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A proteção da confiança legítima, o princípio constitucional da boa-fé e a resistência à tributação

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08/01/2010 às 00:00
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Para que haja reciprocidade na relação jurídico-tributária faz-se necessário segurança. Além de segurança jurídica, é preciso definir conceitos como proteção da confiança legítima, boa-fé objetiva e "nemo potest venire contra factum proprium".

1. A necessidade da tributação. A idéia de confiança

1.1. Tributação: necessidade social

Vivemos hoje, no Estado Fiscal [01]. Em todo o mundo, justifica-se a tributação pela necessidade de se manter os serviços públicos essenciais, de redistribuir renda etc, como assevera, v.g., Richard A. POSNER: "Taxation is sometimes intended to change the allocation of resources (…) or the distribution of wealth, but mainly it is used to pay for public services, though invariably with both allocative and distributive consequences…" (grifou-se) [02].

Essa imposição esteve presente em todos os tempos da humanidade. Régis Fernandes de OLIVEIRA, v.g., mostra o fenômeno tributário na Bíblia, na Grécia antiga, no Império Romano, no Império Macedônico, no governo visigodo e na Idade Média [03].

Há necessidades públicas a satisfazer. Conforme o mesmo OLIVEIRA: "Amplamente, pois, pode-se falar que tudo aquilo que incumbe ao Estado prover, em decorrência de uma decisão política, inserida em norma jurídica, é necessidade pública" [04]. Para alcançar esse desiderato, o Estado precisa de recursos – que são obtidos, basicamente, de dois modos:

a)sob a forma de receitas originárias: advindas da própria atividade estatal, mormente quando o Estado atua no domínio econômico – art. 173 da Constituição da República;

b)sob a forma de receitas derivadas: aquelas que o Estado busca no patrimônio do particular. Aqui surgem os tributos.

1.2. Proteção da confiança legítima

Para que haja reciprocidade na relação jurídico-tributária faz-se necessário o clima de segurança.

Nesse campo, para além da idéia genérica de segurança jurídica, é preciso conceituar algumas figuras específicas e distintas como: proteção da confiança legítima; boa-fé objetiva e nemo potest venire contra factum proprium. Aliás, já se disse que teoria nada mais é senão o conjunto de conceitos que nos serve para conhecer determinado domínio da realidade. Daí a importância da conceituação (e conseqüente distinção) dessas noções que, embora correlatas, não se confundem.

Heleno Taveira TÔRRES, em conferência proferida no X Congresso da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT, começa por advertir que, embora comumente apresentados na doutrina como expressões sinônimas ou meras decorrências um do outro, ou, ainda, aspectos diversos de uma mesma idéia, trata-se aqui de institutos diferenciados. E salienta que não podem jamais ser utilizados como panacéia para qualquer situação, quando, por exemplo, não se encontra argumento específico para discutir o caso concreto (observa TÔRRES que tal prática é comum no Poder Judiciário, seja em pedidos, seja em decisões, servindo a boa-fé a qualquer dificuldade). Esses excessos estariam, na verdade a prejudicar a utilidade e importância desses institutos no âmbito do Direito Positivo e, especialmente, no Direito Tributário.

Nessa ordem de idéias, percebe-se que há grande controvérsia na doutrina sobre se proteção da confiança legítima e boa-fé objetiva seriam, por um lado, realidades distintas e estanques ou, por outro, componentes de um mesmo tópico da teoria jurídica. Ferrenhas discussões são travadas a esse propósito (ao nosso sentir, desnecessária e inutilmente). Preferimos vislumbrar tais temas como fenômenos conceitualmente distintos (como ensina TÔRRES), porém correlacionados entre si (como são, aliás, os diversos institutos do Direito – que, embora pertencentes a ramificações diferenciadas, jamais se apartam da unidade geral do sistema, conferindo-se-lhes a idéia de harmonização e implicação recíproca). Em ciência, é necessário que cada realidade autônoma tenha designação própria, a fim de que haja precisão técnica da linguagem, bem como dos respectivos conceitos. Mas isso não significa, de forma alguma, que tais realidades sejam incomunicáveis. É com esse espírito que traçaremos, a seguir, algumas reflexões em derredor das lições de TÔRRES e DERZI.

De início, como adverte TÔRRES, é preciso afastar qualquer hipótese de vinculação desses conceitos a situações ilícitas, bem como afastá-los da idéia de segurança jurídica genérica (aquela segurança de proteção do sistema integral), e, ainda, dos casos que já estão regulados pelo Direito Positivo. Tais conceitos são nitidamente inspiradores de diversas regras legais já constantes de nosso sistema tributário [05]. Nessas hipóteses, o problema já é naturalmente solucionado pelo critério da regra positiva. Por isso mesmo, não é para esses casos que eles se aplicam (mas, ao revés, para aquilo que não se encontra legislado).

Em que sentido se pode falar em segurança jurídica? A expressão comporta mais de uma noção. Alfredo Augusto BECKER sempre lembrava: o jurista nada mais é que o semântico da linguagem do Direito. A cada momento que pensamos numa expressão jurídica, numa palavra jurídica, o que nos vem à mente é o campo de irradiação semântica desse termo.

Para melhor compreensão, partamos da bipartição do princípio da segurança jurídica, tantas vezes ensinada, em aulas e conferências, por Paulo de Barros CARVALHO. Noutras palavras: segurança jurídica tem dupla conotação, ou bi-direcionamento. Ela se volta para o passado e se arma para o futuro. Volta-se para o passado quanto protege aquelas situações já definitivamente consolidadas no pretérito: coisa julgada, ato jurídico perfeito, direito adquirido, garantia de irretroatividade do direito etc. Arma-se para o futuro quanto garante o administrado contra as mudanças que ocorrerão (ou poderão ocorrer), permitindo-lhe que se prepare; é a previsibilidade da atuação estatal – que no direito positivo se manifesta nos princípios da não-surpresa, da anterioridade tributária, da espera nonagesimal etc. Até aqui se trata da segurança jurídica em seu sentido genérico.

Porém, o princípio da proteção da confiança legítima é um aspecto bem mais sutil desse contexto. Direciona-se para o futuro (previsibilidade, imutabilidade das situações etc.), mas não para aqueles casos já garantidos pela estrita legalidade. Relaciona-se com o ambiente de direito seguro. Aqui se passa a falar no "estado de confiança" – que não mais se restringe à legalidade. O cidadão confia nos comportamentos do Estado e não pode ser prejudicado em razão da confiança que nele depositou. Acredita deter o direito legitimamente, até porque tal direito lhe fora concedido pelo próprio Estado. Enfim, nesses casos, o panorama fático no qual se encontra o indivíduo é gerado pela própria atuação estatal [06].

Instala-se esse estado de confiança, no âmbito do Poder Judiciário, verbi gratia, quando o Tribunal decide reiteradamente em certo sentido, levando o jurisdicionado a crer que continuará a adotar a mesma orientação no que tange aos casos idênticos futuros. Essa justa expectativa, por vezes, se frustra.

Pode-se mencionar como exemplo desse fenômeno a seqüência de julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, na qual a Corte rejeita a aplicação de sua antiga Súmula 584 [07] (aprovada em Sessão Plenária de 15-12-1976), por considerá-la ofensiva ao princípio da irretroatividade tributária, mormente após o advento da Constituição da República de 1988. Embora a Súmula não tenha jamais sido cancelada, houve a justa expectativa de que o Tribunal não mais a aplicasse. Expectativa esta que se quebrou com a recente "ressurreição" da Súmula 584 – e, com ela, ambiente de imprevisibilidade e insegurança jurídica [08].

Daí a lição de Misabel DERZI, com apoio em Niklas LUHMANN:

(...) o juiz, diferentemente do legislador, está vinculado às suas decisões e às premissas que as fundamentaram, sendo mais estreito o seu espaço de liberdade (...). Ou seja, o princípio da igualdade impõe que a sentença seja obrigatoriamente fundamentada, sob pena de nulidade (art. 93, IX, da Constituição). E a mesma fundamentação deverá nortear idênticas decisões futuras, em casos idênticos. Permitir a alteração do juízo, sem a demonstração das diferenças em um novo caso concreto posterior, seria consentir no arbítrio e no querer qualquer judicial, afrontoso à isonomia.

E, após examinar as idéias de LUHMANN acerca do fechamento operacional do sistema, ressaltando que no Direito Tributário esse fechamento é expresso e mais rígido, DERZI conclui: "Interpretações imprevisíveis instalam a arbitrariedade, que desiguala injustamente os contribuintes e projetam insegurança. A segurança é condição da igualdade e não sua contradição, traço formal limitativo do sistema, que necessariamente o separa do ambiente restante" [09].

Heleno Taveira TÔRRES adverte que o princípio em questão (proteção da confiança legítima) não é universal: rejeitado pela França, já é contemplado pelas legislações espanhola e portuguesa. E tem encontrado crescente aceitação no Brasil. Mas não pode ser visto jamais como princípio subjetivo, casuístico ou discricionário. TÔRRES é enfático ao sustentar que este princípio não é uma panacéia. Não é como o "leito de Procrusto" – que serve a qualquer fim [10].

Nessa ordem de idéias, os requisitos da proteção da confiança legítima são: a) atuação lícita da Administração Pública (caso contrário, se o ato for ostensivamente ilícito, não haverá dúvida quanto à sua invalidade); b) competência do órgão administrativo na matéria (da mesma forma, se o órgão for incompetente, teremos a invalidade natural do ato); c) a Administração deve objetivar situação que produza estado de confiança, na qual o administrado tenha essa noção; d) que o cidadão mantenha-se em boa-fé (não se pode pleitear direito que corresponda à atitude de má-fé, pois a ninguém é dado alegar a própria torpeza).

Por fim, são pertinentes os seguintes dispositivos da Lei Geral do Processo Administrativo Federal (Lei n. 9.784, de 29-1-1999), a propósito dos limites para a invalidação de atos dessa natureza (especialmente prazo):

CAPÍTULO XIV

DA ANULAÇÃO, REVOGAÇÃO E CONVALIDAÇÃO

Art. 53.

A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.

§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.

Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.

1.3. Boa-fé objetiva.

Noção distinta da proteção da confiança legítima, segundo Heleno Taveira TÔRRES, está na boa-fé objetiva. Novamente, cumpre fazer distinções (boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva – diferenciação que não tem aceitação unânime na doutrina).

Boa-fé subjetiva é o estado psicológico da consciência individual no sentido do atuar em ambiente de lealdade, com intenção cordata e legítima.

Já a boa-fé objetiva apresenta cunho social, a depender sempre da situação concreta na qual essa condição possa ser avaliada. Seu requisito fundamental é a alteridade – a compreensão do outro. Misabel DERZI esclarece este tópico:

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Se o princípio da "boa-fé é dever de consideração para com o alter", realçam os juristas do Direito Privado as funções mais importantes da boa-fé na formação e execução das obrigações: a) como fonte criadora de deveres especiais nos contratos, a saber, de informar, de colaborar, de avisar, de cuidar "do outro"; b) como limitação ao exercício dos direitos subjetivos, coibindo-se o abuso e a não razoabilidade da conduta de cada uma das partes; c) como fonte de concreção das relações e de interpretação e reinterpretação dos contratos" [11].

Para DERZI, a boa-fé objetiva se desenvolve na proibição do venire contra factum proprium, nos institutos da supressio e da surrectio, ou, ainda, no instituto processual anglo-saxão do stoppel, ressaltando que "no Direito Privado e, com mais razão, no Direito Público, a proteção da confiança das expectativas criadas e o respeito à lealdade transformam-se em importantes equivalentes funcionais ou em acopladores estruturantes e estabilizadores do sistema" [12].

A propósito do axioma nemo potest venire contra factum proprium, Judith MARTINS-COSTA (que também insere esse instituto no âmbito do princípio da boa-fé objetiva) anota que incorre nessa proibição "quem exerce posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente, verificando-se a ocorrência de dois comportamentos de uma mesma pessoa, diferidos no tempo, sendo o primeiro (o factum proprium) contrariado pelo segundo". E esclarece que "o verdadeiro desenvolvimento do venire contra factum proprium, na Alemanha, ocorreu por volta da década de 70 do Século XX, com as construções que lograram associá-lo ao princípio da boa-fé objetiva". Demonstra, nesse passo, a incompatibilidade entre a contradição própria e a responsabilidade jurídica:

Daí estabelecer-se a relação entre o venire e boa-fé objetiva, isto é, a boa-fé ética ou "regra de conduta leal", que prescinde da atenção aos aspectos psicológicos, não pressupondo, necessariamente, a errônea crença, nem a má-fé ou a negligência culpável como elementos da expectativa criada na contraparte. (...) Nessa perspectiva, não consubstancia uma específica proibição da má-fé e da mentira, mas, verdadeiramente, uma aplicação do princípio da confiança no tráfico jurídico [13].

Fala-se, aqui, pois, no dever de coerência. Em Direito Administrativo, essa orientação obriga a Administração Pública a se conformar com as regras que ela própria instituiu. Exemplo concreto nos foi trazido por TÔRRES, na conferência mencionada [14].

Sobre os termos supressio, surrectio, stoppel, tu quoque e o próprio venire contra factum proprium, Judith MARTINS-COSTA enfatiza: "O que todas estas expressões refletem, em suma, é que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua anterior conduta interpretada objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, ou quando o exercício posterior se choque com a lei, os bons costumes e a boa-fé" [15].

Os vocábulos supressio e surrrectio não oferecem maiores dificuldades: tratam como os próprios nomes sugerem, da insegurança gerada pela abrupta supressão de práticas reiteradamente adotadas (e cuja repetição se espera) ou pela repentina ressurreição de práticas já abolidas e esquecidas (de cujo exercício já nem mais se cogita). Numa ou noutra hipótese, o efeito é o mesmo: a indesejável surpresa.

Já o stoppel é conceituado por Judith MARTINS-COSTA como uma "barreira ou freio erigido às pretensões de quem reclama algo em contradição com o que anteriormente havia aceitado". Adverte que essa figura admite diversas configurações, mas assevera que, de modo geral, por meio dela se "impede, em virtude de uma presunção iuris et de iure, uma pessoa de afirmar ou negar a existência de um fato determinado se antes exercitara um ato, fizera uma afirmação ou formulara uma negativa em sentido precisamente oposto". Exemplifica com o CASO SIÃO, ocorrido em 1908, no campo do Direito Internacional [16].

Por fim, sobre o tu quoque, que tem origem na lendária expressão "até tu Brutus?" explica Judith MARTINS-COSTA: "A má-fé de quem alega o prejuízo afasta, evidentemente, a sua incidência [do venire], pois do contrário a torpeza estaria tutelada. Aliás, nesse caso, pode haver a conjugação entre o venire e a figura nomeada por Menezes Cordeiro como ‘tu quoque’, que significa imputar a alguém – requerendo a proteção do direito – determinada conduta que já se praticou naquela mesma situação jurídica". O exemplo, oriundo dos Tribunais argentinos, é curioso: "(...) foi censurada a conduta de quem abandonou a esposa, passou a conviver com outra pessoa e, mais tarde, veio alegar em juízo ‘injúria’ por parte da esposa que se mostrava em público com outro homem" [17].

1.4. Boa-fé como princípio constitucional. A implicitude como parte constitutiva do texto

Paulo de Barros CARVALHO traça a distinção entre princípios constitucionais expressos e implícitos, salientando que ambas as categorias operam com a mesma força no sistema:

Inspirando esse conjunto, que forma o sistema constitucional tributário nacional, temos uma série de princípios: expressos e inexpressos (implícitos). A implicitude é parte constitutiva do texto. O texto é formado pelo plano da expressão e pelo plano do conteúdo. O plano do conteúdo não aparece; há de ser construído. Mas esse plano construído é constitutivo do texto. Noutras palavras, essa implicitude faz parte do texto, tanto como as normas explícitas.

Figure-se exemplo bem característico dessa afirmação: o direito administrativo brasileiro se firma em dois fundamentos básicos: princípio da supremacia do interesse público ao do particular e princípio da indisponibilidade dos interesses públicos. Onde estão gravados esses princípios no texto constitucional (ou em outras leis de inferior hierarquia)? Não encontraremos. E vem a pergunta: como posso evocá-los? Esses princípios são implícitos, mas decisivos para a compreensão do fenômeno jurídico administrativo no Brasil.

Outro exemplo: onde está o princípio da isonomia das pessoas políticas de direito constitucional interno (União, Estados, Distrito Federal e Municípios)? Encontraremos suportes normativos para esse princípio (mas não o princípio expressamente referido). Vislumbra-se, nessa ordem de idéias, a existência de princípios expressos e princípios implícitos.

O princípio da Justiça, para alguns, é o princípio soberano, o princípio maior de todo o ordenamento jurídico. Onde está gravado no nosso texto constitucional? E que dizer do princípio da segurança jurídica? E o princípio da certeza do Direito?

E, assim por diante, é grande o número de princípios implícitos, que serão construídos a partir do plano da expressão do texto constitucional brasileiro. Lendo o texto, passamos a construir, a partir dele, esses princípios, que são proclamados e reconhecidos por todos. Então, há princípios expressos e princípios implícitos.

Entre os princípios expressos e os princípios implícitos, há aqueles que dizem respeito a toda a ordem jurídico-positiva (princípios gerais – que valem para todo o direito positivo), e, já que valem para todo o direito posto, valerão para o subsistema constitucional tributário também. São princípios que se aplicam a todos os subsistemas do sistema geral.

Estes princípios são enunciados prescritivos. Todo enunciado que está no Direito tem a força de enunciado prescritivo. Ainda que a forma seja descritiva (v.g.: "O Brasil é uma república federativa"), a função é prescritiva, porque toda a linguagem do Direito está a cumprir essa função prescritiva de condutas. Ela se projeta sobre o contexto social para disciplinar as condutas intersubjetivas, canalizando-as em direção a certos valores, que a sociedade quer ver realizados. Desse modo, tudo que estiver no texto, ainda que sob forma descritiva, tem função prescritiva. E esses princípios todos valem para o direito posto (para o Direito como um todo) e, por isso mesmo, valerão para o subsistema constitucional tributário.

Repito: os princípios são expressos e são implícitos. Os implícitos com a mesma força dos expressos [18].

(Grifou-se)

No mesmo sentido ensinou Geraldo ATALIBA, citando, por sua vez, Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO: "Entende-se por princípio a disposição, expressa ou implícita, de natureza categorial em um sistema, que conforma o sentido das normas implantadas em uma dada ordenação jurídico-positiva" (grifou-se) [19].

Por vezes, a grande força do princípio constitucional reside exatamente na sua implicitude. Ao migrar, do plano inexpresso para o texto expresso, corre o risco de ser esvaziado em seu conteúdo e tornar-se letra morta. Helenilson Cunha PONTES, v.g., conhecido por todos como aguerrido defensor do princípio da proporcionalidade (especialmente no que tange a sanções fiscais), declara abertamente preferir que este princípio continue a residir no plano inexpresso. Pois, se migrasse para o texto constitucional expresso, poderia, um dia, dele ser retirado (via Emenda à Constituição). Em seguida, poder-se-ia argumentar que, a partir dessa supressão, tal princípio teria deixado de existir na ordem jurídica brasileira. Ou seja: a positivação do princípio poderia ser o primeiro passo da estratégia que resultaria na sua própria extinção [20]. Outro exemplo claro desse fenômeno é dado por Paulo de Barros CARVALHO, na aula já mencionada:

Até a Constituição da República de 1988, nunca existira, no Brasil, imperativo constitucional expresso que estabelecesse a progressividade do imposto sobre a renda da pessoa física. E esse imposto era progressivo. As alíquotas aumentavam, à medida que aumentassem as bases de cálculo, a ponto de vigorar tabela com nove faixas de incidência, além da de isenção. O imposto era, pois, progressivo. Não havia nenhum mandamento constitucional expresso nesse sentido. Com a promulgação da Constituição de 1988, firmou-se a linha mediante a qual o imposto sobre a renda deveria respeitar o princípio da generalidade, universalidade e da progressividade (inciso I do § 2º do artigo 153). Foi o que bastou para essa tributação (imposto sobre a renda da pessoa física) deixar de ser progressiva. Hoje há apenas duas faixas de alíquotas, que não resolvem nada em termos de progressividade. Essa expectativa de que, havendo o princípio da progressividade expressamente colocado na Constituição, o imposto seria efetivamente progressivo, frustrou-se [21].

Essa introdução se faz necessária para sustentarmos: boa-fé é princípio constitucional – da categoria dos implícitos.

Trata-se de princípio subjacente ao sistema constitucional brasileiro – e que emerge do texto expresso, imperativamente. Melhor dizendo, o princípio da boa-fé decorre diretamente de um dos PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS assentados logo no primeiro artigo da Carta Maior. Isso porque a República Federativa do Brasil tem, como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana – art. 1º, inciso III. Como anotou Celso Ribeiro BASTOS, "é um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas" [22]. E nenhuma pessoa alcança o patamar da dignidade humana se sua boa-fé não é respeitada ou se, em torno de suas atitudes, o Estado faz operar presunção de má-fé. Dignidade humana é valor incompatível com tratamento de desconfiança, gratuito e implausível, por parte do Estado para com seus administrados. Em suma: não é desconfiando de seus súditos que o Estado realizará o princípio da dignidade humana, mas, ao revés, fazendo prevalecer a presunção de boa-fé. Daí constituir a boa-fé princípio constitucional – da categoria dos inexpressos, mas com a mesma força e imperatividade dos princípios expressos.

Observa, a propósito, Aroldo Plínio GONÇALVES:

A dignidade humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se, então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade contemporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer ser agente da sua história [23].

No campo do Direito Tributário, Ivan Tauil RODRIGUES, após asseverar que "o positivismo parece ter dado mostras de esgotamento enquanto paradigma único para estruturação dos sistemas jurídicos" e advertir que "parece apresentarem-se como anacrônicos os discursos que insistem em cânones formalistas absolutos", nos traz oportuna lição:

A análise do princípio da boa-fé revela novos parâmetros dos quais a relação, antes fundada determinantemente no princípio da autonomia da vontade, deve ser enquadrada no sistema jurídico. Esses novos parâmetros que, no caso específico da boa-fé, sinalizam para o dever de cooperação entre as partes vinculadas por uma relação obrigacional, para o dever, enfim, de consideração pelos interesses alheios à luz do escopo econômico-social da relação em questão, poderiam ser resumidos através do imperativo ético de solidariedade e responsabilidade na prática de atos ou celebração de negócios. A preocupação ética com o enquadramento social dos atos e negócios individuais, e sua conseqüente responsabilidade social, atua, desde a Primeira Grande Guerra, na ampliação do princípio da boa-fé, na integração da teoria da vontade através do princípio da proteção da confiança, no esforço direcionado à justiça material, na limitação do uso da propriedade através da ênfase em sua vinculação social. O imperativo da boa-fé fornece precioso instrumento de moralização do Direito e sua ressonância lhe garante uma simpatia geral.

Essa moralização, ou "eticização" do Direito, contudo, exige do intérprete argumentos de natureza axiológica e não mais simplesmente de natureza lógico-formal, já que o fim perseguido será doravante a concretização de princípios e valores estabelecidos no Texto Maior. (...) O princípio da boa-fé se materializa, igualmente, no respeito recíproco, principalmente no seio daquelas relações jurídicas que requerem uma extensa colaboração. É efetivamente, no conceito de extensa colaboração que se pode descrever a relação que vincula os obrigados à satisfação das prestações derivadas dos tributos com a Administração Tributária. A multiplicidade e a complexidade dos atos jurídicos, derivados da existência de diversas obrigações tributárias que surgem ao longo da vida, criam uma prolongada relação entre os administrados e a Administração tributária, sendo de relevo ressaltar que, se a tensão entre o interesse privado e o público não se resolve em uma projeção dos valores que encarnam a boa-fé, vêem-se ameaçadas a paz e a segurança jurídica (grifou-se).

E conclui, em absoluta consonância com o pensamento que até aqui se expôs:

A idéia da boa-fé está unida ao contexto da relação tributária, tal como a clareza, certeza, previsibilidade e estabilidade, sendo todas elas condições do exercício leal de um direito ou do cumprimento leal de uma obrigação.

(...)

No que tange ao Fisco, há que se esperar igual lealdade e colaboração, sendo certo que a motivação dos atos administrativos é, também, sinal materializador da boa-fé do Administrador, podendo-se sem dúvida afirmar que o princípio da boa-fé sugere-obriga à motivação de qualquer atividade administrativa (grifou-se) [24].

Recentemente, a supremacia da presunção da boa-fé tem sido regularmente reconhecida pela jurisprudência, como ilustra o seguinte aresto do Superior Tribunal de Justiça:

TRIBUTÁRIO – IMPORTAÇÃO – APREENSÃO DE MERCADORIA ESTRANGEIRA ADQUIRIDA NO MERCADO INTERNO – PENA DE PERDIMENTO. TERCEIRO DE BOA-FÉ. PRECEDENTES.

A aquisição, no mercado interno, de mercadoria importada, mediante nota fiscal emitida por firma regularmente estabelecida para integrar o ativo imobilizado da empresa gera a presunção de boa-fé do adquirente, cabendo ao Fisco a prova em contrário. Recurso conhecido e provido.

(Grifou-se).

(RESP n. 0015073-DF, 2ª T., Rel. Min. Peçanha Martins, decisão de 27/4/94, DJ de 15/8/94, p. 20.320) [25]

1.5. Boa-fé como princípio da ordem dos valores

Visto que a boa-fé é princípio constitucional implícito, necessário se faz situá-lo em outra ordem de classificação: aquela proposta por Paulo de Barros CARVALHO, na mesma aula já mencionada, segundo a qual os princípios são:

a)limites objetivos

ou

b)valores

em si mesmos.

Isso significa dizer:

- ou os princípios são valores (princípios axiológicos);

- ou são instrumentos de efetivação dos valores.

CARVALHO propõe essa teorização a partir da TEORIA DOS VALORES – corrente de pensamento filosófico que se desenvolveu entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX e que contou com profundas contribuições de Martin HEIDEGGER, Ludwig WITTGENSTEIN, Johannes HESSEN [26] e Miguel REALE [27].

Assim, alguns princípios são limites objetivos, ou seja: instrumentos de efetivação dos valores. Exemplo: princípio da não-cumulatividade – não encarna um valor em si mesmo. O ser não-cumulativo não é um valor que o legislador constituinte queira realizar. Ele não se satisfaz com esse tópico. Na verdade, a não-cumulatividade aponta para certos fins, provoca uma série de efeitos – e estes, sim, é que são perseguidos pelo legislador (neutralidade de mercado, não-verticalização das empresas, não-deformação dos preços no mercado etc.).

Miguel REALE dizia que o fim, apresentando-se como razão de ser da conduta humana, é sempre valor. Quando a conduta humana aponta para um fim, este fim é valor. É isso que encontraremos nos limites objetivos: procedimentos que revelam uma razão de ser para a obtenção de um fim. Há outros exemplos: princípio da anterioridade tributária, irretroatividade do Direito, legalidade, tipicidade, progressividade, seletividade etc.

Outros princípios são, em si mesmos, valores (e não meros procedimentos técnicos). Nesse campo estão os fins propriamente ditos: justiça, segurança jurídica, certeza do Direito, não-surpresa, previsibilidade da atuação estatal, capacidade contributiva, igualdade, democracia, liberdade, vedação do confisco.

Se estivermos diante de um princípio jurídico, como saber se se trata de limite objetivo ou valor? Johannes HESSEN traça um roteiro sintático, adotado por Miguel REALE, apontando traços lógicos inerentes aos valores:

a)bipolaridade

: "o valor é sempre bipolar. (...) a um valor sempre se contrapõe um desvalor; ao bom se contrapõe o mau; ao belo, o feio; ao nobre, o vil; e o sentido de um exige o do outro. Valores positivos e negativos se conflitam e se implicam em processo dialético". Essa dialeticidade e bipolaridade dos valores deitará reflexos no campo processual: "Não é por mera coincidência que existe sempre um autor e um réu, um contraditório no revelar-se do Direito, dado que a vida jurídica se desenvolve na tensão de valores positivos e negativos. O Direito tutela determinados valores, que reputa positivos, e impede determinados atos, considerados negativos de valores". Tal noção é essencial para a compreensão da própria finalidade do Direito: "até certo ponto, poder-se-ia dizer que o Direito existe porque há possibilidade de serem violados os valores que a sociedade reconhece como essenciais à convivência" [28].

b)implicação recíproca

: "Se os valores são bipolares, cabe observar que eles também se implicam reciprocamente, no sentido de que nenhum deles se realiza sem influir, direta ou indiretamente, na realização dos demais" [29].

c)necessidade de sentido ou referibilidade

: "Exatamente porque os valores possuem um sentido é que são determinantes da conduta. A nossa vida não é espiritualmente senão uma vivência perene de valores. (...) Só o homem é capaz de valores, e somente em razão do homem a realidade axiológica é possível" [30].

d)preferibilidade – possibilidade de ordenação ou graduação preferencial ou hierárquica

: "o valor envolve, pois, uma orientação e, como tal, postula uma quarta nota, que é a preferibilidade. (...) fim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivo de conduta". É curioso notar que, onde quer que sejam lançados valores, logo haverá certa organização para que um deles assuma a posição de preeminência. "É aqui que encontramos outra característica do valor: sua possibilidade de ordenação ou graduação preferencial ou hierárquica" [31]. Essa hierarquização ocorre na conformidade da ideologia do intérprete. Somente a força ideológica do intérprete, com sua experiência pessoal, com sua trajetória de vida, com suas vivências psíquicas, poderá dizer se, neste ou naquele caso concreto, a legalidade deve prevalecer sobre a igualdade, se a dignidade humana pode se sobrepor à segurança, se o contraditório e a ampla devem prevalecer sobre a celeridade processual etc. São problemas dessa natureza que os Tribunais têm enfrentado em sua lida diária [32].

e)incomensurabilidade

: os valores não podem ser medidos. Não faz sentido atribuir números, medidas quaisquer, para dimensionar valores. Não é compreensível dizer que uma sentença atingiu 9,5 pontos de Justiça ou que uma obra de arte alcançou 8,7 graus de beleza. A mensuração não é cabível no campo dos valores. "(...) os objetos ideais são quantificáveis; os valores não admitem qualquer possibilidade de quantificação. Não podemos dizer que o Davi de Miguel Ângelo valha cinco ou dez vezes mais que o Davi de Bernini. A idéia de numeração ou quantificação é completamente estranha ou elemento valorativo ou axiológico. Não se trata, pois, de mera falta de temporalidade e de espacialidade, mas, ao contrario, de uma impossibilidade absoluta de mensuração" [33]. No plano do Direito Tributário, o princípio da vedação do confisco é, v.g., nitidamente, de cunho axiológico. Até que ponto se considera admissível a tributação? A partir de marco se pode considerar caracterizado o confisco? Todas as tentativas de "quantificação" do confisco, em todo o mundo, falharam.

f)dificuldade de se encontrar critérios objetivos de solução

: enfim, que é confisco? A doutrina mundial tem escrito sobre o tema sem encontrar critérios objetivos de solução. Isso denota, imediatamente, a presença de um valor. Em que consiste o princípio da igualdade? Em que medida os "iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente"? Qual a circunscrição delimitadora da capacidade contributiva? Que é democracia? Que é liberdade? Se a controvérsia diz respeito a valores, as dificuldades vêm de todos os lados, os discursos carregados de expressividade emocional e jogos de metáfora se prolongam, múltiplas teorizações se formam e as pessoas não ficam convictas. Quando, ao contrário, a discussão se circunscreve a limites objetivos, a decisão é fulminante. É rápida. Não suscita maiores indagações. Exemplos: determinado diploma cumpriu (ou não) o princípio da anterioridade de exercício financeiro? Basta que o magistrado perfaça o confronto de datas entre a publicação da norma e o momento da exigência do gravame. Outrossim, foi (ou não) observado o princípio da irretroatividade tributária? Basta fazer o cotejo entre o período de eficácia da lei e o momento da ocorrência do fato ao qual se reporta.

g)necessidade de objetivação

: os valores estão sempre objetivados. Não há o belo fora de telas, de esculturas, de paisagens etc. O belo não está solto no ar. Ele necessita de uma situação material na qual possa estar presente. Da mesma forma é a justiça. Não há o valor justiça fora de decisões, sentenças, deliberações etc. A justiça não existe isoladamente, mas, ao revés, pressupõe a situação material e fática na qual se concretizará.

h)inexauribilidade

: os valores são inexauríveis. Não se esgotam. Por mais que se considere bela determinada obra de arte, haverá sempre beleza para outras obras. Por mais que se considere justa determinada sentença, haverá sempre o valor justiça para decisões distintas.

i)historicidade

: os valores não caem do céu. As significações não vêm prontas e construídas – elas vão sendo, gradativamente, construídas por nós. Os objetos não portam, em si mesmos, valores. Nós é que lhes atribuímos valores. A Vênus de Milo é apenas uma peça de mármore que não traz, em si mesma considerada, nenhum valor. Nós é que lhe atribuímos valor (histórico e cultural), por força de nossa cultura e de nossos conhecimentos. Assim, a atribuição de valores aos objetos do conhecimento depende, fundamentalmente, de nossa cultura [34].

J)presença dos valores nos modais deônticos (obrigatório, permitido e proibido)

: só há três modais deônticos na Filosofia: obrigatório, permitido e proibido. As condutas são assim modalizadas na conformidade do valor que o legislador lhes atribui. Quando o legislador diz que certa conduta é obrigatória, isso significa que a valorou positivamente, entendendo que ela é boa para o contexto social, e, por isso, deve ser exercida. Se disser que outra conduta é proibida, significa que a valorou negativamente, entendendo que ela é nociva ao convívio social, devendo, portanto, ser coibida. Se, finalmente, disser que a conduta é permitida, quer com isso dizer que ela é compatível com o contexto social e, pode, por isso, ser tolerada. Em qualquer desses três modais sempre estará presente o valor.

O princípio que não apresentar qualquer desses traços lógicos não será valor.

E boa-fé, evidentemente, é valor. Não se trata de mera regra técnica, nem tampouco de simples procedimento. Constitui um dos fins do Direito que as relações jurídicas sejam orientadas pela boa-fé e pela lisura de postura. Daí a presunção que em seu derredor deve militar.

1.6. Boa-fé no Direito Comparado

Adentrando o Direito Comparado, cumpre registrar a experiência espanhola. Na Ley de Derechos y Garantías de los Contribuyentes (Ley 1, de 26 de febrero de 1998), o princípio da boa-fé é expresso com uma clareza com a qual não estamos acostumados. Logo na EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS consta: "En el capítulo VII se consagra la presunción de buena fe e se prevé la separación entre el procedimiento sancionador y el de comprobación e investigación, así como la suspensión de la ejecución de las sanciones tributarias hasta que adquieran firmeza en vía administrativa". Vejamos o que diz o texto de lei:

CAPÍTULO VII

Derechos y garantías en el procedimiento sancionador

Artículo 33. Presunción de buena fe.

1.La actuación de los contribuyentes se presume realizada de buena fe.

2.Corresponde a la Administración tributaria la prueba de que concurren las circunstancias que determinam la culpabilidad del infractor en la comisión de infracciones tributarias.

Este dispositivo desmente o argumento autoritário e truculento de que a propalada presunção de legitimidade do ato administrativo teria o condão de eximir a Fazenda Pública do encargo probatório quando aponta intenção malévola do administrado. Entre todas as presunções subjacentes ao sistema, é a presunção de boa-fé que goza da supremacia.

Noutra passagem, a lei da Espanha afasta a figura da preclusão, permitindo ao contribuinte a ampla possibilidade de deduzir alegações e produzir provas, em qualquer momento processual anterior ao julgamento:

Artículo 21.

Alegaciones.

Los contribuyentes podrán, en cualquer momento del procedimiento de gestión tributaria anterior al trámite de audiencia o, en su caso, a la redacción de la propuesta de resolución, aducir alegaciones y aportar documentos u otros elementos de juicio, que serán tenidos en cuenta por los órganos competentes al redactar la correspondiente propuesta de resolución.

Este preceito é mais favorável ao administrado que aquele constante de nosso Decreto n. 70.235, de 6-3-1972 (artigo 16, § 4º), que, salvo algumas hipóteses, dispõe que "a prova documental será apresentada na impugnação, precluindo o direito de o impugnante fazê-lo em outro momento processual".

Essas breves referências oriundas da Monarquia espanhola bem nos dão noção do respeito de que goza o contribuinte entre os povos cultos. Respeito este que se materializa, não apenas pela iniciativa de se aprovar lei específica – apenas para tratar de direitos e garantias do cidadão-contribuinte [35], mas também pela criação do Consejo para la Defensa del Contribuyente, efetivada pelo Real Decreto 2458/1996, de 2 de diciembre, com vistas ao cumprimento e eficácia da Lei em questão (como igualmente consta do item II da EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS). É o inverso do que ocorre na República brasileira, onde as leis específicas tratam tão-somente dos ônus e encargos que recaem sobre seus administrados (já esmagados pela crescente carga tributária) e as Emendas Constitucionais são concebidas apenas para suprimirem direitos (ignorando-se por completo a árdua trajetória social de lutas que resultara na inserção desses mesmos direitos na Constituição originária). São aqui oportunas as lições de TEORIA DO ESTADO ministradas por Aloízio Gonzaga de Andrade ARAÚJO, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, nas quais o experiente mestre preconiza que o regime político (autocrático ou democrático) se efetiva em função das concepções de mundo dominantes no seio da sociedade (e seus conseqüentes métodos de criação e exercício da ordem jurídica), independentemente da forma de governo adotada pelo Estado soberano (monarquia ou república). Cabe aqui relembrar as palavras de Misabel DERZI: "Sejamos coerentes. Se for para imitá-los, que imitemos tudo!".

Enfim, evidencia-se, no Brasil, um problema cultural. Nossa cultura, infelizmente, ainda é a da desconfiança recíproca. Os contribuintes desconfiam do Fisco e vice-versa. Precisamos, urgentemente, nos mirarmos em outros exemplos.

Em 11-3-2004, v.g., o Sistema FIEMG – Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, em parceria com a Secretaria de Estado da Fazenda de Minas Gerais – SEF/MG, promoveu a conferência: "Aproximação do setor privado com a administração fiscal – A experiência canadense". Compareceu a diretoria da Association de Planification Fiscal et Financière, organização não governamental situada em Québec, que, há vários anos, desenvolve, no Canadá, belíssimo trabalho de aproximação e diálogo entre Fazenda Pública e contribuintes, inclusive no que tange à elaboração legislativa. Mostrou-se, naquele notável evento, a importância da cultura da confiança recíproca, que vigora naquele país, e sem a qual não há sistema tributário que possa funcionar na prática. É, sem dúvida alguma, um dos exemplos que deveríamos seguir.

1.7. Reciprocidade na relação jurídico-tributária

Não há, em nenhum país, sintonia perfeita e absoluta entre Estado arrecadador e o administrado que se vê compelido ao pagamento de tributos. Em certa medida, é natural a aversão do indivíduo à cobrança tributária, da mesma forma como é instintiva e imediata a reação do proprietário contra o invasor de seu território.

Não obstante, é sabido que, em muitos Estados estrangeiros, alcançou-se elevado nível de confiança recíproca entre Fazenda Pública e cidadão. Nesses países, tributos são instituídos democraticamente e o administrado percebe facilmente a contraprestação do Estado – que se traduz em serviços públicos de qualidade e na garantia de bem estar a todos. Em tais condições, a aceitação da carga tributária pela sociedade se dá de forma relativamente pacífica. As razões são claras: o contribuinte tende a se conformar com o encargo fiscal ao constatar que a receita é empregada com eficiência e probidade.

Para que esse ambiente de confiança seja formado, a idéia da cooperação é desenvolvida. A boa convivência é necessária. Para tanto, a atitude do Estado é de fundamental importância. O contribuinte deve ser visto como aliado (e não como o "adversário inevitável"); deve ser participante desse processo (e não mero espectador passivo); deve ser tratado com confiança (ao invés de ser tido, aprioristicamente, como infrator). Não deve o Estado descartar a garantia do contraditório, sob a premissa (por vezes infundada) da desonestidade. A noção de parceria precisa se concretizar. O Fisco deve se interessar em resolver conflitos e eliminar discussões inúteis em juízo; deve cativar o contribuinte, tratá-lo bem, ouvi-lo mais, procurar se entender com ele. A declaração deve ser vista como atitude de cidadania do contribuinte (que, por sua vez, precisa sentir segurança ao prestar suas informações). Deve o administrado contar com sistema de proteção contra os erros que cometeu (aperfeiçoando-se, nessa toada, institutos como o da retificação). Outros institutos processuais, como o da confissão (que nem sempre se traduz em "verdade final") e o da supremacia do interesse público (que, por sua vez, não pode se converter em abuso) precisam ser mais bem compreendidos. A defesa do contribuinte há, pois, de ser erigida em interesse público.

Não se deve perder de vista que o prolongamento excessivo do contencioso fiscal, motivado pelo cerceio, por parte do Estado, às garantias constitucionais do direito ao acertamento, é até mesmo prejudicial aos interesses arrecadatórios, na medida em que se constitui em fator de demora ao recebimento dos créditos tributários. Se se desse maior atenção ao procedimento administrativo, com observância de todas as suas etapas, o contencioso não seria tão necessário. Muitas controvérsias judiciais poderiam ser eliminadas. O procedimento é, necessariamente, corretivo. Quanto mais ele se aperfeiçoa, mais se afasta o autoritarismo. A eliminação de conflitos deveria ser interesse do próprio Fisco.

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Sobre o autor
Paulo Adyr Dias do Amaral

Doutor em Direito Público - UFMG. Mestre em Direito Tributário - UFMG. Diretor da Associação Brasileira de Direito Tributário - ABRADT. Membro do Grupo de Estudos da Associação Brasileira de Direito Financeiro - ABDF/Minas. Membro da Associação Latino-Americana de Direito Comparado. Professor nos Cursos de Pós-graduação em Direito Tributário da PUC/Minas, das Faculdades Milton Campos, do Centro de Estudos na Área Jurídica Federal - CEAJUFE, do Centro de Atualização em Direito - CAD (em convênio com a Universidade Gama Filho).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Paulo Adyr Dias. A proteção da confiança legítima, o princípio constitucional da boa-fé e a resistência à tributação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2382, 8 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14134. Acesso em: 5 nov. 2024.

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