de eficiência); funciona mal (falta de adequação); ou funciona tardiamente (falta de continuidade)". [22]
O princípio da continuidade, então, tem lugar não só nas relações submetidas ao regime jurídico de Direito Público (como no exemplo da relação entre Poder Público concedente e concessionária), mas também quando o objeto do contrato de natureza privada envolver a prestação de um serviço público essencial em que, não obstante, o Estado é titular.
Analisando a relação jurídica triangular com um todo – isto é, o ciclo estabelecido entre o Poder Público concedente, a concessionária executora do serviço, e usuário destinatário final da prestação –, é possível observar que há incidência tanto de normas imperativas de Direito Público como de normas de caráter privado. Depreende-se daí uma confluência entre interesse público e interesse privado. [23] Em outras palavras, existem pontos de convergência onde os interesses públicos e privados se confundem, o que não implica em óbice à aplicação de regras e princípios próprios de ambas as searas jurídicas.
Não há, assim, uma veemente dicotomia que permita apontar com exatidão os limites dos interesses envolvidos. Diversamente, verificar-se-á uma linha tênue em que, de acordo com a natureza jurídica da relação, ora haverá preponderância das normas de Direito Público, ora de Direito Privado, sem que haja, no entanto, absoluta exclusão de umas em detrimento das outras.
Na concessão do serviço público de fornecimento de energia elétrica (relação entre Poder Público concedente e concessionária), v.g., regido por típico contrato administrativo, haverá a preponderância das normas próprias do Direito Público, o que não inviabiliza a observância também de regras de caráter privado, como os direitos e obrigações dos usuários referidos na Lei nº 8.078/90 (art. 7º, "caput", da Lei nº 8.987/95), e a imposição à concessionária para que ofereça ao consumidor o mínimo de seis opções de datas distintas para o vencimento de seus débitos (art. 7º-A, da Lei nº 8.987/95).
Já no fornecimento de energia elétrica diretamente à unidade consumidora (relação entre concessionária e consumidor), quer dizer, a execução propriamente dita do serviço, evidente a preponderância de normas de Direito Privado, uma vez que os contratos são firmados sob a expressão da vontade das partes, em que pese a maioria deles ser caracterizada como "contrato de adesão". Ainda assim, observar-se-á a incidência de algumas disposições de caráter público, a exemplo dos princípios da eficiência (art. 37, "caput", da CF e art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95), da informação (art. 7º, II, da Lei nº 8.987/95) e da continuidade dos serviços públicos (art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95 e art. 22, "caput", do CDC).
Por outro lado, o § 3º do art. 6º da Lei nº 8.987/95, ao estatuir sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, expressamente dispõe acerca das hipóteses em que, uma vez caracterizadas, a interrupção não constitui descontinuidade do serviço, quais sejam: situações emergenciais, razões de ordem técnica ou de segurança das instalações, e a inadimplência do usuário.
Há quem entenda que, a partir da literalidade do art. 22, do CDC, todo e qualquer serviço público considerado essencial jamais pode ser interrompido. Para Bruno Miragem, em função da essencialidade investida no serviço público de fornecimento de energia elétrica, "intuitivo que não lhe seja permitida a interrupção, sob pena de graves prejuízos a pessoa, quando consumidor residencial, vulnerável, que tem na energia fornecida para sua moradia, um meio fundamental para sua sobrevivência". [24] Segundo esse entendimento, portanto, a solução de continuidade do serviço essencial é medida ilegal e desautorizada pelo sistema do CDC, levando-se em consideração o elemento humanitário envolvido em sua prestação.
Pretende-se, pois, uma mitigação da obrigação de pagar – elemento contratual que reflete interesses econômicos – em benefício da manutenção da qualidade de vida dos indivíduos, como supedâneo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e da Política Nacional de Relações de Consumo (art. 4º, "caput", do CDC). Ainda segundo essa corrente, a interrupção do serviço essencial ultrapassa a responsabilidade patrimonial do devedor, fazendo recair sobre si, por exemplo, as nefastas consequências da carência de eletricidade em sua moradia, o que evidencia uma inadmissível responsabilidade pessoal.
Luiz Antônio Rizzatto Nunes, sustentando a hipotética inconstitucionalidade do § 3º do art. 6º da Lei nº 8.987/95, defende que todo serviço essencial é contínuo por sua própria natureza, logo, o corte do seu fornecimento implica em interrupção irregular, da qual urge a responsabilidade objetiva da concessionária pela violação direta ao direito do cidadão. [25] Em outro dizer, a continuidade é um elemento substancial do serviço essencial, irrefutável por cláusula contratual ou mesmo por disposição legal. Essa interpretação, portanto, considera que a continuidade do serviço, desde que essencial, é um princípio absoluto, intocável por qualquer outro ato normativo.
Nesse contexto, surge a dificuldade de definição de "serviço essencial". O art. 9º, § 1º, da CF, outorga à lei ordinária a prerrogativa de definir quais seriam os serviços essenciais em que o direito de greve é limitado em função da garantia das necessidades inadiáveis da comunidade. Assim, aplicar-se-á ao conceito de essencialidade buscado no art. 22 do CDC, por analogia, o disposto na Lei nº 7.783/89 (Lei de Greve), em que são arroladas as atividades das quais não pode haver interrupção total por conta do movimento paredista. A tese defendida por esta corrente doutrinária consiste que, em função de o art. 10, I, da Lei nº 7.783/89, considerar essencial a produção e distribuição de energia elétrica, estaria obstaculizada a sua interrupção ante a proibição legal.
Segundo ainda os que advogam a impossibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica, a supressão do serviço pela concessionária não pode lograr êxito, uma vez que a medida utilizada imprime ao consumidor um gravame desnecessário, em conflito com o princípio da proporcionalidade. Isso porque o fornecedor do serviço poderia valer-se da demanda judicial para a persecução de seu crédito sem, entretanto, sobrestar a execução do serviço em prejuízo do usuário. [26]
Poder-se-ia questionar, na sequência, que a interrupção se operacionaliza como um instrumento indireto de cobrança coercitiva que, além de extrapolar os limites da legalidade, anuncia o exercício de autotutela do fornecedor. Vale dizer, a ameaça de interrupção tem caráter meramente sancionador, resquício de justiça privada, já que o crédito não é plenamente satisfeito com a supressão do serviço, mas com o efetivo pagamento. Nesse carrear de ideias, o consumidor é submetido a um procedimento vexatório de cobrança tão logo seja compelido a pagar, sob pena do subsequente corte do serviço, o que viola o art. 42, do CDC.
Tendo em vista que o cumprimento da obrigação deve ocorrer de modo menos gravoso ao consumidor inadimplente, ante a existência de duas vias possíveis para a manifestação do credor, isto é, interrupção do serviço ou cobrança judicial, à concessionária não seria lícito optar pela primeira. O executor do serviço, portanto, seria obrigado a abdicar da prerrogativa de rompimento do vínculo contratual para socorrer-se à tutela judicial, mantendo-se o serviço até ulterior decisão em contrário.
Semelhante entendimento acusa que, embora a concessionária tenha direito à contraprestação pecuniária, o empreendimento assume o risco pelo inadimplemento de alguns usuários. [27] Isto porque, como qualquer outro negócio rentável e que objetive o lucro, a prestadora do serviço tem condições de planejar a avaliação de suas perdas. Assim, a mera potencialidade de prejuízo decorrente da inadimplência obviamente já está embutida no preço da tarifa cobrada aos demais usuários adimplentes.
De outro modo, o art. 6º, X, do CDC, dispõe que é direito do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral. E o art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95 complementa: serviço adequado é aquele que satisfaz, dentre outras condições, a continuidade.
De fato, havendo controvérsia na aplicação da lei, entende-se que as normas do CDC devem ser interpretadas favoravelmente ao consumidor – parte vulnerável na relação jurídica entabulada. Não obstante, assim também o recomenda o próprio conjunto principiológico inaugurado por aquele diploma normativo. Esta noção pode ser extraída do art. 4º, "caput" e VII, do CDC, mormente ao estabelecer como um dos princípios informadores da Política Nacional de Relações de Consumo a "racionalização e melhoria dos serviços públicos".
Num primeiro momento, pode-se questionar acerca de um aparente conflito entre a Lei nº 8.987/95, ao estatuir as hipóteses que descaracterizam a descontinuidade do serviço público, e a Lei nº 8.078/90, ao não permitir, em tese, a interrupção daquela atividade. Admitindo-se, por hipótese, a existência de antinomia entre os diplomas normativos, necessária a aplicação da regra de solução de conflitos de leis, articulada no art. 2º, §§ 1º e 2º da LICC.
A doutrina contemporânea tem reiteradamente afirmado que o CDC constitui um microssistema ou, para alguns, um "subsistema autônomo" que estabelece um corte transversal no sistema jurídico. [28] Sendo assim, infere-se que o CDC disciplina, de modo particular, as relações de consumo, logo, um diploma especial que prevalece sobre disposições gerais. De outro lado, a Lei nº 8.987/95 dedica-se a situar minuciosamente as regras inerentes ao regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, o que consubstancia o caráter especial também deste último diploma normativo.
Tendo em vista que ambas as normas, além de mesma hierarquia (leis ordinárias federais), são igualmente especiais no que tange aos respectivos objetos, remanesce a regra de aplicação da norma posterior que estabelece disposições especiais a par das já existentes (art. 2º, § 2º, da LICC) sem, entretanto, revogá-las. Vale dizer, impinge à situação concreta a interpretação sistemática do CDC ajustado às disposições da lei nova, no caso a Lei nº 8.987/95, no sentido de que uma deve complementar a outra.
Feitas essas ponderações, cabe destacar que o fornecimento de energia elétrica, quando prestado de modo individual ou "uti singuli", é remunerado diretamente pelo próprio usuário, na modalidade de tarifa. Com efeito, a sua fruição é facultativa, razão porque o pagamento somente é devido quando da efetiva utilização do serviço. Nessa hipótese, a energia elétrica não beneficia uma coletividade indeterminada, mas apenas o usuário contratante daquele serviço. Outrossim, a cessação do fornecimento de energia decorrente da falta de contrapartida pelo consumidor não afeta o interesse da coletividade, limitando-se à esfera patrimonial do particular inadimplente.
Diversamente, quando a utilização do serviço é compulsória, não pode a Administração Pública suprimi-lo ante a falta de pagamento. Nesse caso, sua remuneração se exprime através de tributo, cuja cobrança possui via própria para a satisfação do crédito (execução fiscal). [29]
Não há que olvidar, destarte, que o art. 10, I, da Lei nº 7.783/89, ao estatuir a produção e distribuição de energia elétrica como serviço essencial, deve estar em consonância com o parágrafo único do art. 11, ou seja, são inadiáveis os serviços cujo desatendimento coloque em perigo iminente a sobrevivência, a saúde, ou a segurança da população. Em suporte, o Professor Ronald Amorim e Souza pontifica que "os serviços, assim, serão tidos como essenciais sempre e quando, interrompidos, venham a representar grave ameaça ou perigo à vida, à segurança ou à saúde de qualquer pessoa, de parte ou de toda a população". [30]
Em termos práticos, a falta de energia elétrica a um determinado consumidor não causa calamidade social nem põe em risco a incolumidade de parte ou de toda a população, quando muito, um mero dissabor pessoal. Ora, se o art. 22 do CDC impunha a continuidade do serviço público somente quando o for essencial, por exclusão, destituído desse elemento, embora enquadrado no rol de serviços públicos, a obrigatoriedade de ininterrupção não prevalece.
Obriga-se a concessionária, entretanto, a não deixar de oferecer o serviço a quem se dispunha a pagar pelo preço convencionado. Diferentemente dos demais negócios operados sob a autonomia da vontade, as concessionárias de serviços públicos não são absolutamente livres para escolher a quem prestá-los. Vale dizer, a atividade, embora privada e livre em sua iniciativa, não admite plena liberdade em seu exercício, eis que sofre especial atenuação em face da função social do serviço público, com lastro no art. 170, "caput" combinado com o seu inciso III, e art. 5º, XXIII, da CF.
O interesse público na prestação do serviço deve ser compreendido a partir da premissa de que, atendidas as condições técnicas e jurídicas, não pode subsistir negativa à sua oferta, [31] conferindo tratamento prejudicial a quem, em igualdade de condições, está apto a ser usuário do serviço. Em outras palavras, é defeso à concessionária, ao seu exclusivo talante, decidir pela disponibilidade ou não do serviço a quem preencha ou não as qualidades do perfil de clientela por ela desejado. Nesse sentido, é possível afirmar que:
‘Os serviços essenciais devem ser contínuos’, no sentido de que não podem deixar de ser ofertados a todos os usuários, vale dizer, prestados no interesse coletivo. Ao revés, quando estiverem em causa interesses individuais, de determinado usuário, a oferta de serviço pode sofrer solução de continuidade, se não forem observadas as normas administrativas que regem a espécie. [32]
Ao descumprir com a obrigação de remunerar pelo serviço auferido, o usuário rompe unilateralmente o vínculo outrora ajustado, ensejando à outra parte, também, a correspondente desobrigação de adimplir com o que pactuou. Outrossim, ausente o pagamento da tarifa pelo consumidor, de um lado, não se pode compelir a concessionária no fornecimento ininterrupto de energia.
Do contrário, apenas uma das partes estaria cumprindo regularmente com o seu encargo, enquanto que a outra sempre seria beneficiada com a própria inércia. Em termos práticos, os débitos do usuário acumular-se-iam indefinidamente até que a sua consciência lhe aprouvesse de outro modo. Enquanto isso, o custo operacional do sistema seria suportado parcialmente pelos usuários adimplentes ao pagarem preços mais elevados nas tarifas. Nesse sentido, também não está descartada a possibilidade de o próprio Poder Público intervir em parcela das despesas, tendo em vista o favorecimento da modicidade das tarifas (art. 11, da Lei nº 8.987/95).
De toda sorte, haveria uma "socialização" desequilibrada dos custos, tendo em vista que muitos que podem pagar não o fazem por mera desídia, enquanto outros tantos acabariam suportando o encargo geral. Vale mencionar que, havendo modificação na cláusula financeira do contrato, é lícito à concessionária pleitear revisão das tarifas, restabelecendo-se o equilíbrio econômico-financeiro anterior, "ex vi" do art. 9º, §§ 2º, 3º e 4º, da Lei nº 8.987/95.
Embora a atividade empresarial deva suportar os riscos que lhes são inerentes, a Lei nº 8.987/95, em seu art. 11, é severa ao limitar o uso de outras fontes de receitas, admitindo-as apenas com a finalidade de viabilizar a modicidade dos preços das tarifas, e não como forma de captação extraordinária de lucros. Essa disposição, destarte, advém da "política tarifária" a cargo de lei ordinária, a ser observada no regime de concessão ou permissão, conforme adverte art. 175, § único, II, da CF. Conclui-se, portanto, que as tarifas são as principais fontes de remuneração das concessionárias, já que as demais advindas de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, visam tão-somente assegurar preços razoavelmente acessíveis à população. [33]
Os contratos sinalagmáticos, dos quais é espécie o fornecimento de energia elétrica ao consumidor final, exigem reciprocidade nas obrigações, ou seja, cada contratante deve cumprir com a sua parte no ajuste. Havendo quebra na sintonia contratual, nenhum dos contratantes pode exigir do outro o implemento correspondente, sem antes ter cumprido com o que lhe cabia na avença, conforme elucida o art. 476, do CC/2002.
Se isto acontecer, cabe ao demandado opor-se ao cumprimento da obrigação, ante o inadimplemento de quem competiria prestá-la em primeiro lugar. É a solução indicada pelo art. 477, do CC/2002, possibilitando-se a defesa através da chamada da "exceptio non adimpleti contractus". Com efeito, a interrupção do fornecimento de energia elétrica como consectário do inadimplemento do consumidor não possui natureza jurídica de sanção. Não visa, de modo algum, retirar abruptamente o serviço do usuário, como um instrumento indireto de penalidade ou coerção. Diversamente, exprime a ideia de oposição do credor em cumprir a prestação do serviço, sob o fundamento de falta de pagamento a que competia ao usuário.
Não obstante, a cessação do serviço até então fornecido também pode ser encarada como consequência de uma resolução por inexecução voluntária do contrato. [34] Verificado o descumprimento da prestação pecuniária, por culpa do devedor, desenha-se a hipótese de encerramento do vínculo, o que afasta a exigibilidade do seu objeto.
Com o desfazimento da relação contratual, não há mais o que ser prestado em favor do usuário contratante, isto é, desaparece o objeto do contrato – o serviço de fornecimento individual de energia elétrica. Assim, a interrupção do serviço não se afigura medida unilateral com caráter sancionador, mas reflexo da extinção da relação contratual, mediante resolução.
Tecidas essas reflexões, não é demais destacar que a possibilidade de interrupção do serviço, mediante a ausência do pagamento da tarifa correspondente, também pode ser socorrida pela boa-fé objetiva inerente aos contratos sinalagmáticos, consoante prenuncia o art. 113 do CC/2002. Nesse sentido, a conduta do indivíduo deve ajustar-se ao modelo ideal de comportamento social, pautado nos brios da honestidade, lealdade e probidade. [35]
Não há que perquirir, por puro exercício de ilação, o sentimento subjetivo ou psicológico do devedor que o conduziu à inadimplência. Diversamente, averiguar-se-á a compatibilidade do comportamento adotado "in concreto" com a regra de conduta socialmente admitida, cuja expectativa circunda a relação contratual. Vale dizer, ao firmarem o pacto oneroso de prestação de serviço, é legítimo que ambas as partes esperem, uma da outra, um comportamento diligente, pautado na retidão e desvencilhado de trapaças, exploração, desdém ou qualquer outro tipo de subversão da lógica contratual.
Com efeito, os compromissos mutuamente assumidos, num "plano ideal", deveriam ser criteriosamente observados, inclusive quanto à contraprestação pecuniária, sob pena de ratificar precedente ao desacordo generalizado. Ressalvam-se, porém, as hipóteses de excesso ou abuso produzido no contexto das cláusulas contratuais que, além de rechaçados pelo art. 51 e seguintes do CDC, igualmente violam a boa-fé contratual.
Analisando a questão por outra vertente, também não se pode admitir que a concessionária seja compelida a fornecer serviço ininterrupto sem a respectiva remuneração. De acordo com o princípio da legalidade consubstanciado no art. 5º, II, da CF, como garantia e direito fundamental, vigora para o particular a lógica da não-contradição, máxime do brocardo em que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Ora, se não há determinação normativa de gratuidade da prestação, inexiste direito subjetivo à percepção de serviço sem a devida remuneração.
Ao reverso, uma hipotética presunção de gratuidade apenas importaria em ratificar o locupletamento sem causa do usuário desidioso, já que, sem pagar pelo serviço prestado, dele se beneficia diretamente. Nessa situação, o art. 884, "caput", do CC/2002, é claro ao estatuir o dever de restituir o que indevidamente se auferiu.
Ao proceder a interrupção do fornecimento de energia, desde que respeitadas rigorosamente as hipóteses de cabimento e os direitos dos usuários e consumidores, a concessionária atua sob o respaldo do art. 6º, § 3º, da Lei nº 8.987/95, dos arts. 14, I e 17, "caput", da Lei nº 9.427/96, além do art. 91 da Resolução nº 456/00 da ANEEL. Logo, sua conduta está revestida de licitude, eis que pautada em expresso permissivo legal. Mesmo o princípio da continuidade esculpido no art. 22 do CDC, e no art. 6º, § 1º, da Lei nº 8.987/95, caso compreendido sob o aspecto absoluto, não tem o condão de imunizar o inadimplente contra eventual interrupção do serviço, vez que este não se encontra em situação juridicamente protegida pela norma. [36]
Outrossim, caso impossibilitada a descontinuidade do serviço de forma idêntica e genérica a todo e qualquer usuário, tanto inadimplente quanto adimplente, restaria vulnerado o princípio da isonomia material (art. 5º, "caput", da CF). Isto porque o tratamento dispensado aos demais usuários, que se encontram numa mesma circunstância jurídica protegida, não se estende, necessariamente, àqueles que não partilham da mesma realidade, de modo que a situação desigual "in concreto" merece ser tratada desigualmente, na medida de seu desequilíbrio. [37]
Por todo o exposto, é razoável se entender que não é dada à concessionária a conveniência e oportunidade de oferecer o serviço quando e a quem lhe aprouver, nem tampouco suprimi-lo mediante ato desvencilhado de embasamento normativo. Em outras palavras, o art. 22 do CDC parece demonstrar que o princípio da continuidade ali inserido informa que o fornecedor não pode fazer cessar a prestação do serviço de modo abrupto, unilateral e arbitrário. [38]
Via de regra, portanto, preenchidas as condições técnicas e jurídicas para o uso ou consumo adequado da energia, não é lícito negar arbitrariamente o seu fornecimento. Assim, o serviço é contínuo no sentido de que a concessionária deve disponibilizá-lo permanentemente a toda a população, a fim de permitir o acesso dos consumidores individualmente considerados.