2. Identidade constitucional. A boa despesa como fator de confiança. A importância do bom exemplo.
A experiência dos países desenvolvidos revela que o bom gasto, efetivado com honestidade e eficiência, e traduzido em retorno à sociedade, provoca satisfação no contribuinte, desenvolvendo ambiente mais amistoso entre Fazenda Pública e cidadão. Cabe ao Estado ser bom Fisco e bom provedor.
Klaus TIPKE, em capítulo denominado LA CONEXIÓN ENTRE MORAL TRIBUTARIA DEL ESTADO Y DEL CONTRIBUYENTE, é um dos autores partidários da tese de que o exemplo deve partir do Estado. Primeiramente, adverte: "No se trata aquí de analizar si una incorrecta moral tributaria del Estado puede justificar una incorrecta moral del contribuyente. Lo que intenta dilucidarse es si la mala actuación del Estado influye de hecho de forma negativa sobre la moral del contribuyente". Em seguida, chama atenção para o tópico da reciprocidade: "Puede leerse con frecuencia que el ciudadano sólo queda obligado frente al Estado a condición de reciprocidad, que el Estado solo puede esperar que el contribuyente obre con rectitud si ha recibido el buen ejemplo moral del Estado en cuanto a la tributación y al gasto se refiere" [36] (grifou-se).
E por que o exemplo deve partir do Estado?
Por que ele é o "grande pai", ou, noutras palavras, o responsável pela formação da "identidade constitucional" (cf. Michel ROSENFELD e Paula Derzi BOTELHO).
O pai que aconselha seu filho a não fumar será ouvido?
Depende. Se o pai nunca fumou, é provável que o conselho seja seguido. Se, no entanto, o mesmo conselho é solenemente pronunciado, tendo o pai um cigarro entre os dedos, tais palavras serão quase inúteis, pois o exemplo será muito mais forte que o discurso: o filho, provavelmente, se tornará fumante – pois essa é sua referência.
Assim é a relação do Estado com seus súditos.
O Estado diz: "– Cidadão: pague seus tributos". Antes de atender a esse comando, o administrado se perguntará: "O Estado é bom pagador? Quita seus débitos para com o particular espontaneamente? Ou o obriga a submeter-se a longas pendengas judiciais e às intermináveis filas dos precatórios?". Que atitude terá, v.g., aquele funcionário público, que, após longos anos de batalha processual, buscando receber seus créditos de natureza alimentícia, ainda espera ad aeternum pelo cumprimento do precatório? Quitará suas obrigações tributárias com presteza? Ou resistirá?
Não hesitamos em afirmar: a semente da resistência é plantada no cidadão pelo próprio Estado. Esse é o exemplo recebido pelo administrado. Essa é a sua referência.
3. Os motivos da resistência no Brasil. As diversas formas de abuso na tributação
No Brasil, tem sido notada, de há muito, grande tensão entre a prerrogativa do Estado de arrecadar tributos e a resistência do contribuinte. É de se questionar por que razões ainda não atingimos aquele desejado patamar de confiança que se vislumbra noutras paragens.
Em primeiro lugar, conquanto a tributação seja inevitável em qualquer sociedade organizada sob a forma de Estado [37], ela configura, antes de tudo, uma das modalidades de limitação da esfera patrimonial do indivíduo.
Por três formas o Estado expropria bens dos administrados, diminuindo o patrimônio destes:
a)desapropriação – acompanhada da indenização respectiva;
b)tributação – por meio da qual se absorve parte dos bens ou rendimentos do administrado, sob o pressuposto de que todos estão obrigados a contribuir, na proporção de seus haveres, para o enfrentamento das despesas do Estado – que, por sua vez, dará sua contraprestação aos indivíduos (sob a forma de prestação de serviços essenciais: segurança, saúde, urbanização, educação etc.);
c)confisco: apropria-se o Estado de bens do administrado, arbitrariamente, sem lhe ofertar qualquer contraprestação (seja na forma de indenização, seja por serviços públicos).
Nas duas primeiras modalidades, a expropriação ocorre, tratando-se de Estado de Direito, no âmbito da relação jurídica: por força da lei, na medida e com os parâmetros estabelecidos pela lei – garantindo-se ao particular alguma retribuição (ainda que sob a forma de serviços gerais – não direcionados especificamente ao contribuinte). Já o confisco é puramente ato de força, praticado ao arrepio do Direito. Essa é a noção corrente.
Autores afirmam que os tributos não vinculados (impostos), especialmente os diretos, apresentariam, eles próprios, em certa medida, caráter confiscatório. Pagamos pesadamente, v.g., o imposto de renda, o IPTU e o IPVA. Mas sofremos com a precariedade dos serviços públicos de saúde e segurança, percorremos estradas esburacadas que estouram nossos pneus e temos que pagar pelo ensino fundamental privado, haja vista que as escolas públicas já se deterioraram.
Por essa ótica, na desapropriação, haveria o respectivo ressarcimento. Mas não nos impostos. O Estado não retribuiria, àquele mesmo administrado, em proporção equivalente. Haveria, pois, confisco, ainda que parcial. A primeira reação seria contra esse caráter "confiscatório" (ou, no mínimo, expropriatório – redutor de patrimônio) que apresenta o tributo [38].
Outros autores discordarão dessa idéia, argumentando que não é própria da tributação a retribuição individual e específica, tanto por tanto, a cada contribuinte. Sustentarão que o Direito é, em última análise, um sistema de limites (cf. Hugo de Brito MACHADO) e a propriedade já é entregue ao individuo com uma série de restrições jurídicas. Como instrumento de redistribuição de riqueza na sociedade, seria inerente à tributação essa contraprestação desigual: maior para uns, menor para outros. Para estes estudiosos, a noção de justiça fiscal somente poderia ser vislumbrada através da macro visão.
De uma forma ou de outra, a própria expropriação em si – a redução de patrimônio – é o primeiro fator de resistência.
O segundo tópico que, nesse campo, provoca descontentamento na sociedade e leva ao agravamento da tensão entre Estado e administrado é o abuso na tributação.
De modo geral, a sociedade, embora reconhecendo a natureza ontologicamente expropriatória da tributação, admite sua necessidade e inevitabilidade. Mas revolta-se contra a forma abusiva com que, por vezes, ela é praticada. Por essa razão, morreram pessoas e se fizeram revoluções [39]. Não é diferente em nossos dias. A tributação em si mesma não é ofensiva ao direito de propriedade. O abuso dela é que constitui a ofensa.
A doutrina freqüentemente se refere a diversas revoluções, no Brasil e no mundo, motivadas, ao menos em parte, pelo abuso na tributação [40]. Entre nós, é emblemático o episódio da Inconfidência Mineira [41]. Alcides Jorge COSTA, em memorável conferência, ilustra a arbitrariedade da tributação sobre o ouro nessa época, que devia ser levado – todo ele – às casas de fundição para a dedução do quinto, tendo sido fixada a quota mínima de cem arrobas por ano. A cifra que ultrapassasse esse limite era computada como "crédito do contribuinte". Mas se a arrecadação não atingisse as cem arrobas, instalava-se a derrama, por meio da qual a diferença era cobrada à força (uma espécie de "executivo fiscal em massa"). A medida era aflitiva para aqueles que deveriam suportar essa diferença, haja vista que a produção de ouro, como era de se esperar, começou a decair. Assim, a partir de 1760, as derramas se tornaram cada vez mais freqüentes, o que resultou na revolução. Na observação de Carlos Fernando Mathias de SOUZA, esse foi, portanto, um capítulo da "história da resistência tributária" (como tantos outros no mundo inteiro). A impopularidade dos quintos era tamanha que daí surgiu a expressão "quintos do inferno". [42]
Sempre foi claro, no entanto, que o maior fator de revolta era o destino da receita:
Levado para além-mar, o ouro de Minas permitia a D. João V reinar numa luxuosa ostentação, a ponto de se tornar conhecido como o Roi-Soleil português. O mais perturbador é que o "fulvo metal" nem sequer servia para enriquecer a Metrópole: era apenas o ouro "que Portugal distribuía tão liberalmente para a Europa", como observou o viajante inglês Henry Fielding. Nada mais natural, portanto, que a jovem sociedade mineira – tão diferenciada da elite rural e latifundiária do Nordeste – alimentasse um profundo estado de indignação e revolta. E essa revolta não demoraria muito para eclodir [43].
O abuso da tributação ocorre sob diversas formas, como, v.g.:
- pelo excesso na tributação – abuso com relação ao quantum cobrado (carga tributária);
- pela desigualdade de tratamento entre contribuintes;
- pela desigualdade de tratamento na órbita da própria relação jurídica de direito público (a relação entre Estado e administrado);
- pela falta de contraprestação do Estado – hipótese em que o administrado, embora esmagado pelas exações, não vislumbra retribuição equivalente;
- pela má destinação dos recursos obtidos junto ao contribuinte [44];
- pela adoção de procedimentos administrativos arrecadatórios arbitrários [45] – que não dão ao administrado oportunidade satisfatória de se explicar e se defender etc.
São essas, pois, as duas principais razões da resistência do administrado:
a) o caráter "confiscatório" (ainda que parcial) dos tributos;
b) o abuso na tributação.
Notas
- Começa, hoje em dia, a ser trivial afirmar que o actual Estado é, na generalidade dos países contemporâneos, e mormente nos desenvolvidos, um Estado fiscal. Contudo, é de referir que, nem a realidade que lhe está subjacente, nem o conceito que tal expressão procura traduzir, constituem uma novidade nos tempos que correm. Pois, sendo o Estado fiscal o Estado cujas necessidades são essencialmente cobertas por impostos, facilmente se compreende que ele tem sido (e é) a regra do Estado moderno. Todavia, se é certo que este, pela própria natureza da realidade económica moderna, é necessariamente um Estado financeiro – um Estado cujas necessidades são cobertas através de meios de pagamento, ou seja, de dinheiro que ele obtém, administra e aplica, e não, salvo em casos muito excepcionais e limitados, através de prestações naturais (prestações em espécie ou de facere) exigidas aos seus cidadãos – , não é menos certo que ele nem sempre se tem apresentado como um Estado fiscal, havendo Estados que claramente configuraram (ou configuram) verdadeiros Estados proprietários, produtores ou empresariais.
- POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 6a ed. New York: Aspen Publishers, 2003, p.489.
- Cf. OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006.
- E prossegue: "Cabe ao Estado prestar serviços públicos (art. 21 – União; art. 30, V – Municípios; e art. 25, § 2º – Estados-membros), regular a atividade econômica (art. 174), prestar serviços públicos, mediante permissão ou concessão (art. 175), explorar a atividade econômica (art. 173), inclusive em regime de monopólio (art. 177), exercer poder de polícia (arts. 192, 182 e outros) e documentar a vida política, econômica e pessoal da nação etc".
- Como exemplo, temos, no Código Tributário Nacional: art. 146 (ao tratar das mudanças de orientação no que tange ao lançamento): "A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução"; art. 149, parágrafo único (limites para efetuação e revisão do lançamento): "A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública"; art. 156, incisos IX e X (ao estabelecer que extinguem o crédito tributário: a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória, bem como a decisão judicial passada em julgado).
- Na conferência mencionada, Heleno Taveira TÔRRES fixa a data de nascimento do princípio da confiança legítima: 14-11-1956, numa decisão do Tribunal Administrativo de Berlim, acerca de certa senhora que entendia fazer jus a pensão da Alemanha Ocidental. Posteriormente, já em pleno gozo desse benefício, a Administração Pública passa a entender que a pensão era irregular, resolvendo revogar o ato administrativo de concessão. A decisão final manteve a benesse, com amparo no princípio da confiança legítima.
(NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p.191-2).
(cf. op.cit. p.59)
Esse episódio, aliás, já foi mencionado pelo Supremo Tribunal Federal, tendo como Relator o Ministro Gilmar Mendes, no MS 24268/MG, como consta do Informativo n. 343 daquela Corte (12 a 16 de abril de 2004). Destaca-se a seguinte passagem:
Na Alemanha, contribuiu decisivamente para a superação da regra da livre revogação dos atos administrativos ilícitos uma decisão do Tribunal Administrativo de Berlim, proferida em 14.11.1956, posteriormente confirmada pelo Tribunal Administrativo Federal. Cuidava-se de ação proposta por viúva de funcionário público que vivia na Alemanha Oriental. Informada pelo responsável pela Administração de Berlim de que teria direito a uma pensão, desde que tivesse o seu domicílio fixado em Berlim ocidental, a interessada mudou-se para a cidade. A pensão foi-lhe concedida. Tempos após, constatou-se que ela não preenchia os requisitos legais para a percepção do benefício, tendo a Administração determinado a suspensão de seu pagamento e solicitado a devolução do que teria sido pago indevidamente. Hoje a matéria integra a complexa regulação contida no § 48 da Lei sobre processo administrativo federal e estadual, em vigor desde 1977 (Cf. Erichsen, Hans-Uwe, in: Erichsen, Hans-Uwe/Martens, Wolfgang, Allgemeines Verwaltungsrecht, 9ª edição, Berlim/Nova York, 1992, p. 289).
Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito) e está disciplinado, parcialmente, no plano federal, na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, (v.g. art. 2º).
Como exemplo da quebra do princípio da proteção da confiança legítima, TÔRRES menciona o caso da CIDE-combustíveis: o contribuinte suporta uma carga tributária específica, na expectativa legítima de que tais recursos sejam aplicados diretamente na construção ou recuperação de rodovias, em projetos ambientais ligados ao setor etc. E, no fim das contas, o Estado mantém retidos, em fundo próprio, esses recursos e não os transfere para a devida destinação.
Outro exemplo concreto:
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
RELATOR: MINISTRO EROS ROBERTO GRAU
AGRAVANTE: EMPRESA BRASILEIRA DE INFRA-ESTRUTURA AEROPORTUÁRIA –
INFRAERO
AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
AGRAVADO: JOÃO FRANCISCO MOTA RAMALHETE
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ESTABILIDADE DAS RELAÇÕES JURÍDICAS CONSTITUÍDAS. 1. Observância ao princípio da segurança jurídica. Estabilidade das situações criadas administrativamente. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. 2.Concurso público. Princípio da consumação dos atos administrativos. A existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista, questão dirimida somente após a concretização dos contratos, não tem o condão de afastar a legitimidade dos provimentos, realizados em conformidade com a legislação então vigente. 3. Precedente do Pleno do Supremo Tribunal Federal. Agravos regimentais não providos.
(Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. AgR no Recurso Extraordinário 348.364-1 /Rio de Janeiro-RJ, Relator: Min. Eros Roberto Grau. Julgamento: 14-12-2004. D.J. 11-3-2005)
caso concreto tratava de admissões realizadas na INFRAERO, por processo seletivo, sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão do Tribunal de Contas da União. Os servidores permaneceram na Administração por mais de dez anos. Posteriormente, a Administração vem a entender que aquelas admissões foram irregulares. E decide anulá-las. O STF reconheceu, aqui, cabível o princípio da proteção da confiança legítima que os servidores depositavam na licitude de seu ingresso.
Consta do corpo do Acórdão: "... a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido (...)".
A Corte se ampara, ainda, na doutrina de Miguel REALE (In: Revogação e Anulamento do Ato Administrativo), citando a seguinte passagem: "... o tempo transcorrido pode gerar situações de fato equiparáveis a situações jurídicas, não obstante a nulidade que obrigatoriamente as comprometia (...). Não é admissível, por exemplo, que, nomeado irregularmente um servidor público, visto carecer, na época, de um dos requisitos complementares exigidos por lei, possa a Administração anular seu ato, anos e anos volvidos, quando já constituía uma situação merecedora de amparo e, mais que isso, quando a prática e a experiência podem ter compensado a lacuna originária. Não me refiro, é claro, a requisitos essenciais, que o tempo não logra por si só convalescer, – como seria, por exemplo, a falta de diploma para ocupar cargo reservado a médico, – mas a exigências outras que, tomadas no seu rigorismo formal, determinariam a nulidade do ato".
Nessa ordem de idéias, TÔRRES argumenta que, hoje, a legalidade deve vir acompanhada do estado de confiança, sendo certo que, no caso concreto citado, os servidores não concorreram para a ilegalidade da admissão. Aqui haveria duas conseqüências possíveis: a) proteção da permanência e continuidade do ato, embora inválido; b) invalidação do ato, ensejando, porém, justa indenização aos prejudicados. Dessa forma, as Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal comportam, hoje, uma releitura: cabe à Administração Pública anular seus próprios atos inválidos, salvo comprovada boa-fé e nos limites da proteção da confiança legítima.
(A proteção da confiança legitimamente criada no Direito Tributário. Boa-fé subjetiva ou objetiva. Nulli conceditur venire contra factum proprium. A teoria dos atos contraditórios. Conferência proferida no X Congresso Internacional da ABRADT – Associação Brasileira de Direito Tributário. Agosto de 2006. Belo Horizonte-MG. In: Revista Internacional de Direito Tributário da ABRADT. Vol. VI. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.23-32).
"... à luz da Constituição de 1988, o Superior Tribunal de Justiça, nas suas duas Turmas e na Seção, consolidou o entendimento de que a súmula havia caído, não poderia ser aplicada – porque era retroativa. O STF, da mesma forma, no pleno, em decisões unânimes – sendo relator o Ministro Moreira Alves, e, em outras oportunidades, o Ministro Carlos Mário da Silva Velloso – também derrubou a própria súmula. Recentemente volta tudo: de repente, o STF passa a entender que essa súmula não é mais inconstitucional. E como ele examina casos antigos que estão em juízo, a tendência é aplicar sempre a sua jurisprudência a casos que já estão em juízo há 2, 3 ou 4 anos. É isso que nós chamamos de decisões retroativas, de modo que o contribuinte não sabe para que lado vai, pois a oscilação em nosso país é inconcebível. (...) com isso o grau de litigiosidade prossegue de forma insuportável...".
(Litigiosidade, Evasão e Soluções Contemporâneas. Conferência proferida no X Congresso da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT. In: Revista Internacional de Direito Tributário. Vol. VI. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.16-7)
E, mais recentemente, em artigo ainda não publicado:
"Quando os contribuintes já consideravam encerrada a polêmica, com a pacificação do entendimento de que a lei aplicável ao imposto sobre a renda seria a lei em vigor no primeiro dia do ano-base e não aquela em vigor no primeiro dia do ano da declaração (que necessariamente é posterior à data do encerramento do balanço), o Supremo Tribunal Federal passou a rever o seu entendimento em diversos julgados".
E faz referência aos seguintes:
a)RE 194612-1/SC, 1ª T, Rel. Min. SIDNEY SANCHES, unânime, pub. 08-5-1998;
b)AI 180776 AgR-ED/MG, 2a T., Rel. Min. GILMAR MENDES, pub. 27-8-2004.
De resto, enfatiza: "Nada mais anacrônico, em um mundo globalizado, esforçado em atrair investimentos, em um contexto em que a segurança jurídica é fator decisivo de concorrência, do que ressuscitar a velha e superada Súmula 584 do Supremo Tribunal Federal".
(A imprevisibilidade da jurisprudência e os efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal no Direito Tributário – artigo não publicado. 2007)
Na obra citada por DERZI destaca-se a seguinte passagem: "O juiz compromete-se com suas decisões e as premissas a ela vinculadas, mas o legislador não. Se esse compromisso assume a forma jurídica ou resulta da compreensão do papel do juiz é secundário, da mesma forma que a questão se o autocomprometimento de um juiz amplia-se ou não aos outros juízes através do ordenamento jurídico. O decisivo é que apenas o juiz se vê confrontado com situações repetidas, tendo que decidir de forma repetidamente igual quando se apresentam premissas idênticas. O juiz submete-se ao princípio da igualdade de forma diferente que o legislador: ele não só tem que tratar igualmente as mesmas condições, mas também decidir da mesma forma os casos iguais. Com cada decisão ele se ata a casos futuros, e ele só pode criar um direito novo na medida em que reconheça e trate novos casos como constituindo casos diferentes".
(LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol.II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, p.34)
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA – DESISTÊNCIA REQUERIDA PELO IMPETRANTE PARA VIABILIZAR A ADESÃO AO REFIS – HOMOLOGAÇÃO. PRECEDENTES.
A homologação da desistência do mandado de segurança não implica qualquer juízo sobre o direito da impetrante de aderir ao Programa de Recuperação Fiscal – REFIS, matéria que, de resto, nem é objeto do mandado de segurança.
Mandado de Segurança: desistência que independe da anuência do impetrado ou da pessoa jurídica de Direito Público, de que haja emanado o ato coator sem distinção, na jurisprudência do STF, entre a hipótese de impetração de competência originária e aquela pendente do julgamento de recurso.
(Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Ag.Reg. no Recurso Extraordinário 233.095-4, Minas Gerais. Relator Min. Sepúlveda Pertence. D.J. 30-6-2006).
Neste tópico, TÔRRES comenta a exigência, contida na Lei do REFIS, de o contribuinte desistir das ações judiciais para ter acesso ao programa. Posteriormente, a Administração (Procuradoria da Fazenda) comparece no mesmo processo e diz que tem interesse em continuar com a demanda. Fundamentou o Relator: "A jurisprudência do STF já pacificou o entendimento de que, no mandado de segurança, a desistência não depende de aquiescência do impetrado". Desse modo, o impetrado não poderia limitar a faculdade processual (desistência) que a lei concede ao impetrante. Haveria aqui a adequada aplicação do princípio nemo potest venire contra factum proprium.
(Op.cit. p.31)
Que força faz com que a hierarquização de valores ocorra num ou noutro sentido? A ideologia do intérprete: sua trajetória existencial, suas vivências psíquicas, seu apego ou desapego à tradição ou às instituições da sociedade, seus traumas, suas manias, sua concepção de mundo etc. É com tudo isso (e não com a simples expressão literal da lei) que o intérprete constrói o sentido dos textos e opera a hierarquização.
Por vezes, o Direito é comparável à música. É possível ouvir, v.g., várias interpretações diferentes da nona sinfonia de Beethoven, conforme as diversas orquestras, maestros etc. Aqueles maestros e músicos estão a ler a mesma partitura, estão a tocar os mesmos instrumentos, mas o resultado varia. E varia porque a interpretação é diferente. E qual dessas interpretações é tecnicamente correta? Todas.
Assim é o Direito. Os juízes, por vezes, lêem a mesma lei (a partitura do magistrado). Apreciam as mesmas provas. Ouvem as mesmas alegações. E o resultado varia. Qual deles é correto? Não há esse dado objetivamente considerado.
(Riqueza das Nações. Vol. II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,, 1981, p.485-6)
Comparem-se a desapropriação e a tributação, ambas instrumentos de realização do bem comum. Admita-se que todos os recursos tributários se convertam em serviços públicos. Conceda-se que cada um contribua na exata medida de suas possibilidades, isto é, que a tributação seja justa. Aceite-se que a consciência cívica de cada cidadão seja suficientemente desenvolvida, a ponto de inexistir sonegação fiscal: todos pagariam ao Fisco o devido por lei... Mesmo assim, não se poderia negar uma evidência: o tributo é prestação pecuniária compulsória e seu pagamento significa redução no patrimônio do contribuinte. Cada centavo pago representa perda patrimonial idêntica! Ocorreria o mesmo na desapropriação? Evidentemente, não. Por disposição constitucional expressa, a desapropriação sujeita-se a prévia e justa indenização. A expropriação é instrumento jurídico de transferência compulsória de determinado bem para o Estado... Mas o expropriando não sofre nenhuma redução em seu patrimônio! O que ocorre é substituição do bem por seu valor em dinheiro. Mesmo assim, a expropriação é considerada medida violenta. E o cidadão-contribuinte é muito mais conformado que o cidadão-expropriando... Haveria justificativa para isso? Será mesmo preferível dar dinheiro, ao invés de trocar um bem por outro? Poder-se-ia até acreditar que os povos civilizados se acostumaram à tributação, por sua constância, e, pela razão inversa, isto é, por sua ocasionalidade, sempre resistiram à desapropriação... Isso é possível. Mas na realidade, acontece outra coisa: o homem é mais apegado a sua propriedade, especialmente quando constituída de bens de raiz, do que ao dinheiro que paga como tributo, quase sempre mediante descontos realizados em seu salário, recolhidos por terceiros, ou mediante acréscimo no valor das mercadorias que adquire. O dinheiro também é seu, faz parte de seu patrimônio, é sua propriedade. Mas sua finalidade é circular – enquanto os bens de raiz só se transferem de quando em vez, ou permanecem com o mesmo dono durante toda a sua vida. Além dessas existem outras explicações para a resistência à desapropriação".
(MENDES, Vicente de Paula. A Indenização na Desapropriação. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 1993, p.20-1)
(OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p.66-7)
(NOGUEIRA, Ruy Barbosa, Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1995, p.5)
(MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa. A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal. 1750-1808. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.156)
(BOTELHO, Paula de Abreu Machado Derzi. Sonegação Fiscal e Identidade Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.3)
(grifou-se. In: Regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional. Conferência proferida no VICongresso Brasileiro de Direito Tributário da ABRADT – Associação Brasileira de Direito Tributário. Agosto de 2002. Belo Horizonte-MG).