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A proteção da confiança legítima, o princípio constitucional da boa-fé e a resistência à tributação

A proteção da confiança legítima, o princípio constitucional da boa-fé e a resistência à tributação

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Para que haja reciprocidade na relação jurídico-tributária faz-se necessário segurança. Além de segurança jurídica, é preciso definir conceitos como proteção da confiança legítima, boa-fé objetiva e "nemo potest venire contra factum proprium".

1. A necessidade da tributação. A idéia de confiança

1.1. Tributação: necessidade social

Vivemos hoje, no Estado Fiscal [01]. Em todo o mundo, justifica-se a tributação pela necessidade de se manter os serviços públicos essenciais, de redistribuir renda etc, como assevera, v.g., Richard A. POSNER: "Taxation is sometimes intended to change the allocation of resources (…) or the distribution of wealth, but mainly it is used to pay for public services, though invariably with both allocative and distributive consequences…" (grifou-se) [02].

Essa imposição esteve presente em todos os tempos da humanidade. Régis Fernandes de OLIVEIRA, v.g., mostra o fenômeno tributário na Bíblia, na Grécia antiga, no Império Romano, no Império Macedônico, no governo visigodo e na Idade Média [03].

Há necessidades públicas a satisfazer. Conforme o mesmo OLIVEIRA: "Amplamente, pois, pode-se falar que tudo aquilo que incumbe ao Estado prover, em decorrência de uma decisão política, inserida em norma jurídica, é necessidade pública" [04]. Para alcançar esse desiderato, o Estado precisa de recursos – que são obtidos, basicamente, de dois modos:

a)sob a forma de receitas originárias: advindas da própria atividade estatal, mormente quando o Estado atua no domínio econômico – art. 173 da Constituição da República;

b)sob a forma de receitas derivadas: aquelas que o Estado busca no patrimônio do particular. Aqui surgem os tributos.

1.2. Proteção da confiança legítima

Para que haja reciprocidade na relação jurídico-tributária faz-se necessário o clima de segurança.

Nesse campo, para além da idéia genérica de segurança jurídica, é preciso conceituar algumas figuras específicas e distintas como: proteção da confiança legítima; boa-fé objetiva e nemo potest venire contra factum proprium. Aliás, já se disse que teoria nada mais é senão o conjunto de conceitos que nos serve para conhecer determinado domínio da realidade. Daí a importância da conceituação (e conseqüente distinção) dessas noções que, embora correlatas, não se confundem.

Heleno Taveira TÔRRES, em conferência proferida no X Congresso da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT, começa por advertir que, embora comumente apresentados na doutrina como expressões sinônimas ou meras decorrências um do outro, ou, ainda, aspectos diversos de uma mesma idéia, trata-se aqui de institutos diferenciados. E salienta que não podem jamais ser utilizados como panacéia para qualquer situação, quando, por exemplo, não se encontra argumento específico para discutir o caso concreto (observa TÔRRES que tal prática é comum no Poder Judiciário, seja em pedidos, seja em decisões, servindo a boa-fé a qualquer dificuldade). Esses excessos estariam, na verdade a prejudicar a utilidade e importância desses institutos no âmbito do Direito Positivo e, especialmente, no Direito Tributário.

Nessa ordem de idéias, percebe-se que há grande controvérsia na doutrina sobre se proteção da confiança legítima e boa-fé objetiva seriam, por um lado, realidades distintas e estanques ou, por outro, componentes de um mesmo tópico da teoria jurídica. Ferrenhas discussões são travadas a esse propósito (ao nosso sentir, desnecessária e inutilmente). Preferimos vislumbrar tais temas como fenômenos conceitualmente distintos (como ensina TÔRRES), porém correlacionados entre si (como são, aliás, os diversos institutos do Direito – que, embora pertencentes a ramificações diferenciadas, jamais se apartam da unidade geral do sistema, conferindo-se-lhes a idéia de harmonização e implicação recíproca). Em ciência, é necessário que cada realidade autônoma tenha designação própria, a fim de que haja precisão técnica da linguagem, bem como dos respectivos conceitos. Mas isso não significa, de forma alguma, que tais realidades sejam incomunicáveis. É com esse espírito que traçaremos, a seguir, algumas reflexões em derredor das lições de TÔRRES e DERZI.

De início, como adverte TÔRRES, é preciso afastar qualquer hipótese de vinculação desses conceitos a situações ilícitas, bem como afastá-los da idéia de segurança jurídica genérica (aquela segurança de proteção do sistema integral), e, ainda, dos casos que já estão regulados pelo Direito Positivo. Tais conceitos são nitidamente inspiradores de diversas regras legais já constantes de nosso sistema tributário [05]. Nessas hipóteses, o problema já é naturalmente solucionado pelo critério da regra positiva. Por isso mesmo, não é para esses casos que eles se aplicam (mas, ao revés, para aquilo que não se encontra legislado).

Em que sentido se pode falar em segurança jurídica? A expressão comporta mais de uma noção. Alfredo Augusto BECKER sempre lembrava: o jurista nada mais é que o semântico da linguagem do Direito. A cada momento que pensamos numa expressão jurídica, numa palavra jurídica, o que nos vem à mente é o campo de irradiação semântica desse termo.

Para melhor compreensão, partamos da bipartição do princípio da segurança jurídica, tantas vezes ensinada, em aulas e conferências, por Paulo de Barros CARVALHO. Noutras palavras: segurança jurídica tem dupla conotação, ou bi-direcionamento. Ela se volta para o passado e se arma para o futuro. Volta-se para o passado quanto protege aquelas situações já definitivamente consolidadas no pretérito: coisa julgada, ato jurídico perfeito, direito adquirido, garantia de irretroatividade do direito etc. Arma-se para o futuro quanto garante o administrado contra as mudanças que ocorrerão (ou poderão ocorrer), permitindo-lhe que se prepare; é a previsibilidade da atuação estatal – que no direito positivo se manifesta nos princípios da não-surpresa, da anterioridade tributária, da espera nonagesimal etc. Até aqui se trata da segurança jurídica em seu sentido genérico.

Porém, o princípio da proteção da confiança legítima é um aspecto bem mais sutil desse contexto. Direciona-se para o futuro (previsibilidade, imutabilidade das situações etc.), mas não para aqueles casos já garantidos pela estrita legalidade. Relaciona-se com o ambiente de direito seguro. Aqui se passa a falar no "estado de confiança" – que não mais se restringe à legalidade. O cidadão confia nos comportamentos do Estado e não pode ser prejudicado em razão da confiança que nele depositou. Acredita deter o direito legitimamente, até porque tal direito lhe fora concedido pelo próprio Estado. Enfim, nesses casos, o panorama fático no qual se encontra o indivíduo é gerado pela própria atuação estatal [06].

Instala-se esse estado de confiança, no âmbito do Poder Judiciário, verbi gratia, quando o Tribunal decide reiteradamente em certo sentido, levando o jurisdicionado a crer que continuará a adotar a mesma orientação no que tange aos casos idênticos futuros. Essa justa expectativa, por vezes, se frustra.

Pode-se mencionar como exemplo desse fenômeno a seqüência de julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, na qual a Corte rejeita a aplicação de sua antiga Súmula 584 [07] (aprovada em Sessão Plenária de 15-12-1976), por considerá-la ofensiva ao princípio da irretroatividade tributária, mormente após o advento da Constituição da República de 1988. Embora a Súmula não tenha jamais sido cancelada, houve a justa expectativa de que o Tribunal não mais a aplicasse. Expectativa esta que se quebrou com a recente "ressurreição" da Súmula 584 – e, com ela, ambiente de imprevisibilidade e insegurança jurídica [08].

Daí a lição de Misabel DERZI, com apoio em Niklas LUHMANN:

(...) o juiz, diferentemente do legislador, está vinculado às suas decisões e às premissas que as fundamentaram, sendo mais estreito o seu espaço de liberdade (...). Ou seja, o princípio da igualdade impõe que a sentença seja obrigatoriamente fundamentada, sob pena de nulidade (art. 93, IX, da Constituição). E a mesma fundamentação deverá nortear idênticas decisões futuras, em casos idênticos. Permitir a alteração do juízo, sem a demonstração das diferenças em um novo caso concreto posterior, seria consentir no arbítrio e no querer qualquer judicial, afrontoso à isonomia.

E, após examinar as idéias de LUHMANN acerca do fechamento operacional do sistema, ressaltando que no Direito Tributário esse fechamento é expresso e mais rígido, DERZI conclui: "Interpretações imprevisíveis instalam a arbitrariedade, que desiguala injustamente os contribuintes e projetam insegurança. A segurança é condição da igualdade e não sua contradição, traço formal limitativo do sistema, que necessariamente o separa do ambiente restante" [09].

Heleno Taveira TÔRRES adverte que o princípio em questão (proteção da confiança legítima) não é universal: rejeitado pela França, já é contemplado pelas legislações espanhola e portuguesa. E tem encontrado crescente aceitação no Brasil. Mas não pode ser visto jamais como princípio subjetivo, casuístico ou discricionário. TÔRRES é enfático ao sustentar que este princípio não é uma panacéia. Não é como o "leito de Procrusto" – que serve a qualquer fim [10].

Nessa ordem de idéias, os requisitos da proteção da confiança legítima são: a) atuação lícita da Administração Pública (caso contrário, se o ato for ostensivamente ilícito, não haverá dúvida quanto à sua invalidade); b) competência do órgão administrativo na matéria (da mesma forma, se o órgão for incompetente, teremos a invalidade natural do ato); c) a Administração deve objetivar situação que produza estado de confiança, na qual o administrado tenha essa noção; d) que o cidadão mantenha-se em boa-fé (não se pode pleitear direito que corresponda à atitude de má-fé, pois a ninguém é dado alegar a própria torpeza).

Por fim, são pertinentes os seguintes dispositivos da Lei Geral do Processo Administrativo Federal (Lei n. 9.784, de 29-1-1999), a propósito dos limites para a invalidação de atos dessa natureza (especialmente prazo):

CAPÍTULO XIV

DA ANULAÇÃO, REVOGAÇÃO E CONVALIDAÇÃO

Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.

§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.

Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.

1.3. Boa-fé objetiva.

Noção distinta da proteção da confiança legítima, segundo Heleno Taveira TÔRRES, está na boa-fé objetiva. Novamente, cumpre fazer distinções (boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva – diferenciação que não tem aceitação unânime na doutrina).

Boa-fé subjetiva é o estado psicológico da consciência individual no sentido do atuar em ambiente de lealdade, com intenção cordata e legítima.

Já a boa-fé objetiva apresenta cunho social, a depender sempre da situação concreta na qual essa condição possa ser avaliada. Seu requisito fundamental é a alteridade – a compreensão do outro. Misabel DERZI esclarece este tópico:

Se o princípio da "boa-fé é dever de consideração para com o alter", realçam os juristas do Direito Privado as funções mais importantes da boa-fé na formação e execução das obrigações: a) como fonte criadora de deveres especiais nos contratos, a saber, de informar, de colaborar, de avisar, de cuidar "do outro"; b) como limitação ao exercício dos direitos subjetivos, coibindo-se o abuso e a não razoabilidade da conduta de cada uma das partes; c) como fonte de concreção das relações e de interpretação e reinterpretação dos contratos" [11].

Para DERZI, a boa-fé objetiva se desenvolve na proibição do venire contra factum proprium, nos institutos da supressio e da surrectio, ou, ainda, no instituto processual anglo-saxão do stoppel, ressaltando que "no Direito Privado e, com mais razão, no Direito Público, a proteção da confiança das expectativas criadas e o respeito à lealdade transformam-se em importantes equivalentes funcionais ou em acopladores estruturantes e estabilizadores do sistema" [12].

A propósito do axioma nemo potest venire contra factum proprium, Judith MARTINS-COSTA (que também insere esse instituto no âmbito do princípio da boa-fé objetiva) anota que incorre nessa proibição "quem exerce posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente, verificando-se a ocorrência de dois comportamentos de uma mesma pessoa, diferidos no tempo, sendo o primeiro (o factum proprium) contrariado pelo segundo". E esclarece que "o verdadeiro desenvolvimento do venire contra factum proprium, na Alemanha, ocorreu por volta da década de 70 do Século XX, com as construções que lograram associá-lo ao princípio da boa-fé objetiva". Demonstra, nesse passo, a incompatibilidade entre a contradição própria e a responsabilidade jurídica:

Daí estabelecer-se a relação entre o venire e boa-fé objetiva, isto é, a boa-fé ética ou "regra de conduta leal", que prescinde da atenção aos aspectos psicológicos, não pressupondo, necessariamente, a errônea crença, nem a má-fé ou a negligência culpável como elementos da expectativa criada na contraparte. (...) Nessa perspectiva, não consubstancia uma específica proibição da má-fé e da mentira, mas, verdadeiramente, uma aplicação do princípio da confiança no tráfico jurídico [13].

Fala-se, aqui, pois, no dever de coerência. Em Direito Administrativo, essa orientação obriga a Administração Pública a se conformar com as regras que ela própria instituiu. Exemplo concreto nos foi trazido por TÔRRES, na conferência mencionada [14].

Sobre os termos supressio, surrectio, stoppel, tu quoque e o próprio venire contra factum proprium, Judith MARTINS-COSTA enfatiza: "O que todas estas expressões refletem, em suma, é que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua anterior conduta interpretada objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, ou quando o exercício posterior se choque com a lei, os bons costumes e a boa-fé" [15].

Os vocábulos supressio e surrrectio não oferecem maiores dificuldades: tratam como os próprios nomes sugerem, da insegurança gerada pela abrupta supressão de práticas reiteradamente adotadas (e cuja repetição se espera) ou pela repentina ressurreição de práticas já abolidas e esquecidas (de cujo exercício já nem mais se cogita). Numa ou noutra hipótese, o efeito é o mesmo: a indesejável surpresa.

Já o stoppel é conceituado por Judith MARTINS-COSTA como uma "barreira ou freio erigido às pretensões de quem reclama algo em contradição com o que anteriormente havia aceitado". Adverte que essa figura admite diversas configurações, mas assevera que, de modo geral, por meio dela se "impede, em virtude de uma presunção iuris et de iure, uma pessoa de afirmar ou negar a existência de um fato determinado se antes exercitara um ato, fizera uma afirmação ou formulara uma negativa em sentido precisamente oposto". Exemplifica com o CASO SIÃO, ocorrido em 1908, no campo do Direito Internacional [16].

Por fim, sobre o tu quoque, que tem origem na lendária expressão "até tu Brutus?" explica Judith MARTINS-COSTA: "A má-fé de quem alega o prejuízo afasta, evidentemente, a sua incidência [do venire], pois do contrário a torpeza estaria tutelada. Aliás, nesse caso, pode haver a conjugação entre o venire e a figura nomeada por Menezes Cordeiro como ‘tu quoque’, que significa imputar a alguém – requerendo a proteção do direito – determinada conduta que já se praticou naquela mesma situação jurídica". O exemplo, oriundo dos Tribunais argentinos, é curioso: "(...) foi censurada a conduta de quem abandonou a esposa, passou a conviver com outra pessoa e, mais tarde, veio alegar em juízo ‘injúria’ por parte da esposa que se mostrava em público com outro homem" [17].

1.4. Boa-fé como princípio constitucional. A implicitude como parte constitutiva do texto

Paulo de Barros CARVALHO traça a distinção entre princípios constitucionais expressos e implícitos, salientando que ambas as categorias operam com a mesma força no sistema:

Inspirando esse conjunto, que forma o sistema constitucional tributário nacional, temos uma série de princípios: expressos e inexpressos (implícitos). A implicitude é parte constitutiva do texto. O texto é formado pelo plano da expressão e pelo plano do conteúdo. O plano do conteúdo não aparece; há de ser construído. Mas esse plano construído é constitutivo do texto. Noutras palavras, essa implicitude faz parte do texto, tanto como as normas explícitas.

Figure-se exemplo bem característico dessa afirmação: o direito administrativo brasileiro se firma em dois fundamentos básicos: princípio da supremacia do interesse público ao do particular e princípio da indisponibilidade dos interesses públicos. Onde estão gravados esses princípios no texto constitucional (ou em outras leis de inferior hierarquia)? Não encontraremos. E vem a pergunta: como posso evocá-los? Esses princípios são implícitos, mas decisivos para a compreensão do fenômeno jurídico administrativo no Brasil.

Outro exemplo: onde está o princípio da isonomia das pessoas políticas de direito constitucional interno (União, Estados, Distrito Federal e Municípios)? Encontraremos suportes normativos para esse princípio (mas não o princípio expressamente referido). Vislumbra-se, nessa ordem de idéias, a existência de princípios expressos e princípios implícitos.

O princípio da Justiça, para alguns, é o princípio soberano, o princípio maior de todo o ordenamento jurídico. Onde está gravado no nosso texto constitucional? E que dizer do princípio da segurança jurídica? E o princípio da certeza do Direito?

E, assim por diante, é grande o número de princípios implícitos, que serão construídos a partir do plano da expressão do texto constitucional brasileiro. Lendo o texto, passamos a construir, a partir dele, esses princípios, que são proclamados e reconhecidos por todos. Então, há princípios expressos e princípios implícitos.

Entre os princípios expressos e os princípios implícitos, há aqueles que dizem respeito a toda a ordem jurídico-positiva (princípios gerais – que valem para todo o direito positivo), e, já que valem para todo o direito posto, valerão para o subsistema constitucional tributário também. São princípios que se aplicam a todos os subsistemas do sistema geral.

Estes princípios são enunciados prescritivos. Todo enunciado que está no Direito tem a força de enunciado prescritivo. Ainda que a forma seja descritiva (v.g.: "O Brasil é uma república federativa"), a função é prescritiva, porque toda a linguagem do Direito está a cumprir essa função prescritiva de condutas. Ela se projeta sobre o contexto social para disciplinar as condutas intersubjetivas, canalizando-as em direção a certos valores, que a sociedade quer ver realizados. Desse modo, tudo que estiver no texto, ainda que sob forma descritiva, tem função prescritiva. E esses princípios todos valem para o direito posto (para o Direito como um todo) e, por isso mesmo, valerão para o subsistema constitucional tributário.

Repito: os princípios são expressos e são implícitos. Os implícitos com a mesma força dos expressos [18].

(Grifou-se)

No mesmo sentido ensinou Geraldo ATALIBA, citando, por sua vez, Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO: "Entende-se por princípio a disposição, expressa ou implícita, de natureza categorial em um sistema, que conforma o sentido das normas implantadas em uma dada ordenação jurídico-positiva" (grifou-se) [19].

Por vezes, a grande força do princípio constitucional reside exatamente na sua implicitude. Ao migrar, do plano inexpresso para o texto expresso, corre o risco de ser esvaziado em seu conteúdo e tornar-se letra morta. Helenilson Cunha PONTES, v.g., conhecido por todos como aguerrido defensor do princípio da proporcionalidade (especialmente no que tange a sanções fiscais), declara abertamente preferir que este princípio continue a residir no plano inexpresso. Pois, se migrasse para o texto constitucional expresso, poderia, um dia, dele ser retirado (via Emenda à Constituição). Em seguida, poder-se-ia argumentar que, a partir dessa supressão, tal princípio teria deixado de existir na ordem jurídica brasileira. Ou seja: a positivação do princípio poderia ser o primeiro passo da estratégia que resultaria na sua própria extinção [20]. Outro exemplo claro desse fenômeno é dado por Paulo de Barros CARVALHO, na aula já mencionada:

Até a Constituição da República de 1988, nunca existira, no Brasil, imperativo constitucional expresso que estabelecesse a progressividade do imposto sobre a renda da pessoa física. E esse imposto era progressivo. As alíquotas aumentavam, à medida que aumentassem as bases de cálculo, a ponto de vigorar tabela com nove faixas de incidência, além da de isenção. O imposto era, pois, progressivo. Não havia nenhum mandamento constitucional expresso nesse sentido. Com a promulgação da Constituição de 1988, firmou-se a linha mediante a qual o imposto sobre a renda deveria respeitar o princípio da generalidade, universalidade e da progressividade (inciso I do § 2º do artigo 153). Foi o que bastou para essa tributação (imposto sobre a renda da pessoa física) deixar de ser progressiva. Hoje há apenas duas faixas de alíquotas, que não resolvem nada em termos de progressividade. Essa expectativa de que, havendo o princípio da progressividade expressamente colocado na Constituição, o imposto seria efetivamente progressivo, frustrou-se [21].

Essa introdução se faz necessária para sustentarmos: boa-fé é princípio constitucional – da categoria dos implícitos.

Trata-se de princípio subjacente ao sistema constitucional brasileiro – e que emerge do texto expresso, imperativamente. Melhor dizendo, o princípio da boa-fé decorre diretamente de um dos PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS assentados logo no primeiro artigo da Carta Maior. Isso porque a República Federativa do Brasil tem, como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana – art. 1º, inciso III. Como anotou Celso Ribeiro BASTOS, "é um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas" [22]. E nenhuma pessoa alcança o patamar da dignidade humana se sua boa-fé não é respeitada ou se, em torno de suas atitudes, o Estado faz operar presunção de má-fé. Dignidade humana é valor incompatível com tratamento de desconfiança, gratuito e implausível, por parte do Estado para com seus administrados. Em suma: não é desconfiando de seus súditos que o Estado realizará o princípio da dignidade humana, mas, ao revés, fazendo prevalecer a presunção de boa-fé. Daí constituir a boa-fé princípio constitucional – da categoria dos inexpressos, mas com a mesma força e imperatividade dos princípios expressos.

Observa, a propósito, Aroldo Plínio GONÇALVES:

A dignidade humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se, então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade contemporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer ser agente da sua história [23].

No campo do Direito Tributário, Ivan Tauil RODRIGUES, após asseverar que "o positivismo parece ter dado mostras de esgotamento enquanto paradigma único para estruturação dos sistemas jurídicos" e advertir que "parece apresentarem-se como anacrônicos os discursos que insistem em cânones formalistas absolutos", nos traz oportuna lição:

A análise do princípio da boa-fé revela novos parâmetros dos quais a relação, antes fundada determinantemente no princípio da autonomia da vontade, deve ser enquadrada no sistema jurídico. Esses novos parâmetros que, no caso específico da boa-fé, sinalizam para o dever de cooperação entre as partes vinculadas por uma relação obrigacional, para o dever, enfim, de consideração pelos interesses alheios à luz do escopo econômico-social da relação em questão, poderiam ser resumidos através do imperativo ético de solidariedade e responsabilidade na prática de atos ou celebração de negócios. A preocupação ética com o enquadramento social dos atos e negócios individuais, e sua conseqüente responsabilidade social, atua, desde a Primeira Grande Guerra, na ampliação do princípio da boa-fé, na integração da teoria da vontade através do princípio da proteção da confiança, no esforço direcionado à justiça material, na limitação do uso da propriedade através da ênfase em sua vinculação social. O imperativo da boa-fé fornece precioso instrumento de moralização do Direito e sua ressonância lhe garante uma simpatia geral.

Essa moralização, ou "eticização" do Direito, contudo, exige do intérprete argumentos de natureza axiológica e não mais simplesmente de natureza lógico-formal, já que o fim perseguido será doravante a concretização de princípios e valores estabelecidos no Texto Maior. (...) O princípio da boa-fé se materializa, igualmente, no respeito recíproco, principalmente no seio daquelas relações jurídicas que requerem uma extensa colaboração. É efetivamente, no conceito de extensa colaboração que se pode descrever a relação que vincula os obrigados à satisfação das prestações derivadas dos tributos com a Administração Tributária. A multiplicidade e a complexidade dos atos jurídicos, derivados da existência de diversas obrigações tributárias que surgem ao longo da vida, criam uma prolongada relação entre os administrados e a Administração tributária, sendo de relevo ressaltar que, se a tensão entre o interesse privado e o público não se resolve em uma projeção dos valores que encarnam a boa-fé, vêem-se ameaçadas a paz e a segurança jurídica (grifou-se).

E conclui, em absoluta consonância com o pensamento que até aqui se expôs:

A idéia da boa-fé está unida ao contexto da relação tributária, tal como a clareza, certeza, previsibilidade e estabilidade, sendo todas elas condições do exercício leal de um direito ou do cumprimento leal de uma obrigação.

(...)

No que tange ao Fisco, há que se esperar igual lealdade e colaboração, sendo certo que a motivação dos atos administrativos é, também, sinal materializador da boa-fé do Administrador, podendo-se sem dúvida afirmar que o princípio da boa-fé sugere-obriga à motivação de qualquer atividade administrativa (grifou-se) [24].

Recentemente, a supremacia da presunção da boa-fé tem sido regularmente reconhecida pela jurisprudência, como ilustra o seguinte aresto do Superior Tribunal de Justiça:

TRIBUTÁRIO – IMPORTAÇÃO – APREENSÃO DE MERCADORIA ESTRANGEIRA ADQUIRIDA NO MERCADO INTERNO – PENA DE PERDIMENTO. TERCEIRO DE BOA-FÉ. PRECEDENTES.

A aquisição, no mercado interno, de mercadoria importada, mediante nota fiscal emitida por firma regularmente estabelecida para integrar o ativo imobilizado da empresa gera a presunção de boa-fé do adquirente, cabendo ao Fisco a prova em contrário. Recurso conhecido e provido.

(Grifou-se).

(RESP n. 0015073-DF, 2ª T., Rel. Min. Peçanha Martins, decisão de 27/4/94, DJ de 15/8/94, p. 20.320) [25]

1.5. Boa-fé como princípio da ordem dos valores

Visto que a boa-fé é princípio constitucional implícito, necessário se faz situá-lo em outra ordem de classificação: aquela proposta por Paulo de Barros CARVALHO, na mesma aula já mencionada, segundo a qual os princípios são:

a)limites objetivos ou

b)valores em si mesmos.

Isso significa dizer:

- ou os princípios são valores (princípios axiológicos);

- ou são instrumentos de efetivação dos valores.

CARVALHO propõe essa teorização a partir da TEORIA DOS VALORES – corrente de pensamento filosófico que se desenvolveu entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX e que contou com profundas contribuições de Martin HEIDEGGER, Ludwig WITTGENSTEIN, Johannes HESSEN [26] e Miguel REALE [27].

Assim, alguns princípios são limites objetivos, ou seja: instrumentos de efetivação dos valores. Exemplo: princípio da não-cumulatividade – não encarna um valor em si mesmo. O ser não-cumulativo não é um valor que o legislador constituinte queira realizar. Ele não se satisfaz com esse tópico. Na verdade, a não-cumulatividade aponta para certos fins, provoca uma série de efeitos – e estes, sim, é que são perseguidos pelo legislador (neutralidade de mercado, não-verticalização das empresas, não-deformação dos preços no mercado etc.).

Miguel REALE dizia que o fim, apresentando-se como razão de ser da conduta humana, é sempre valor. Quando a conduta humana aponta para um fim, este fim é valor. É isso que encontraremos nos limites objetivos: procedimentos que revelam uma razão de ser para a obtenção de um fim. Há outros exemplos: princípio da anterioridade tributária, irretroatividade do Direito, legalidade, tipicidade, progressividade, seletividade etc.

Outros princípios são, em si mesmos, valores (e não meros procedimentos técnicos). Nesse campo estão os fins propriamente ditos: justiça, segurança jurídica, certeza do Direito, não-surpresa, previsibilidade da atuação estatal, capacidade contributiva, igualdade, democracia, liberdade, vedação do confisco.

Se estivermos diante de um princípio jurídico, como saber se se trata de limite objetivo ou valor? Johannes HESSEN traça um roteiro sintático, adotado por Miguel REALE, apontando traços lógicos inerentes aos valores:

a)bipolaridade: "o valor é sempre bipolar. (...) a um valor sempre se contrapõe um desvalor; ao bom se contrapõe o mau; ao belo, o feio; ao nobre, o vil; e o sentido de um exige o do outro. Valores positivos e negativos se conflitam e se implicam em processo dialético". Essa dialeticidade e bipolaridade dos valores deitará reflexos no campo processual: "Não é por mera coincidência que existe sempre um autor e um réu, um contraditório no revelar-se do Direito, dado que a vida jurídica se desenvolve na tensão de valores positivos e negativos. O Direito tutela determinados valores, que reputa positivos, e impede determinados atos, considerados negativos de valores". Tal noção é essencial para a compreensão da própria finalidade do Direito: "até certo ponto, poder-se-ia dizer que o Direito existe porque há possibilidade de serem violados os valores que a sociedade reconhece como essenciais à convivência" [28].

b)implicação recíproca: "Se os valores são bipolares, cabe observar que eles também se implicam reciprocamente, no sentido de que nenhum deles se realiza sem influir, direta ou indiretamente, na realização dos demais" [29].

c)necessidade de sentido ou referibilidade: "Exatamente porque os valores possuem um sentido é que são determinantes da conduta. A nossa vida não é espiritualmente senão uma vivência perene de valores. (...) Só o homem é capaz de valores, e somente em razão do homem a realidade axiológica é possível" [30].

d)preferibilidade – possibilidade de ordenação ou graduação preferencial ou hierárquica: "o valor envolve, pois, uma orientação e, como tal, postula uma quarta nota, que é a preferibilidade. (...) fim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivo de conduta". É curioso notar que, onde quer que sejam lançados valores, logo haverá certa organização para que um deles assuma a posição de preeminência. "É aqui que encontramos outra característica do valor: sua possibilidade de ordenação ou graduação preferencial ou hierárquica" [31]. Essa hierarquização ocorre na conformidade da ideologia do intérprete. Somente a força ideológica do intérprete, com sua experiência pessoal, com sua trajetória de vida, com suas vivências psíquicas, poderá dizer se, neste ou naquele caso concreto, a legalidade deve prevalecer sobre a igualdade, se a dignidade humana pode se sobrepor à segurança, se o contraditório e a ampla devem prevalecer sobre a celeridade processual etc. São problemas dessa natureza que os Tribunais têm enfrentado em sua lida diária [32].

e)incomensurabilidade: os valores não podem ser medidos. Não faz sentido atribuir números, medidas quaisquer, para dimensionar valores. Não é compreensível dizer que uma sentença atingiu 9,5 pontos de Justiça ou que uma obra de arte alcançou 8,7 graus de beleza. A mensuração não é cabível no campo dos valores. "(...) os objetos ideais são quantificáveis; os valores não admitem qualquer possibilidade de quantificação. Não podemos dizer que o Davi de Miguel Ângelo valha cinco ou dez vezes mais que o Davi de Bernini. A idéia de numeração ou quantificação é completamente estranha ou elemento valorativo ou axiológico. Não se trata, pois, de mera falta de temporalidade e de espacialidade, mas, ao contrario, de uma impossibilidade absoluta de mensuração" [33]. No plano do Direito Tributário, o princípio da vedação do confisco é, v.g., nitidamente, de cunho axiológico. Até que ponto se considera admissível a tributação? A partir de marco se pode considerar caracterizado o confisco? Todas as tentativas de "quantificação" do confisco, em todo o mundo, falharam.

f)dificuldade de se encontrar critérios objetivos de solução: enfim, que é confisco? A doutrina mundial tem escrito sobre o tema sem encontrar critérios objetivos de solução. Isso denota, imediatamente, a presença de um valor. Em que consiste o princípio da igualdade? Em que medida os "iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente"? Qual a circunscrição delimitadora da capacidade contributiva? Que é democracia? Que é liberdade? Se a controvérsia diz respeito a valores, as dificuldades vêm de todos os lados, os discursos carregados de expressividade emocional e jogos de metáfora se prolongam, múltiplas teorizações se formam e as pessoas não ficam convictas. Quando, ao contrário, a discussão se circunscreve a limites objetivos, a decisão é fulminante. É rápida. Não suscita maiores indagações. Exemplos: determinado diploma cumpriu (ou não) o princípio da anterioridade de exercício financeiro? Basta que o magistrado perfaça o confronto de datas entre a publicação da norma e o momento da exigência do gravame. Outrossim, foi (ou não) observado o princípio da irretroatividade tributária? Basta fazer o cotejo entre o período de eficácia da lei e o momento da ocorrência do fato ao qual se reporta.

g)necessidade de objetivação: os valores estão sempre objetivados. Não há o belo fora de telas, de esculturas, de paisagens etc. O belo não está solto no ar. Ele necessita de uma situação material na qual possa estar presente. Da mesma forma é a justiça. Não há o valor justiça fora de decisões, sentenças, deliberações etc. A justiça não existe isoladamente, mas, ao revés, pressupõe a situação material e fática na qual se concretizará.

h)inexauribilidade: os valores são inexauríveis. Não se esgotam. Por mais que se considere bela determinada obra de arte, haverá sempre beleza para outras obras. Por mais que se considere justa determinada sentença, haverá sempre o valor justiça para decisões distintas.

i)historicidade: os valores não caem do céu. As significações não vêm prontas e construídas – elas vão sendo, gradativamente, construídas por nós. Os objetos não portam, em si mesmos, valores. Nós é que lhes atribuímos valores. A Vênus de Milo é apenas uma peça de mármore que não traz, em si mesma considerada, nenhum valor. Nós é que lhe atribuímos valor (histórico e cultural), por força de nossa cultura e de nossos conhecimentos. Assim, a atribuição de valores aos objetos do conhecimento depende, fundamentalmente, de nossa cultura [34].

J)presença dos valores nos modais deônticos (obrigatório, permitido e proibido): só há três modais deônticos na Filosofia: obrigatório, permitido e proibido. As condutas são assim modalizadas na conformidade do valor que o legislador lhes atribui. Quando o legislador diz que certa conduta é obrigatória, isso significa que a valorou positivamente, entendendo que ela é boa para o contexto social, e, por isso, deve ser exercida. Se disser que outra conduta é proibida, significa que a valorou negativamente, entendendo que ela é nociva ao convívio social, devendo, portanto, ser coibida. Se, finalmente, disser que a conduta é permitida, quer com isso dizer que ela é compatível com o contexto social e, pode, por isso, ser tolerada. Em qualquer desses três modais sempre estará presente o valor.

O princípio que não apresentar qualquer desses traços lógicos não será valor.

E boa-fé, evidentemente, é valor. Não se trata de mera regra técnica, nem tampouco de simples procedimento. Constitui um dos fins do Direito que as relações jurídicas sejam orientadas pela boa-fé e pela lisura de postura. Daí a presunção que em seu derredor deve militar.

1.6. Boa-fé no Direito Comparado

Adentrando o Direito Comparado, cumpre registrar a experiência espanhola. Na Ley de Derechos y Garantías de los Contribuyentes (Ley 1, de 26 de febrero de 1998), o princípio da boa-fé é expresso com uma clareza com a qual não estamos acostumados. Logo na EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS consta: "En el capítulo VII se consagra la presunción de buena fe e se prevé la separación entre el procedimiento sancionador y el de comprobación e investigación, así como la suspensión de la ejecución de las sanciones tributarias hasta que adquieran firmeza en vía administrativa". Vejamos o que diz o texto de lei:

CAPÍTULO VII

Derechos y garantías en el procedimiento sancionador

Artículo 33. Presunción de buena fe.

1.La actuación de los contribuyentes se presume realizada de buena fe.

2.Corresponde a la Administración tributaria la prueba de que concurren las circunstancias que determinam la culpabilidad del infractor en la comisión de infracciones tributarias.

Este dispositivo desmente o argumento autoritário e truculento de que a propalada presunção de legitimidade do ato administrativo teria o condão de eximir a Fazenda Pública do encargo probatório quando aponta intenção malévola do administrado. Entre todas as presunções subjacentes ao sistema, é a presunção de boa-fé que goza da supremacia.

Noutra passagem, a lei da Espanha afasta a figura da preclusão, permitindo ao contribuinte a ampla possibilidade de deduzir alegações e produzir provas, em qualquer momento processual anterior ao julgamento:

Artículo 21. Alegaciones.

Los contribuyentes podrán, en cualquer momento del procedimiento de gestión tributaria anterior al trámite de audiencia o, en su caso, a la redacción de la propuesta de resolución, aducir alegaciones y aportar documentos u otros elementos de juicio, que serán tenidos en cuenta por los órganos competentes al redactar la correspondiente propuesta de resolución.

Este preceito é mais favorável ao administrado que aquele constante de nosso Decreto n. 70.235, de 6-3-1972 (artigo 16, § 4º), que, salvo algumas hipóteses, dispõe que "a prova documental será apresentada na impugnação, precluindo o direito de o impugnante fazê-lo em outro momento processual".

Essas breves referências oriundas da Monarquia espanhola bem nos dão noção do respeito de que goza o contribuinte entre os povos cultos. Respeito este que se materializa, não apenas pela iniciativa de se aprovar lei específica – apenas para tratar de direitos e garantias do cidadão-contribuinte [35], mas também pela criação do Consejo para la Defensa del Contribuyente, efetivada pelo Real Decreto 2458/1996, de 2 de diciembre, com vistas ao cumprimento e eficácia da Lei em questão (como igualmente consta do item II da EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS). É o inverso do que ocorre na República brasileira, onde as leis específicas tratam tão-somente dos ônus e encargos que recaem sobre seus administrados (já esmagados pela crescente carga tributária) e as Emendas Constitucionais são concebidas apenas para suprimirem direitos (ignorando-se por completo a árdua trajetória social de lutas que resultara na inserção desses mesmos direitos na Constituição originária). São aqui oportunas as lições de TEORIA DO ESTADO ministradas por Aloízio Gonzaga de Andrade ARAÚJO, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, nas quais o experiente mestre preconiza que o regime político (autocrático ou democrático) se efetiva em função das concepções de mundo dominantes no seio da sociedade (e seus conseqüentes métodos de criação e exercício da ordem jurídica), independentemente da forma de governo adotada pelo Estado soberano (monarquia ou república). Cabe aqui relembrar as palavras de Misabel DERZI: "Sejamos coerentes. Se for para imitá-los, que imitemos tudo!".

Enfim, evidencia-se, no Brasil, um problema cultural. Nossa cultura, infelizmente, ainda é a da desconfiança recíproca. Os contribuintes desconfiam do Fisco e vice-versa. Precisamos, urgentemente, nos mirarmos em outros exemplos.

Em 11-3-2004, v.g., o Sistema FIEMG – Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, em parceria com a Secretaria de Estado da Fazenda de Minas Gerais – SEF/MG, promoveu a conferência: "Aproximação do setor privado com a administração fiscal – A experiência canadense". Compareceu a diretoria da Association de Planification Fiscal et Financière, organização não governamental situada em Québec, que, há vários anos, desenvolve, no Canadá, belíssimo trabalho de aproximação e diálogo entre Fazenda Pública e contribuintes, inclusive no que tange à elaboração legislativa. Mostrou-se, naquele notável evento, a importância da cultura da confiança recíproca, que vigora naquele país, e sem a qual não há sistema tributário que possa funcionar na prática. É, sem dúvida alguma, um dos exemplos que deveríamos seguir.

1.7. Reciprocidade na relação jurídico-tributária

Não há, em nenhum país, sintonia perfeita e absoluta entre Estado arrecadador e o administrado que se vê compelido ao pagamento de tributos. Em certa medida, é natural a aversão do indivíduo à cobrança tributária, da mesma forma como é instintiva e imediata a reação do proprietário contra o invasor de seu território.

Não obstante, é sabido que, em muitos Estados estrangeiros, alcançou-se elevado nível de confiança recíproca entre Fazenda Pública e cidadão. Nesses países, tributos são instituídos democraticamente e o administrado percebe facilmente a contraprestação do Estado – que se traduz em serviços públicos de qualidade e na garantia de bem estar a todos. Em tais condições, a aceitação da carga tributária pela sociedade se dá de forma relativamente pacífica. As razões são claras: o contribuinte tende a se conformar com o encargo fiscal ao constatar que a receita é empregada com eficiência e probidade.

Para que esse ambiente de confiança seja formado, a idéia da cooperação é desenvolvida. A boa convivência é necessária. Para tanto, a atitude do Estado é de fundamental importância. O contribuinte deve ser visto como aliado (e não como o "adversário inevitável"); deve ser participante desse processo (e não mero espectador passivo); deve ser tratado com confiança (ao invés de ser tido, aprioristicamente, como infrator). Não deve o Estado descartar a garantia do contraditório, sob a premissa (por vezes infundada) da desonestidade. A noção de parceria precisa se concretizar. O Fisco deve se interessar em resolver conflitos e eliminar discussões inúteis em juízo; deve cativar o contribuinte, tratá-lo bem, ouvi-lo mais, procurar se entender com ele. A declaração deve ser vista como atitude de cidadania do contribuinte (que, por sua vez, precisa sentir segurança ao prestar suas informações). Deve o administrado contar com sistema de proteção contra os erros que cometeu (aperfeiçoando-se, nessa toada, institutos como o da retificação). Outros institutos processuais, como o da confissão (que nem sempre se traduz em "verdade final") e o da supremacia do interesse público (que, por sua vez, não pode se converter em abuso) precisam ser mais bem compreendidos. A defesa do contribuinte há, pois, de ser erigida em interesse público.

Não se deve perder de vista que o prolongamento excessivo do contencioso fiscal, motivado pelo cerceio, por parte do Estado, às garantias constitucionais do direito ao acertamento, é até mesmo prejudicial aos interesses arrecadatórios, na medida em que se constitui em fator de demora ao recebimento dos créditos tributários. Se se desse maior atenção ao procedimento administrativo, com observância de todas as suas etapas, o contencioso não seria tão necessário. Muitas controvérsias judiciais poderiam ser eliminadas. O procedimento é, necessariamente, corretivo. Quanto mais ele se aperfeiçoa, mais se afasta o autoritarismo. A eliminação de conflitos deveria ser interesse do próprio Fisco.


2. Identidade constitucional. A boa despesa como fator de confiança. A importância do bom exemplo.

A experiência dos países desenvolvidos revela que o bom gasto, efetivado com honestidade e eficiência, e traduzido em retorno à sociedade, provoca satisfação no contribuinte, desenvolvendo ambiente mais amistoso entre Fazenda Pública e cidadão. Cabe ao Estado ser bom Fisco e bom provedor.

Klaus TIPKE, em capítulo denominado LA CONEXIÓN ENTRE MORAL TRIBUTARIA DEL ESTADO Y DEL CONTRIBUYENTE, é um dos autores partidários da tese de que o exemplo deve partir do Estado. Primeiramente, adverte: "No se trata aquí de analizar si una incorrecta moral tributaria del Estado puede justificar una incorrecta moral del contribuyente. Lo que intenta dilucidarse es si la mala actuación del Estado influye de hecho de forma negativa sobre la moral del contribuyente". Em seguida, chama atenção para o tópico da reciprocidade: "Puede leerse con frecuencia que el ciudadano sólo queda obligado frente al Estado a condición de reciprocidad, que el Estado solo puede esperar que el contribuyente obre con rectitud si ha recibido el buen ejemplo moral del Estado en cuanto a la tributación y al gasto se refiere" [36] (grifou-se).

E por que o exemplo deve partir do Estado?

Por que ele é o "grande pai", ou, noutras palavras, o responsável pela formação da "identidade constitucional" (cf. Michel ROSENFELD e Paula Derzi BOTELHO).

O pai que aconselha seu filho a não fumar será ouvido?

Depende. Se o pai nunca fumou, é provável que o conselho seja seguido. Se, no entanto, o mesmo conselho é solenemente pronunciado, tendo o pai um cigarro entre os dedos, tais palavras serão quase inúteis, pois o exemplo será muito mais forte que o discurso: o filho, provavelmente, se tornará fumante – pois essa é sua referência.

Assim é a relação do Estado com seus súditos.

O Estado diz: "– Cidadão: pague seus tributos". Antes de atender a esse comando, o administrado se perguntará: "O Estado é bom pagador? Quita seus débitos para com o particular espontaneamente? Ou o obriga a submeter-se a longas pendengas judiciais e às intermináveis filas dos precatórios?". Que atitude terá, v.g., aquele funcionário público, que, após longos anos de batalha processual, buscando receber seus créditos de natureza alimentícia, ainda espera ad aeternum pelo cumprimento do precatório? Quitará suas obrigações tributárias com presteza? Ou resistirá?

Não hesitamos em afirmar: a semente da resistência é plantada no cidadão pelo próprio Estado. Esse é o exemplo recebido pelo administrado. Essa é a sua referência.


3. Os motivos da resistência no Brasil. As diversas formas de abuso na tributação

No Brasil, tem sido notada, de há muito, grande tensão entre a prerrogativa do Estado de arrecadar tributos e a resistência do contribuinte. É de se questionar por que razões ainda não atingimos aquele desejado patamar de confiança que se vislumbra noutras paragens.

Em primeiro lugar, conquanto a tributação seja inevitável em qualquer sociedade organizada sob a forma de Estado [37], ela configura, antes de tudo, uma das modalidades de limitação da esfera patrimonial do indivíduo.

Por três formas o Estado expropria bens dos administrados, diminuindo o patrimônio destes:

a)desapropriação – acompanhada da indenização respectiva;

b)tributação – por meio da qual se absorve parte dos bens ou rendimentos do administrado, sob o pressuposto de que todos estão obrigados a contribuir, na proporção de seus haveres, para o enfrentamento das despesas do Estado – que, por sua vez, dará sua contraprestação aos indivíduos (sob a forma de prestação de serviços essenciais: segurança, saúde, urbanização, educação etc.);

c)confisco: apropria-se o Estado de bens do administrado, arbitrariamente, sem lhe ofertar qualquer contraprestação (seja na forma de indenização, seja por serviços públicos).

Nas duas primeiras modalidades, a expropriação ocorre, tratando-se de Estado de Direito, no âmbito da relação jurídica: por força da lei, na medida e com os parâmetros estabelecidos pela lei – garantindo-se ao particular alguma retribuição (ainda que sob a forma de serviços gerais – não direcionados especificamente ao contribuinte). Já o confisco é puramente ato de força, praticado ao arrepio do Direito. Essa é a noção corrente.

Autores afirmam que os tributos não vinculados (impostos), especialmente os diretos, apresentariam, eles próprios, em certa medida, caráter confiscatório. Pagamos pesadamente, v.g., o imposto de renda, o IPTU e o IPVA. Mas sofremos com a precariedade dos serviços públicos de saúde e segurança, percorremos estradas esburacadas que estouram nossos pneus e temos que pagar pelo ensino fundamental privado, haja vista que as escolas públicas já se deterioraram.

Por essa ótica, na desapropriação, haveria o respectivo ressarcimento. Mas não nos impostos. O Estado não retribuiria, àquele mesmo administrado, em proporção equivalente. Haveria, pois, confisco, ainda que parcial. A primeira reação seria contra esse caráter "confiscatório" (ou, no mínimo, expropriatório – redutor de patrimônio) que apresenta o tributo [38].

Outros autores discordarão dessa idéia, argumentando que não é própria da tributação a retribuição individual e específica, tanto por tanto, a cada contribuinte. Sustentarão que o Direito é, em última análise, um sistema de limites (cf. Hugo de Brito MACHADO) e a propriedade já é entregue ao individuo com uma série de restrições jurídicas. Como instrumento de redistribuição de riqueza na sociedade, seria inerente à tributação essa contraprestação desigual: maior para uns, menor para outros. Para estes estudiosos, a noção de justiça fiscal somente poderia ser vislumbrada através da macro visão.

De uma forma ou de outra, a própria expropriação em si – a redução de patrimônio – é o primeiro fator de resistência.

O segundo tópico que, nesse campo, provoca descontentamento na sociedade e leva ao agravamento da tensão entre Estado e administrado é o abuso na tributação.

De modo geral, a sociedade, embora reconhecendo a natureza ontologicamente expropriatória da tributação, admite sua necessidade e inevitabilidade. Mas revolta-se contra a forma abusiva com que, por vezes, ela é praticada. Por essa razão, morreram pessoas e se fizeram revoluções [39]. Não é diferente em nossos dias. A tributação em si mesma não é ofensiva ao direito de propriedade. O abuso dela é que constitui a ofensa.

A doutrina freqüentemente se refere a diversas revoluções, no Brasil e no mundo, motivadas, ao menos em parte, pelo abuso na tributação [40]. Entre nós, é emblemático o episódio da Inconfidência Mineira [41]. Alcides Jorge COSTA, em memorável conferência, ilustra a arbitrariedade da tributação sobre o ouro nessa época, que devia ser levado – todo ele – às casas de fundição para a dedução do quinto, tendo sido fixada a quota mínima de cem arrobas por ano. A cifra que ultrapassasse esse limite era computada como "crédito do contribuinte". Mas se a arrecadação não atingisse as cem arrobas, instalava-se a derrama, por meio da qual a diferença era cobrada à força (uma espécie de "executivo fiscal em massa"). A medida era aflitiva para aqueles que deveriam suportar essa diferença, haja vista que a produção de ouro, como era de se esperar, começou a decair. Assim, a partir de 1760, as derramas se tornaram cada vez mais freqüentes, o que resultou na revolução. Na observação de Carlos Fernando Mathias de SOUZA, esse foi, portanto, um capítulo da "história da resistência tributária" (como tantos outros no mundo inteiro). A impopularidade dos quintos era tamanha que daí surgiu a expressão "quintos do inferno". [42]

Sempre foi claro, no entanto, que o maior fator de revolta era o destino da receita:

Levado para além-mar, o ouro de Minas permitia a D. João V reinar numa luxuosa ostentação, a ponto de se tornar conhecido como o Roi-Soleil português. O mais perturbador é que o "fulvo metal" nem sequer servia para enriquecer a Metrópole: era apenas o ouro "que Portugal distribuía tão liberalmente para a Europa", como observou o viajante inglês Henry Fielding. Nada mais natural, portanto, que a jovem sociedade mineira – tão diferenciada da elite rural e latifundiária do Nordeste – alimentasse um profundo estado de indignação e revolta. E essa revolta não demoraria muito para eclodir [43].

O abuso da tributação ocorre sob diversas formas, como, v.g.:

- pelo excesso na tributação – abuso com relação ao quantum cobrado (carga tributária);

- pela desigualdade de tratamento entre contribuintes;

- pela desigualdade de tratamento na órbita da própria relação jurídica de direito público (a relação entre Estado e administrado);

- pela falta de contraprestação do Estado – hipótese em que o administrado, embora esmagado pelas exações, não vislumbra retribuição equivalente;

- pela má destinação dos recursos obtidos junto ao contribuinte [44];

- pela adoção de procedimentos administrativos arrecadatórios arbitrários [45] – que não dão ao administrado oportunidade satisfatória de se explicar e se defender etc.

São essas, pois, as duas principais razões da resistência do administrado:

a) o caráter "confiscatório" (ainda que parcial) dos tributos;

b) o abuso na tributação.


Notas

  1. Começa, hoje em dia, a ser trivial afirmar que o actual Estado é, na generalidade dos países contemporâneos, e mormente nos desenvolvidos, um Estado fiscal. Contudo, é de referir que, nem a realidade que lhe está subjacente, nem o conceito que tal expressão procura traduzir, constituem uma novidade nos tempos que correm. Pois, sendo o Estado fiscal o Estado cujas necessidades são essencialmente cobertas por impostos, facilmente se compreende que ele tem sido (e é) a regra do Estado moderno. Todavia, se é certo que este, pela própria natureza da realidade económica moderna, é necessariamente um Estado financeiro – um Estado cujas necessidades são cobertas através de meios de pagamento, ou seja, de dinheiro que ele obtém, administra e aplica, e não, salvo em casos muito excepcionais e limitados, através de prestações naturais (prestações em espécie ou de facere) exigidas aos seus cidadãos – , não é menos certo que ele nem sempre se tem apresentado como um Estado fiscal, havendo Estados que claramente configuraram (ou configuram) verdadeiros Estados proprietários, produtores ou empresariais.
  2. (NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p.191-2).

  3. POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 6a ed. New York: Aspen Publishers, 2003, p.489.
  4. Cf. OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006.
  5. E prossegue: "Cabe ao Estado prestar serviços públicos (art. 21 – União; art. 30, V – Municípios; e art. 25, § 2º – Estados-membros), regular a atividade econômica (art. 174), prestar serviços públicos, mediante permissão ou concessão (art. 175), explorar a atividade econômica (art. 173), inclusive em regime de monopólio (art. 177), exercer poder de polícia (arts. 192, 182 e outros) e documentar a vida política, econômica e pessoal da nação etc".
  6. (cf. op.cit. p.59)

  7. Como exemplo, temos, no Código Tributário Nacional: art. 146 (ao tratar das mudanças de orientação no que tange ao lançamento):  "A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução"; art. 149, parágrafo único (limites para efetuação e revisão do lançamento): "A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública"; art. 156, incisos IX e X (ao estabelecer que extinguem o crédito tributário: a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória, bem como a decisão judicial passada em julgado).
  8. Na conferência mencionada, Heleno Taveira TÔRRES fixa a data de nascimento do princípio da confiança legítima: 14-11-1956, numa decisão do Tribunal Administrativo de Berlim, acerca de certa senhora que entendia fazer jus a pensão da Alemanha Ocidental. Posteriormente, já em pleno gozo desse benefício, a Administração Pública passa a entender que a pensão era irregular, resolvendo revogar o ato administrativo de concessão. A decisão final manteve a benesse, com amparo no princípio da confiança legítima.
  9. Esse episódio, aliás, já foi mencionado pelo Supremo Tribunal Federal, tendo como Relator o Ministro Gilmar Mendes, no MS 24268/MG, como consta do Informativo n. 343 daquela Corte (12 a 16 de abril de 2004). Destaca-se a seguinte passagem:

    Na Alemanha, contribuiu decisivamente para a superação da regra da livre revogação dos atos administrativos ilícitos uma decisão do Tribunal Administrativo de Berlim, proferida em 14.11.1956, posteriormente confirmada pelo Tribunal Administrativo Federal. Cuidava-se de ação proposta por viúva de funcionário público que vivia na Alemanha Oriental. Informada pelo responsável pela Administração de Berlim de que teria direito a uma pensão, desde que tivesse o seu domicílio fixado em Berlim ocidental, a interessada mudou-se para a cidade. A pensão foi-lhe concedida. Tempos após, constatou-se que ela não preenchia os requisitos legais para a percepção do benefício, tendo a Administração determinado a suspensão de seu pagamento e solicitado a devolução do que teria sido pago indevidamente. Hoje a matéria integra a complexa regulação contida no § 48 da Lei sobre processo administrativo federal e estadual, em vigor desde 1977 (Cf. Erichsen, Hans-Uwe, in: Erichsen, Hans-Uwe/Martens, Wolfgang, Allgemeines Verwaltungsrecht, 9ª edição, Berlim/Nova York, 1992, p. 289).

    Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito) e está disciplinado, parcialmente, no plano federal, na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, (v.g. art. 2º).

    Como exemplo da quebra do princípio da proteção da confiança legítima, TÔRRES menciona o caso da CIDE-combustíveis: o contribuinte suporta uma carga tributária específica, na expectativa legítima de que tais recursos sejam aplicados diretamente na construção ou recuperação de rodovias, em projetos ambientais ligados ao setor etc. E, no fim das contas, o Estado mantém retidos, em fundo próprio, esses recursos e não os transfere para a devida destinação.

    Outro exemplo concreto:

    SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

    RELATOR: MINISTRO EROS ROBERTO GRAU

    AGRAVANTE: EMPRESA BRASILEIRA DE INFRA-ESTRUTURA AEROPORTUÁRIA –

    INFRAERO

    AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

    AGRAVADO: JOÃO FRANCISCO MOTA RAMALHETE

    EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ESTABILIDADE DAS RELAÇÕES JURÍDICAS CONSTITUÍDAS. 1. Observância ao princípio da segurança jurídica. Estabilidade das situações criadas administrativamente. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. 2.Concurso público. Princípio da consumação dos atos administrativos. A existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista, questão dirimida somente após a concretização dos contratos, não tem o condão de afastar a legitimidade dos provimentos, realizados em conformidade com a legislação então vigente. 3. Precedente do Pleno do Supremo Tribunal Federal. Agravos regimentais não providos.

    (Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. AgR no Recurso Extraordinário 348.364-1 /Rio de Janeiro-RJ, Relator: Min. Eros Roberto Grau. Julgamento: 14-12-2004. D.J. 11-3-2005)

    caso concreto tratava de admissões realizadas na INFRAERO, por processo seletivo, sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão do Tribunal de Contas da União. Os servidores permaneceram na Administração por mais de dez anos. Posteriormente, a Administração vem a entender que aquelas admissões foram irregulares. E decide anulá-las. O STF reconheceu, aqui, cabível o princípio da proteção da confiança legítima que os servidores depositavam na licitude de seu ingresso.

    Consta do corpo do Acórdão: "... a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido (...)".

    A Corte se ampara, ainda, na doutrina de Miguel REALE (In: Revogação e Anulamento do Ato Administrativo), citando a seguinte passagem: "... o tempo transcorrido pode gerar situações de fato equiparáveis a situações jurídicas, não obstante a nulidade que obrigatoriamente as comprometia (...). Não é admissível, por exemplo, que, nomeado irregularmente um servidor público, visto carecer, na época, de um dos requisitos complementares exigidos por lei, possa a Administração anular seu ato, anos e anos volvidos, quando já constituía uma situação merecedora de amparo e, mais que isso, quando a prática e a experiência podem ter compensado a lacuna originária. Não me refiro, é claro, a requisitos essenciais, que o tempo não logra por si só convalescer, – como seria, por exemplo, a falta de diploma para ocupar cargo reservado a médico, – mas a exigências outras que, tomadas no seu rigorismo formal, determinariam a nulidade do ato".

    Nessa ordem de idéias, TÔRRES argumenta que, hoje, a legalidade deve vir acompanhada do estado de confiança, sendo certo que, no caso concreto citado, os servidores não concorreram para a ilegalidade da admissão. Aqui haveria duas conseqüências possíveis: a) proteção da permanência e continuidade do ato, embora inválido; b) invalidação do ato, ensejando, porém, justa indenização aos prejudicados. Dessa forma, as Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal comportam, hoje, uma releitura: cabe à Administração Pública anular seus próprios atos inválidos, salvo comprovada boa-fé e nos limites da proteção da confiança legítima.

    (A proteção da confiança legitimamente criada no Direito Tributário. Boa-fé subjetiva ou objetiva. Nulli conceditur venire contra factum proprium. A teoria dos atos contraditórios. Conferência proferida no X Congresso Internacional da ABRADT – Associação Brasileira de Direito Tributário. Agosto de 2006. Belo Horizonte-MG. In: Revista Internacional de Direito Tributário da ABRADT. Vol. VI. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.23-32).

  10. Dispõe a Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal: "Ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício em que deve ser apresentada a declaração".
  11. Misabel DERZI faz referência expressa ao problema da Súmula 584/STF:
  12. "... à luz da Constituição de 1988, o Superior Tribunal de Justiça, nas suas duas Turmas e na Seção, consolidou o entendimento de que a súmula havia caído, não poderia ser aplicada – porque era retroativa. O STF, da mesma forma, no pleno, em decisões unânimes – sendo relator o Ministro Moreira Alves, e, em outras oportunidades, o Ministro Carlos Mário da Silva Velloso – também derrubou a própria súmula. Recentemente volta tudo: de repente, o STF passa a entender que essa súmula não é mais inconstitucional. E como ele examina casos antigos que estão em juízo, a tendência é aplicar sempre a sua jurisprudência a casos que já estão em juízo há 2, 3 ou 4 anos. É isso que nós chamamos de decisões retroativas, de modo que o contribuinte não sabe para que lado vai, pois a oscilação em nosso país é inconcebível. (...) com isso o grau de litigiosidade prossegue de forma insuportável...".

    (Litigiosidade, Evasão e Soluções Contemporâneas. Conferência proferida no X Congresso da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT. In: Revista Internacional de Direito Tributário. Vol. VI. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.16-7)

    E, mais recentemente, em artigo ainda não publicado:

    "Quando os contribuintes já consideravam encerrada a polêmica, com a pacificação do entendimento de que a lei aplicável ao imposto sobre a renda seria a lei em vigor no primeiro dia do ano-base e não aquela em vigor no primeiro dia do ano da declaração (que necessariamente é posterior à data do encerramento do balanço), o Supremo Tribunal Federal passou a rever o seu entendimento em diversos julgados".

    E faz referência aos seguintes:

    a)RE 194612-1/SC, 1ª T, Rel. Min. SIDNEY SANCHES, unânime, pub. 08-5-1998;

    b)AI 180776 AgR-ED/MG, 2a T., Rel. Min. GILMAR MENDES, pub. 27-8-2004.

    De resto, enfatiza: "Nada mais anacrônico, em um mundo globalizado, esforçado em atrair investimentos, em um contexto em que a segurança jurídica é fator decisivo de concorrência, do que ressuscitar a velha e superada Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal".

    (A imprevisibilidade da jurisprudência e os efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal no Direito Tributário – artigo não publicado. 2007)

  13. DERZI, Misabel Abreu Machado. Mutações, Complexidade, Tipo e Conceito sob o signo da segurança e da proteção da confiança. In: Tratado de Direito Constitucional Tributário. Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p.245-284.
  14. Na obra citada por DERZI destaca-se a seguinte passagem: "O juiz compromete-se com suas decisões e as premissas a ela vinculadas, mas o legislador não. Se esse compromisso assume a forma jurídica ou resulta da compreensão do papel do juiz é secundário, da mesma forma que a questão se o autocomprometimento de um juiz amplia-se ou não aos outros juízes através do ordenamento jurídico. O decisivo é que apenas o juiz se vê confrontado com situações repetidas, tendo que decidir de forma repetidamente igual quando se apresentam premissas idênticas. O juiz submete-se ao princípio da igualdade de forma diferente que o legislador: ele não só tem que tratar igualmente as mesmas condições, mas também decidir da mesma forma os casos iguais. Com cada decisão ele se ata a casos futuros, e ele só pode criar um direito novo na medida em que reconheça e trate novos casos como constituindo casos diferentes".

    (LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol.II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, p.34)

  15. PROCRUSTO, o "esticador", construiu duas camas: uma para os gigantes e outra para os normais. Na cama para os normais, ele colocava os gigantes e lhe cortava as pernas – para que ali coubessem. Já os normais, ele colocava na cama dos gigantes e os esticava, até que estes a ela se adequassem. Inquirido por PALAS ATENA, justificou-se: comecei a refletir sobre a desigualdade dos homens. Ela é injusta. Tal operação aqui procedida torna ambos iguais, pois através dela ambos se tornam aleijados. E se eles morrem em conseqüência da operação, eles também são iguais entre si, pois a morte torna todos iguais. Àqueles que torturava, PROCRUSTO sempre esclarecia que o fazia em nome da justiça. Assim, a localidade de Coridalos tornou-se um inferno, repleta dos gritos dos martirizados, que podiam ser ouvidos em toda a Grécia. Os deuses, embaraçados, tapavam os ouvidos com as mãos. Isso fez com que eles não mais interviessem na história. Diante disso, gigantes e normais amaldiçoavam PROCRUSTO – o que por ele não era compreendido, pois se considerava um benfeitor. Para ele, a justiça consistia em tornar todos iguais.
  16. DERZI, Misabel Abreu Machado. Mutações, Complexidade, Tipo e Conceito sob o signo da segurança e da proteção da confiança. In: Tratado de Direito Constitucional Tributário. Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p.245-284.
  17. Cf. op.cit.
  18. MARTINS-COSTA, Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum proprium. In: Experiências do Direito (Coordenação: Miguel REALE et alii). Campinas/SP: Millennium Editora, 2004, p.24 e 33.
  19. Trata-se do seguinte Acórdão:
  20. EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA – DESISTÊNCIA REQUERIDA PELO IMPETRANTE PARA VIABILIZAR A ADESÃO AO REFIS – HOMOLOGAÇÃO. PRECEDENTES.

    A homologação da desistência do mandado de segurança não implica qualquer juízo sobre o direito da impetrante de aderir ao Programa de Recuperação Fiscal – REFIS, matéria que, de resto, nem é objeto do mandado de segurança.

    Mandado de Segurança: desistência que independe da anuência do impetrado ou da pessoa jurídica de Direito Público, de que haja emanado o ato coator sem distinção, na jurisprudência do STF, entre a hipótese de impetração de competência originária e aquela pendente do julgamento de recurso.

    (Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Ag.Reg. no Recurso Extraordinário 233.095-4, Minas Gerais. Relator Min. Sepúlveda Pertence. D.J. 30-6-2006).

    Neste tópico, TÔRRES comenta a exigência, contida na Lei do REFIS, de o contribuinte desistir das ações judiciais para ter acesso ao programa. Posteriormente, a Administração (Procuradoria da Fazenda) comparece no mesmo processo e diz que tem interesse em continuar com a demanda. Fundamentou o Relator: "A jurisprudência do STF já pacificou o entendimento de que, no mandado de segurança, a desistência não depende de aquiescência do impetrado". Desse modo, o impetrado não poderia limitar a faculdade processual (desistência) que a lei concede ao impetrante. Haveria aqui a adequada aplicação do princípio nemo potest venire contra factum proprium.

  21. Op.cit. p.26.
  22. "Tratava-se de litígio entre Tailândia e Sião sobre fronteiras que estariam registradas em mapa de conhecimento de ambos os países. A Corte Internacional de Justiça decidiu que, ainda existente dúvida sobre a aceitação pelo Sião, em 1908, do mapa, e, por conseqüência, da fronteira nele indicada, tendo conta acontecimentos posteriores, a Tailândia, em razão de sua conduta, não podia afirmar que não aceitara o mapa, porque durante 50 anos desfrutara, quanto ao menos, das vantagens de uma fronteira estável, e tanto a França quanto o Camboja confiaram nessa aceitação".
  23. (Op.cit. p.31)

  24. Idem. p.46-7.
  25. CARVALHO, Paulo de Barros. Princípios Constitucionais da Igualdade, Segurança Jurídica e Capacidade Contributiva – Valores, Princípios e Normas. Conferência proferida no VI Congresso Brasileiro de Direito Tributário da ABRADT – Associação Brasileira de Direito Tributário. Agosto de 2002. Belo Horizonte-MG).
  26. República e Constituição. 2ª ed. 2ª tiragem. Atualizada por FOLGOSI, Rosolea Miranda. São Paulo: Malheiros, 2001, p.34.
  27. Cf. PONTES, Helenilson Cunha. O Princípio da Praticidade no Direito Tributário (substituição tributária, plantas de valores, retenções de fonte, presunções e ficções etc): sua necessidade e seus limites. Conferência proferida no VIII Congresso Brasileiro de Direito Tributário da ABRADT – Associação Brasileira de Direito Tributário. 23-6-2004. Belo Horizonte-MG).
  28. Op.cit.
  29. BASTOS, Celso Ribeiro et MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 1988, p.425.
  30. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Ed. Aide, 1992, p.11.
  31. O princípio jurídico da boa-fé e o planejamento tributário. O pilar hermenêutico para a compreensão de negócios estruturados para obter economia tributária. In Revista Dialética de Direito Tributário n. 93. São Paulo: Dialética, 2003, p.37-38.
  32. Apud CRETTON, Ricardo Aziz. Os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade e sua aplicação no Direito Tributário. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2001, p.145.
  33. Cf. HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. Coimbra: Almedina, 2001.
  34. Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002, p.187-216.
  35. REALE, Miguel. Op.cit, p.189.
  36. Idem, p.189.
  37. Idem. p.190-1.
  38. Idem. p.191.
  39. Na verdade, as maiores discussões do Direito gravitam em torno de conflitos de valores. Como hierarquizá-los? Como exemplo vivo e concreto, tivemos, recentemente, interessante exemplo em Minas Gerais, na comarca de Contagem, envolvendo soltura de expressivo número de presidiários. Conflito dessa natureza estava ali presente: de um lado, a dignidade humana (embora houvesse, entre aqueles presidiários, criminosos de extrema periculosidade, nem por isso sua condição de ser humano foi afastada; alguns, aliás, já tinham cumprido sua pena) – valor proclamado pela Constituição da República, de observância imperativa nas decisões judiciais; de outro lado, a segurança da sociedade. Qual desses valores devia prevalecer? Naquele caso concreto, o Juiz fez o valor dignidade sobrepor-se ao valor segurança. Outro Juiz, porém, poderia ter feito o inverso. E qual dessas sentenças seria tecnicamente correta? Ambas.
  40. Que força faz com que a hierarquização de valores ocorra num ou noutro sentido? A ideologia do intérprete: sua trajetória existencial, suas vivências psíquicas, seu apego ou desapego à tradição ou às instituições da sociedade, seus traumas, suas manias, sua concepção de mundo etc. É com tudo isso (e não com a simples expressão literal da lei) que o intérprete constrói o sentido dos textos e opera a hierarquização.

    Por vezes, o Direito é comparável à música. É possível ouvir, v.g., várias interpretações diferentes da nona sinfonia de Beethoven, conforme as diversas orquestras, maestros etc. Aqueles maestros e músicos estão a ler a mesma partitura, estão a tocar os mesmos instrumentos, mas o resultado varia. E varia porque a interpretação é diferente. E qual dessas interpretações é tecnicamente correta? Todas.

    Assim é o Direito. Os juízes, por vezes, lêem a mesma lei (a partitura do magistrado). Apreciam as mesmas provas. Ouvem as mesmas alegações. E o resultado varia. Qual deles é correto? Não há esse dado objetivamente considerado.

  41. REALE, Miguel. Op.cit. p.187.
  42. Certa feita, ministrando aula em Itabira-MG, abordávamos este tópico, quando atento aluno, graduado em História, desandou a chorar. Relatou que certo funcionário municipal fora incumbido de zelar pela casa na qual vivera Carlos Drummond de Andrade. Defronte o imóvel pairava, soberanamente, o Carvalho centenário sob o qual o grande mineiro redigira diversos de seus poemas, e, por isso mesmo, muito caro aos Itabiranos. Julgando incômoda aquela grande árvore, logo tratou o zelador de derrubá-la – o que provocou profunda indignação. Esse lamentável episódio só faz confirmar a tese de HESSEN: os Itabiranos cultos, admiradores de Drummond, atribuíam ao velho Carvalho imenso valor histórico. Já o pobre zelador, padecendo de grande vazio intelectual, não lhe atribuía valor algum.
  43. Cumpre notar o disposto no "Artículo 1º, item 2: Los derechos que se reflejan en la presente Ley se entienden sin perjuicio de los derechos reconocidos en el resto del ordenamiento".
  44. TIPKE, Klaus. Moral Tributaria del Estado y de los Contribuyentes. Madrid: Marcial Pons, 2002, p.121.
  45. O escocês Adam SMITH (1.723-1.790), grande representante da ESCOLA LIBERAL, já justificava a necessidade da tributação, nos seguintes termos: "Os súditos de todos os Estados devem contribuir para a manutenção do governo, tanto quanto possível, em proporção das respectivas capacidades, isto é, em proporção ao rédito que respectivamente usufruem sob a proteção do Estado. A despesa do governo para os indivíduos de uma grande nação é semelhante à despesa de administração para os co-arrendatários de uma grande herdade, obrigados a contribuir na proporção dos seus respectivos lucros na herdade. Na observância ou não dessa máxima consiste o que se chama a igualdade ou desigualdade de tributação".
  46. (Riqueza das Nações. Vol. II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,, 1981, p.485-6)

  47. Nesse ponto, cabe ligeira digressão, para tratar de outro importante instrumento de realização do bem comum, que é a tributação. É com o produto da arrecadação dos tributos que o Estado custeia os serviços públicos, de modo geral. Teoricamente, cada cidadão, ao pagar tributos, estaria, apenas, remunerando por serviços que recebe. Na realidade, porém, isso não ocorre exatamente. No Brasil, o sistema tributário previsto no direito positivo conhece três espécies de tributo, a saber: imposto, taxa e contribuição de melhoria. Os impostos não têm finalidade contraprestacional, isto é, nem sempre quem paga é quem recebe o benefício, ou então não o recebe na mesma proporção em que pagou. As taxas, somente as de serviço, embora se destinem ao custeio de serviço público específico e divisível – divisibilidade que pressupõe sua natureza contraprestacional – também estão sujeitas a princípios de extrafiscalidade, como o da capacidade contributiva: deve pagar mais quem pode mais. E não se deve esquecer de que os tributos, nos Estados modernos, tornaram-se, cada vez mais, instrumentos de distribuição mais eqüitativa da riqueza entre pessoas ou regiões. É forçoso concluir, assim, que a tributação, pelo menos em parte, representa perda ou prejuízo real.
  48. Comparem-se a desapropriação e a tributação, ambas instrumentos de realização do bem comum. Admita-se que todos os recursos tributários se convertam em serviços públicos. Conceda-se que cada um contribua na exata medida de suas possibilidades, isto é, que a tributação seja justa. Aceite-se que a consciência cívica de cada cidadão seja suficientemente desenvolvida, a ponto de inexistir sonegação fiscal: todos pagariam ao Fisco o devido por lei... Mesmo assim, não se poderia negar uma evidência: o tributo é prestação pecuniária compulsória e seu pagamento significa redução no patrimônio do contribuinte. Cada centavo pago representa perda patrimonial idêntica! Ocorreria o mesmo na desapropriação? Evidentemente, não. Por disposição constitucional expressa, a desapropriação sujeita-se a prévia e justa indenização. A expropriação é instrumento jurídico de transferência compulsória de determinado bem para o Estado... Mas o expropriando não sofre nenhuma redução em seu patrimônio! O que ocorre é substituição do bem por seu valor em dinheiro. Mesmo assim, a expropriação é considerada medida violenta. E o cidadão-contribuinte é muito mais conformado que o cidadão-expropriando... Haveria justificativa para isso? Será mesmo preferível dar dinheiro, ao invés de trocar um bem por outro? Poder-se-ia até acreditar que os povos civilizados se acostumaram à tributação, por sua constância, e, pela razão inversa, isto é, por sua ocasionalidade, sempre resistiram à desapropriação... Isso é possível. Mas na realidade, acontece outra coisa: o homem é mais apegado a sua propriedade, especialmente quando constituída de bens de raiz, do que ao dinheiro que paga como tributo, quase sempre mediante descontos realizados em seu salário, recolhidos por terceiros, ou mediante acréscimo no valor das mercadorias que adquire. O dinheiro também é seu, faz parte de seu patrimônio, é sua propriedade. Mas sua finalidade é circular – enquanto os bens de raiz só se transferem de quando em vez, ou permanecem com o mesmo dono durante toda a sua vida. Além dessas existem outras explicações para a resistência à desapropriação".

    (MENDES, Vicente de Paula. A Indenização na Desapropriação. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 1993, p.20-1)

  49. Em capítulo intitulado O EXCESSO TRIBUTÁRIO COMO FONTE DE GUERRAS E REVOLTAS, observa OLIVEIRA: "O materialismo histórico marxista é excelente enfoque para que se analise a cobrança excessiva de tributos. A espoliação sobre os povos leva à resistência. A história serve para que analisemos o passado e evitemos erros futuros. O Estado deve buscar apenas o montante necessário para o atingimento de suas finalidades. Havendo o suficiente para sua estruturação e o atendimento de suas necessidades materiais, não deve sufocar a sociedade com tributação excessiva. Sempre que isso ocorre há resistência que, conseqüentemente, leva à desqualificação do governante. Daí as guerras e confrontos. A ambição desmedida por petróleo, minas, riquezas minerais de forma geral e o controle de riquezas leva o mais forte a impor-se ao mais fraco. Desde os gregos e romanos havia a pilhagem, daí passando-se à empírica tributação. A sujeição à arrecadação advinha da conquista. ARDANT relata diversas revoltas fiscais em decorrência da pressão fiscal. O mesmo autor indaga se tais numerosas rebeliões não seriam decorrência da luta de classes. Suponho que o problema seja o mesmo, isto é, ao falar-se em luta de classes, fala-se no direito de não pagar tributos e no esmagamento das classes produtoras e laborais. Ao final, conclui que tudo se deve ao peso da carga tributária. Em verdade, não só as guerras de libertação decorreram dos pesados ônus que recaíam sobre os povos dominados, o que bem se vê pela independência dos Estados Unidos, do México e do Brasil. Sempre e sempre as resistências destinam-se à liberação dos encargos de pagamento que devem os povos submetidos aos outros. No fundo, tudo fica sendo uma questão financeira.
  50. (OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p.66-7)

  51. (...) o povo contribuinte, para não suportar surpresas e excessos, impôs ao soberano que a tributação fosse realizada com o consentimento dos próprios contribuintes, por meio de representação e previsão orçamentária, como é exemplo o caso que na Inglaterra resultou na histórica Magna Carta, até hoje documento fundamental das instituições políticas inglesas e expressão da supremacia constitucional em contraposição à vontade do rei e base do parlamentarismo. Podemos lembrar outro episódio como o da Revolução Francesa. Outro movimento de rebeldia, por causas várias, entre as quais também estão os excessos e arbítrios da tributação, foi o que provocou a independência das colônias norte-americanas. No Brasil tivemos a chamada "derrama" como um dos pródromos da inconfidência mineira.
  52. (NOGUEIRA, Ruy Barbosa, Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1995, p.5)

  53. A derrama era um tributo que recaía sobre toda a população e, assim, podia ser usada por estes interesses – os interesses daqueles que, durante tantos anos, tinham sido, eles próprios, os arrecadadores e agentes da autoridade real (os opressores, portanto) – dando-lhes uma fachada respeitável e a possibilidade de atrair o apoio popular para sua causa. O quinto real era o único tributo administrado diretamente pela coroa e mandado para Lisboa. Ao insistir na rígida observância da lei da quota de ouro de 1750, Melo e Castro deu aos magnatas mineiros a mais adequada das armas para usarem contra Portugal. No início de 1789, uma formidável conspiração tinha sido organizada em Minas Gerais, apoiada por alguns dos mais ricos e mais importantes homens da capitania e contando com apoio significativo da tropa regular aquartelada na região. Se tudo ocorresse conforme os planos, e a derrama fosse imposta em fevereiro de 1789, como se esperava, teria sido desencadeada uma ação que poderia, em última instância, desfechar um golpe arrasador no domínio português sobre o Brasil.
  54. (MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa. A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal. 1750-1808. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.156)

  55. Naquela época, como hoje, pode-se dizer que, se existem "paraísos fiscais" (ou zonas de baixa pressão), é porque também existem, em oposição, os "infernos fiscais" (ou zonas de alta pressão), nos quais a tributação chega a níveis insuportáveis (cf. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Norma fiscal antielisiva e sigilo bancário. Conferência proferida no V Congresso Brasileiro de Direito Tributário da ABRADT – Associação Brasileira de Direito Tributário. Agosto de 2001. Belo Horizonte-MG).
  56. BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História. A incrível saga de um país. São Paulo: Editora Ática, 2003, p.126.
  57. É pertinente a observação de Paula Derzi BOTELHO: "Percebe-se, assim, que o descontentamento para pagar impostos não decorre somente da grande quantidade e do alto valor dos tributos (muitos deles, no Brasil, instituídos por medidas provisórias), mas também, e principalmente, da constatação de que os recursos não são aplicados pela Administração para resolver os anseios populares mais evidentes (saneamento básico, saúde, educação e assistência social), resultando em fome, miséria, ignorância (e para quem não crê que a elite se preocupe com os desprivilegiados: falta de mão-de-obra qualificada e aumento da criminalidade)".
  58. (BOTELHO, Paula de Abreu Machado Derzi. Sonegação Fiscal e Identidade Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.3)

  59. Ainda no período do Brasil Colônia, episódio ilustrativo nos foi trazido por James MARINS: "O fenômeno tributário, em suas mais variadas possibilidades de investigação, sempre nos traz notícias históricas bastante curiosas. E, de uma certa forma ou de outra, todos nós sabemos que a História, mais cedo ou mais tarde, se repete. É muito importante que nós tenhamos condições de aprender com os fatos históricos, e aprender com os erros históricos, para que eles não se repitam. É muito conhecida da história de Minas Gerais uma figura chamada José Antônio de Meireles Freire. Ele foi o sétimo intendente dos diamantes do Tijuco – hoje conhecido como Diamantina. Mas, na verdade, ele não era conhecido como Meireles Freire, mas como CABEÇA DE FERRO. E isso por duas razões: primeiramente porque, na condição de intendente, e, portanto, fiscal do Rei (nas coisas que diziam respeito às recentemente descobertas minas de diamantes – maravilhosos do nosso país), agia com muito rigor com relação aos garimpeiros. Os garimpeiros eram aqueles que, impedidos, pela legislação, de garimpar, o faziam na ilegalidade. Portanto, aqueles que, dissimulados de lavradores, eram, na verdade, exploradores de diamantes. Na ocasião, com a finalidade de coibir a atuação dos garimpeiros, criou-se uma espécie de legislação punitiva, que foi chamada de LIVRO DA CAPA VERDE. Era uma espécie de punição, geral, irrestrita, para aqueles que dissimulavam sua atividade de garimpo. Era, nos padrões da época, uma espécie de norma geral antielisiva do garimpo. CABEÇA DE FERRO tinha esse nome porque era muito rude na aplicação dessa legislação. Levava aos extremos a função que lhe havia sido confiada. E, além de tudo, também era extremamente teimoso. Não percebia, na ocasião – isto faz parte da História deste grande Estado – que os sacrifícios que se impunham à população, por conta dos rigores daquela legislação eram, e muito, danosos à própria atividade do garimpo, já que à atividade legal do garimpo acabava se agregando um sem-número de indigentes – garimpeiros perseguidos pela sua atividade de subsistência. Como nós todos sabemos, em épocas de grandes dificuldades econômicas, a criatividade dos governos tende a crescer. No nosso país, não se pode reclamar da eficácia fiscal (do ponto de vista da arrecadação). Mas temos que ter uma preocupação muito grande com os mecanismos que estão sendo utilizados para essa finalidade. Nos Estados de Direito legitimamente constituídos, sob a égide de uma Constituição Democrática, consagrada pelo seu povo, acima de tudo o que conta não são as finalidades, mas sim os meios para se atingir a estabilidade econômica e o crescimento social. Nesse aspecto, as questões tributárias se apresentam como aquelas que mais assolam de problemas uma nação. Num país como o nosso, em que, em menos de oito anos, passamos de uma carga tributária, que estava em torno de 26% do PIB, para uma carga tributária hoje conhecida de 33% do PIB, e projetada para 2000, em 37% do PIB, as questões tributárias se afiguram como aquelas mais importantes do nosso país. É uma pena que não se esteja debatendo mais intensamente todas as implicações desse sistema. Esse LIVRO DA CAPA VERDE, que era utilizado por CABEÇA DE FERRO, quando da independência do Brasil, em 1822, foi queimado numa grande fogueira, em praça pública. Nós temos que esperar que diversas iniciativas legislativas que nós estamos assistindo vir à luz em matéria tributária não sejam autênticos LIVROS DE CAPA VERDE, ou que, pelo menos, se as leis vierem, que os aplicadores da legislação não sejam os nossos CABEÇAS DE FERRO.

(grifou-se. In: Regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional. Conferência proferida no VI Congresso Brasileiro de Direito Tributário da ABRADT – Associação Brasileira de Direito Tributário. Agosto de 2002. Belo Horizonte-MG).


Autor

  • Paulo Adyr Dias do Amaral

    Paulo Adyr Dias do Amaral

    Doutor em Direito Público - UFMG. Mestre em Direito Tributário - UFMG. Diretor da Associação Brasileira de Direito Tributário - ABRADT. Membro do Grupo de Estudos da Associação Brasileira de Direito Financeiro - ABDF/Minas. Membro da Associação Latino-Americana de Direito Comparado. Professor nos Cursos de Pós-graduação em Direito Tributário da PUC/Minas, das Faculdades Milton Campos, do Centro de Estudos na Área Jurídica Federal - CEAJUFE, do Centro de Atualização em Direito - CAD (em convênio com a Universidade Gama Filho).

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AMARAL, Paulo Adyr Dias do. A proteção da confiança legítima, o princípio constitucional da boa-fé e a resistência à tributação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2382, 8 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14134. Acesso em: 26 abr. 2024.