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Concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente e a necessidade de um novo enfoque sobre a regra de competência

Concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente e a necessidade de um novo enfoque sobre a regra de competência

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Demonstra-se a necessidade de um novo enfoque sobre a regra de competência no processo civil, mediante a interpretação teleológica e a regra da proporcionalidade.

Resumo: O presente trabalho pretende debater a possibilidade de concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente, bem como demonstrar a necessidade de um novo enfoque sobre a regra de competência insculpida no artigo 113, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, mediante uma interpretação teleológica e a utilização da regra da proporcionalidade para a devida efetivação do direito controvertido. Para tanto, serão conceituados os princípios processuais constitucionais do devido processo legal, da inafastabilidade do controle jurisdicional, o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional e o juiz natural. O instituto da competência será delineado, em especial a competência absoluta e a impossibilidade de prorrogação. Na sequência, a tutela antecipada será analisada e seus requisitos definidos, bem como a sua função de resguardar o perecimento de direito. Feitas essas considerações, será exposto o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre a concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente, inclusive com o do projeto de novo código de processo civil.

Palavras-chaves: Incompetência absoluta. Tutela de urgência. Possibilidade de concessão. Interpretação teleológica. Regra da proporcionalidade.


1 INTRODUÇÃO

O artigo 113, § 2º do Código de Processo Civil (CPC) preceitua que declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente.

A interpretação conferida à regra de competência é, de modo geral, literal ou gramatical, tomando como ponto de partida o exame do significado e alcance de cada uma das palavras da norma jurídica, baseando-se na letra da norma.

A princípio, portanto, não seria possível, adotando-se uma interpretação literal do dispositivo processual mencionado, a concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente.

Verifica-se, todavia, um conflito de garantias constitucionais, quais sejam: o juiz natural, que institui a necessidade de regras de competência pré-definidas e os princípios da economia processual, instrumentalidade das formas, aproveitamento dos atos processuais, efetividade e duração razoável do processo.

Cumpre destacar que a doutrina e a jurisprudência pátrias tem conferido interpretação diversa à regra contida no art. 113, § 2º, do CPC, manifestação legislativa do princípio da economia processual, não impedindo o juízo, ainda que absolutamente incompetente, de apreciar e deferir tutela de urgência, resguardando o perecimento do direito debatido.

Ademais, o projeto de lei do Senado do novo Código de Processo Civil[1] acompanhando o entendimento doutrinário e jurisprudencial prevê que reconhecida a incompetência absoluta, os efeitos das decisões proferidas pelo juízo incompetente serão conservados até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juiz competente. É clara a intenção do legislador em aproveitar os atos de definição e assegurar o perecimento de direitos, ainda que por meio de juízos incompetentes.

Com efeito, vislumbra-se a necessidade de se conferir um novo enfoque à regra de competência, realizando-se uma interpretação teleológica, em busca do entendimento da finalidade para a qual a norma foi editada, e considerando as peculiaridades de cada caso concreto.

A decisão do magistrado absolutamente incompetente deverá sacrificar o mínimo necessário da garantia violada, apreciando a tutela de urgência com observância da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito, em busca da menor restrição possível e a salvaguarda do núcleo essencial da garantia mitigada no caso concreto.

Nesse panorama, o presente trabalho conceituará os princípios constitucionais processuais do devido processo legal, inafastabilidade do controle jurisdicional, direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional e juiz natural; delineará o instituto da competência, destacando a incompetência absoluta; demonstrará os requisitos da tutela antecipada e a sua importância para resguardar o perecimento de direito; debaterá, trazendo entendimento doutrinário e jurisprudencial, a possibilidade de concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente, bem como a necessidade de se conferir um novo enfoque à regra de competência, buscando uma interpretação teleológica, mediante a aplicação da regra da proporcionalidade como meio de efetivação da tutela jurisdicional e satisfação das garantias constitucionais em conflito no caso concreto.


2 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988

Como qualquer ciência, também o direito processual está sujeito a princípios norteadores de todo o desenvolvimento da disciplina. Tais princípios servem como orientação segura para a interpretação dos institutos que integram o campo de atuação da ciência, sendo certo que os mais importantes princípios processuais encontram-se consagrados na Constituição da República de 1988 (CR/88). (CAMARA, 2007).

Tais princípios constitucionais devem ser aplicados em primeiro lugar, o que decorre da supremacia das normas constitucionais sobre as demais normas jurídicas. Ademais, como relembra Didier Jr. (2009), as regras processuais devem ser criadas de maneira adequada à tutela dos direitos fundamentais, bem como o legislador deve criar regras processuais igualmente adequadas aos direitos fundamentais.

Assim sendo, proceder-se-á ao exame de alguns princípios constitucionais do direito processual, especialmente afetos a esta monografia, que estabelecem premissas do funcionamento do sistema processual brasileiro.

2.1 O devido processo legal

O mais importante princípio constitucional do direito processual, sem sombra de dúvida, é o do devido processo legal. Consagrado no art. 5º, inciso LIV, da CR/88, este princípio é, em verdade, causa de todos os demais. Trata-se do postulado fundamental do processo, do princípio base, sobre o qual todos os outros se sustentam. É a norma-mãe. (DIDIER JR., 2009).

Sua finalidade é reprimir os abusos do Estado, que até hoje se fazem reluzentes em diversas constituições liberais. Ressalte-se que o mencionado princípio é subdividido em devido processo legal em sentido formal e devido processo legal substantivo, que serão abordados em linhas gerais nos tópicos a seguir.

2.1.1 Do devido processo legal em sentido formal (procedural due process)

O devido processo legal em sentido formal, adjetivo ou procedimental, caracteriza-se pela simples norma de respeito ao procedimento previamente regulado.

Didier Jr. (2009) destaca que o devido processo legal em sentido formal é, basicamente, o direito de ser processado e a processar de acordo com as normas previamente estabelecidas para tanto, normas estas cujo processo de produção também deve respeitar aquele princípio.

Convém mencionar a sua aplicação no direito processual civil, sendo indiscutível que nesse campo, entre outros, garante o direito à citação, do conhecimento do teor da acusação, de julgamento rápido e público, à igualdade de partes, à proibição da prova ilícita, à gratuidade da justiça ou ao desembaraçado acesso a essa, ao contraditório, ao juiz natural e imparcial, ao duplo grau de jurisdição, à ampla defesa. (SANTOS, 2007).

Verifica-se que a cláusula do procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível, isto é, de ter his day in Court, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos. (SANTOS, 2007).

2.1.2 Do devido processo legal substantivo (substantive due process). O princípio da proporcionalidade.

As decisões jurídicas hão de ser, ainda, substancialmente devidas. Não basta a sua regularidade formal; é necessário que uma decisão seja também substancialmente razoável e correta. Daí, fala-se em um princípio do devido processo legal substantivo, aplicável a todos os tipos de processo. É desta garantia que surgem os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, aqui tratado como manifestação de um mesmo fenômeno. (DIDIER JR., 2009).

No escólio de Lima (2010), o devido processo legal vai além do que uma simples decisão formal promovida pelo juiz de direito diante de um caso concreto. Nesse sentido, preleciona Canotilho:

A teoria substantiva está ligada à idéia de um processo legal justo e adequado, materialmente informado pelos princípios da justiça, com base nos quais os juízes podem e devem analisar os requisitos intrínsecos da lei. (CANOTILHO, 2000, p.482).

E, completa Novelino:

O devido processo legal substantivo se dirige, em primeiro momento ao legislador, que constituindo-se em um limite à sua atuação, que deverá pautar-se pelos critérios de justiça, razoabilidade e racionalidade. Como decorrência deste princípio surgem o postulado da proporcionalidade e algumas garantias constitucionais processuais, como o acesso a justiça, o juiz natural a ampla defesa o contraditório, a igualdade entre as partes e a exigência de imparcialidade do magistrado. (NOVELINO, 2008, p.332).

Na mesma trilha, o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Agravo de Instrumento nº. 529.733, publicado no Diário de Justiça em 01.12.2006, aduz que o princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência da fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais.

Destaque-se, ainda, acórdão prolatado pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Velloso, que resume a essência do aspecto material do devido processo legal:

(...) due process of law, com conteúdo substantivo - substantive due process - constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (racinality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. (BRASIL, 1996).

Didier Jr. (2009) arremata prelecionando que o princípio da proporcionalidade[2] consiste, pois, na adaptação das decisões jurídicas às circunstâncias de cada caso, sendo que no processo civil, mencionado princípio tem aplicação em inúmeras situações, entre elas, a concessão de provimentos liminares.

2.2 A inafastabilidade do controle jurisdicional

Manifestação do Estado de Direito, a inafastabilidade do controle jurisdicional teve sua origem na Constituição de Weimar e na Constituição de Wütemberg, apesar do mencionado princípio ser considerado, nos moldes que atualmente delineado, uma ampliação dos dispositivos inseridos nos precitados Diplomas[3]. (GRINOVER apud ROCHA, 2007).

A Constituição da República de 1988 consagra, de maneira ampla, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, ao preceituar em seu artigo 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Câmara (2007) ressalta que a norma contida no mencionado inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República de 1988 é destinada tanto ao legislador, que fica impedido de elaborar normas jurídicas que impeçam (ou restrinjam em demasia) o acesso aos órgãos do Judiciário, quanto ao juiz. Isso significa que ao direito que todos temos de ir a juízo pedir proteção para posições jurídicas de vantagem lesadas ou ameaçadas corresponde o dever do Estado de prestar uma tutela jurisdicional adequada.

Isso quer dizer, segundo Câmara (2007), que o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, pois, tem com corolário o direito, por ele assegurado, à tutela jurisdicional adequada, devendo ser considerada inconstitucional qualquer norma que impeça o judiciário de tutelar de forma efetiva os direitos lesados ou ameaçados que a ele são levados em busca de proteção. O renomado jurista traz a lume a questão das normas que proíbem indiscriminadamente a concessão de medidas liminares. Ao vedar a tutela liminar de direitos, a lei estaria impedindo a prestação de uma tutela jurisdicional adequada (aliás, a única verdadeiramente adequada a proteger o direito de uma ameaça).

Ainda, acrescenta Grinover (2007), que o acesso aos tribunais não se esgota com o poder de movimentar a jurisdição (direito de ação, com o correspondente direito de defesa), significando também que o processo deve se desenvolver de uma determinada maneira que assegure às partes o direito a uma solução justa de seus conflitos, que só pode ser obtida por sua plena participação, implicando o direito de sustentarem suas razões, de produzirem suas provas, de influírem sobre o convencimento do juiz.

Destaque-se como corolário do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional todas as garantias do devido processo legal que a Constituição da República de 1988 detalha a partir do inciso LIV do artigo 5º, realçando-se o contraditório e a ampla defesa, previstas no inciso LV do mesmo artigo.

Didier Jr. (2009) arremata doutrinando que o princípio da inafastabilidade deve ser entendido não como uma garantia formal, uma garantia pura e simplesmente de “bater às portas do poder judiciário”, mas, sim, como garantia de acesso à ordem jurídica justa, consubstanciada em uma prestação jurisdicional célere, adequada e eficaz. O direito fundamental à efetividade pode ser retirado desse princípio constitucional e é dele que trataremos no próximo tópico.

2.3 O direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional

Segundo Dinamarco, citado por Didier Jr. (2009), a efetividade do processo, entendida como se propõe, significa a sua almejada aptidão a eliminar insatisfações, com justiça e fazendo cumprir o direito, além de valer como meio de educação geral para o exercício e respeito aos direitos e canal de participação dos indivíduos nos destinos da sociedade e assegurar-lhes a liberdade.

Nessa senda, como dito anteriormente, o artigo 5º, inciso XXXV da CR/88, afirma que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Entende-se que essa norma garante a todos o direito a uma prestação jurisdicional efetiva. A sua importância, dentro da estrutura do estado democrático de direito, é de fácil assimilação. É sabido que o estado, após proibir a autotutela, assumiu o monopólio da jurisdição. Como contrapartida dessa proibição, conferiu aos particulares o direito de ação, até bem pouco tempo compreendido como direito à solução do mérito. (MARINONI, 2004).

A concepção de direito de ação como direito a sentença de mérito, segundo Marinoni (2004), não poderia ter vida muito longa, uma vez que o julgamento do mérito somente tem importância se o direito material envolvido no litígio for realizado – além de reconhecido pelo estado-juiz. Nesse sentido, o direito à sentença deve ser visto como direito ao provimento e aos meios executivos capazes de dar efetividade ao direito substancial, o que significa direito à efetividade em sentido estrito.

No entanto, não há como esquecer, quando se pensa no direito à efetividade em sentido lato, de que a tutela jurisdicional deve ser tempestiva e, em alguns casos, ter a possibilidade de ser preventiva. Em outros tempos, questionava-se sobre a existência de direito constitucional à tutela preventiva. Dizia-se, simplesmente, que o direito de ir ao poder judiciário não incluía o direito à “liminar”, desde o que o jurisdicionado pudesse afirmar lesão ao direito e vê-la apreciada pelo juiz. Atualmente, diante da inclusão da locução “ameaça a direito” na verbalização do denominado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, não há mais qualquer dúvida sobre o direito à tutela jurisdicional capaz de impedir a violação do direito. (MARINONI, 2004).

Importa, ainda, o direito à tempestividade da tutela jurisdicional, que não tem a ver apenas com a tutela antecipatória, mas também com a compreensão da duração do processo de acordo com o uso racional do tempo processual por parte do réu e do juiz. (MARINONI, 2004).

A tutela do direito geralmente é conferida ao autor ao final do procedimento – quando a sentença for de procedência, como é óbvio. Quando há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, admite-se que o autor possa, quando lhe for possível demonstrar a probabilidade do direito que afirma possuir, requerer a antecipação da tutela almejada. Mas, essa é apenas uma das espécies de tutela antecipatória. As outras duas, a baseada em abuso de direito de defesa (art. 273, inciso II, do CPC) e a fundada em parcela incontroversa da demanda (artigo 273, § 6º, do CPC), têm íntima relação com a necessidade de distribuição do ônus do tempo do processo. (MARINONI, 2004).

Pretender distribuir o tempo implica em vê-lo como ônus, e essa compreensão exige a prévia constatação de que ele não pode ser visto como algo neutro ou indiferente ao autor e ao réu. Se o autor precisa de tempo para receber o bem da vida a que persegue, é lógico que o processo – evidentemente que no caso de sentença de procedência – será tanto mais efetivo quanto mais rápido. De modo que a técnica antecipatória baseada em abuso de direito de defesa ou em incontrovérsia da parcela da demanda possui o objetivo fundamental de dar tratamento racional ao tempo do processo, permitindo que decisões sobre o mérito sejam tomadas no seu curso, desde que presentes o abuso do direito de defesa ou a incontrovérsia de parcela da demanda. Para tanto, parte-se da premissa de que não é racional obrigar o autor a suportar a demora do processo quando há abuso do direito de defesa ou quando parcela da demanda pode ser definida no curso do processo. (MARINONI, 2004).

O jurista prossegue aduzindo que a questão da tempestividade não se resume à problemática da tutela antecipatória, devendo ser sempre analisada a partir da utilização racional do tempo do processo pelo réu e pelo juiz. Se o réu tem direito à defesa, não é justo que o seu exercício extrapole os limites do razoável. Da mesma forma, haverá lesão ao direito à tempestividade caso o juiz entregue a prestação jurisdicional em tempo injustificável diante das circunstâncias do processo e da estrutura do órgão jurisdicional.

Em resumo, para Marinoni (2004), basta evidenciar que há direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, tempestiva e, quando houver necessidade, preventiva. A compreensão desse direito depende da adequação da técnica processual aos direitos, ou melhor, da visualização da técnica processual a partir das necessidades do direito material. Se a efetividade (em sentido lato) requer adequação e a adequação deve trazer efetividade, o certo é que os dois conceitos podem ser decompostos para melhor explicar a necessidade de adequação da técnica às diferentes situações de direito substancial. Pensando-se a partir daí fica mais fácil visualizar a técnica efetiva, contribuindo-se para sua otimização e para que a efetividade ocorra de modo menos gravoso ao réu.

Tal direito não poderia deixar de ser pensado como fundamental, uma vez que o direito à prestação jurisdicional efetiva é decorrência da própria existência dos direitos e, assim, a contrapartida da proibição da autotutela. O direito à prestação jurisdicional é fundamental para a própria efetividade dos direitos, uma vez que esses últimos, diante das situações de ameaça ou agressão, sempre restam na dependência de sua plena realização. Não é por outro motivo que o direito à prestação jurisdicional efetiva já foi proclamado como o mais importante dos direitos, exatamente por constituir o direito a fazer valer os próprios direitos. (MARINONI, 2004).

2.4 O juiz natural

Uma das garantias decorrentes da cláusula do devido processo legal é a do direito fundamental ao juiz natural. Trata-se de garantia fundamental não prevista expressamente, mas que resulta da conjugação de dois dispositivos constitucionais: o que proíbe juízo ou tribunal de exceção e o que determinada que ninguém será processado senão pela autoridade competente (art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da CR/88). (DIDIER JR., 2009).

A concepção do juiz natural tem sua origem na Carta Magna de 1215, quando, na Inglaterra da Idade Média, a nobreza lutava contra os abusos cometidos pelos soberanos, em detrimento dos privilégios dos barões. Portanto, por imposição dos senhores e bispos ingleses, a mencionada Carta continha a regra de que ninguém poderia ser julgado a não ser por seus pares. (MARQUES, 1997).

Assim, instituiu-se a exigência de um julgamento legítimo por seus pares e pela lei da terra. Essa disposição foi o embrião dos modernos contornos do princípio do juiz natural, que surgiu formulado pela primeira vez, com esse nome, na Carta Constitucional francesa de 1814. (ABREU, 2004).

Segundo Câmara (2007), a garantia do juiz natural tem duas faces: uma primeira, ligada ao órgão jurisdicional, ou seja, ao juízo, e não propriamente à pessoa natural do juiz, denominada formal. Uma segunda faceta do mesmo princípio, porém, diz respeito à pessoa do juiz, e está ligada à sua imparcialidade e refere-se ao aspecto substantivo. Juiz natural é o juiz devido.

É o primeiro aspecto que a Constituição da República de 1988 consagra, ao proibir juízos de exceção e ao determinar que os processos tramitem perante o juízo competente.

O que se quer assegurar é que os processos tramitem perante juízos cuja competência constitucional é preestabelecida. A Constituição da República de 1988 fixa a competência de diversos órgãos jurisdicionais, como se verifica, por exemplo, nos artigos 102 (competência do Supremo Tribunal Federal), 105 (competência do Superior Tribunal de Justiça), 108 (competência dos Tribunais Regionais Federais), 109 (competência dos juízes federais), dentre outros. Tais regras devem ser observadas em todos os processos, e eventuais alterações que as mesmas venham a sofrer não poderão ser aplicadas a casos que já tenha ocorrido antes da mudança. (CAMARA, 2007).

Quando a Constituição da República de 1988 não prevê expressamente as atribuições jurisdicionais a uma autoridade, ela traz os contornos que devem ser seguidos para o estabelecimento de sua competência. A lei ordinária, por si só, não legitima a jurisdição conferida a juízes e tribunais. É necessário que a distribuição da jurisdição esteja acobertada sob o manto constitucional, ou seja, mesmo que indiretamente, a Constituição delineia toda racionalização do exercício da função jurisdicional. (MARQUES, 1997).

Não é por outra razão que o juiz natural também é denominado juiz constitucional, pois é o órgão da jurisdição cujo poder deriva de fontes constitucionais. No sistema brasileiro, a Constituição atribui aos órgãos jurisdicionais as competências de jurisdição, hierárquica e recursal, deixando a competência de foro (ou territorial) para ser regulada pela legislação infraconstitucional. Destarte, todo poder constitucional deriva de fontes constitucionais, ainda que indiretamente, não sendo o juiz natural, aquele constitucionalmente incompetente. (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2001).

Portanto, antes de se considerar o juiz natural como direito subjetivo das partes ou conteúdo individual dos direitos processuais, esse princípio é a garantia da própria jurisdição, sua essência e qualificação substancial. Sem o juiz natural não há função jurisdicional possível. (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2011).

Destaque-se que as regras de distribuição servem exatamente para fazer valer a garantia do juiz natural: estabelecem-se critérios prévios, objetivos, gerais e aleatórios para a identificação do juízo que será o responsável pela causa. É por isso que o desrespeito às regras da distribuição por dependência implica incompetência absoluta. (DIDIER JR., 2009).

Há, porém, o outro aspecto do princípio do juiz natural que muitas vezes é esquecido, e que está ligado diretamente à pessoa natural que exerce, no processo, a função de juiz. Trata-se da exigência da imparcialidade, essencial para que se tenha um processo justo. É essencial que o juiz a que se submete o processo seja imparcial, sob pena de se retirar toda a legitimidade de sua decisão. Tal imparcialidade é a que resulta da ausência de qualquer interesse pessoal do juiz na solução da demanda a ele apresentada. (CAMARA, 2007).


3 DA COMPETÊNCIA

Como visto, o princípio do juiz natural estabelece a necessidade de regras objetivas de competência jurisdicional pré-estabelecidas. Assim sendo, o instituto da competência será analisado neste capítulo.

3.1 Generalidades

Preleciona Didier Jr. (2009) que a jurisdição, como função estatal para prevenir e compor os conflitos, aplicando o direito ao caso concreto, em última instância, resguardando a ordem jurídica e a paz social, é exercida em todo o território nacional (art. 1º, do CPC). Por questão de conveniência, especializam-se os setores da função jurisdicional.

Distribuem-se as causas pelos vários órgãos jurisdicionais, conforme as suas atribuições, que têm seus limites definidos em lei. Limites que lhes permitem o exercício da jurisdição. A jurisdição é uma, porquanto manifestação do poder estatal. Entretanto, para que mais bem seja administrada, há de ser feita por diversos órgãos distintos. (Didier Jr., 2009).

A competência é exatamente o resultado de critérios para distribuir entre vários órgãos as atribuições relativas ao desempenho da jurisdição. A competência é o poder de exercer a jurisdição nos limites estabelecidos por lei. É o âmbito dentro do qual o juiz pode exercer a jurisdição. É a medida da jurisdição. (Didier Jr., 2009).

Chama-se competência a quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos. (LIEBMAN apud CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2011).

Destaque-se que a distribuição da competência faz-se por meio de normas constitucionais, de leis processuais e de organização judiciária, além da distribuição interna da competência nos tribunais, feita pelos seus regimentos internos. Nossa Constituição já distribui a competência em todo o poder judiciário federal (STF, STJ e justiças federais: justiça militar, eleitoral, trabalhista e federal comum). A competência da justiça estadual é, portanto, residual. (Didier Jr., 2009).

3.2 Competência absoluta e relativa. Distribuição e prorrogação da competência.

Cintra, Dinamarco e Grinover (2011) aduzem que a distribuição do exercício da atividade jurisdicional entre órgãos ou entre organismos judiciários atende, às vezes, ao interesse público e outras, ao interesse ou comodidade das partes.

É o interesse público pela perfeita atuação da jurisdição que prevalece na distribuição da competência entre as justiças diferentes (competência de jurisdição), entre juízes superiores e inferiores (competência hierárquica: originária e recursal), entre varas especializadas (competência de juízo) e entre juízes do mesmo órgão judiciário (competência interna). Em princípio, deve prevalecer o interesse das partes apenas quando se trata de distribuição territorial da competência (competência de foro).

Nos casos de competência determinada segundo o interesse público (competência de jurisdição, hierárquica, de juízo e interna), em princípio o sistema jurídico-processual não tolera modificações nos critérios estabelecidos, e muito menos em virtude da vontade das partes em conflito. Trata-se, aí, da competência absoluta, isto é, competência que não pode jamais ser modificada. Iniciado o processo perante o juiz incompetente, este pronunciará a incompetência ainda que nada aleguem as partes (art. 113, do CPC), enviando os autos ao juiz competente; e todos os atos decisórios serão nulos pelo vício de incompetência, salvando-se os demais atos do processo, que serão aproveitados pelo juiz competente (art. 113, § 2º, do CPC). (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2011).

Aduzem, ainda, os renomados juristas que há na doutrina tendência a considerar inexistente o processo instaurado perante a justiça incompetente (porque há violação das normas constitucionais, sendo que a Constituição da República de 1988 não ressalva os atos não-decisórios: a ressalva é nos códigos de processo, os quais não podem impor exceções aos preceitos constitucionais). Há também os que consideram inexistentes apenas os processos da competência da justiça comum, quando instaurados perante a especial; na hipótese inversa, dizem, age a justiça comum com mero excessus jurisdictionis, pois os juízes ordinários são idealmente investidos de toda a jurisdição. Essa última tendência, contudo, perde força em face da Constituição da República de 1988, cujo art. 5º, inciso LIII, determina que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; desse modo, o princípio do juiz constitucionalmente competente vem integrar as garantias do devido processo legal, podendo considerar-se inexistente o processo conduzido pelo juiz desprovido de competência constitucional.

E prosseguem prelecionando que no processo civil a coisa julgada sana (relativamente) o vício decorrente de incompetência absoluta; mas, dentro do prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado, pode a sentença ser anulada, através da ação rescisória (arts. 485, inciso II, e 495, do CPC).

Já se tratando de competência de foro, o legislador pensa proponderamente no interesse de uma das partes em defender-se melhor. Assim sendo, a intercorrência de certos fatores (entre os quais, a vontade das partes – ex., a eleição de foro: art. 111, do CPC) pode modificar as regras ordinárias de competência territorial. A competência, nesses casos, é então relativa. Também é relativa a competência determinada pelo critério do valor (art. 102, do CPC). (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2011).

Diante do exposto e abstraídas as aplicações particularizadas das regras sobre improrrogabilidade, absoluta é a competência que não comporta modificação alguma; relativa é a que dentro de certos limites pode ser modificada.

3.3 Da incompetência absoluta e o dever de declará-la

Como se trata de matéria de ordem pública, a incompetência absoluta (material ou funcional) pode ser arguida por qualquer das partes, pelo Ministério Público e pelo interveniente. O juiz deve de ofício, examiná-la e, se for o caso, declará-la, independentemente de provocação da parte ou interessado. O magistrado não pode eximir-se de declarar a incompetência absoluta. (NERY JR.; NERY, 2010).

Marinoni e Arenhart (2008) prelecionam que se verificando a incompetência absoluta, em qualquer estágio do processo, serão tidos como nulos (nulidade absoluta) todos os atos decisórios – tais como a sentença e as decisões cautelares ou antecipatórias, preservando-se, contudo, os demais atos do processo -, encaminhando-se os autos ao juízo competente (art. 113, § 2º, do CPC). Tal nulidade pode ser reconhecida até mesmo por meio de ação rescisória (art. 485, inciso II, do CPC). (MEDINA, 2011).

Relembre-se, por oportuno, o princípio da competência sobre a competência, que baliza toda a verificação e os incidentes a respeito da competência. De acordo com esse princípio (chamado, pelos alemães, de Kompetenz-Kompetenz), todo juiz tem competência para apreciar sua competência para examinar determinada causa. Trata-se de decorrência inevitável da cláusula que outorga ao magistrado da causa o poder de verificar a satisfação dos pressupostos processuais. Se a competência é um destes pressupostos, é natural que o juiz da causa tenha o poder de decidir sobre sua competência. (Marinoni; Arenhart, 2008).

Os citados processualistas informam que a decisão tomada, porém, não é capaz de vincular outro órgão, de forma que este também é livre para acolher, ou não, esta decisão, se a causa lhe for encaminhada, ou mesmo para entender-se competente, ainda diante da aceitação da competência para a causa pelo primeiro juiz.

3.4 Da nulidade dos atos decisórios quando reconhecida a incompetência absoluta

Preceitua o art. 113, § 2º, do CPC que são nulos todos os atos decisórios atinentes à matéria ou hierarquia, de modo que, consequentemente isso importará na remessa dos autos ao juiz competente.

Pizzol (2003) entende que se reconhecida a incompetência, os atos decisórios serão considerados nulos. Na mesma linha, Theodoro Jr. (2003) preleciona que sendo reconhecida a incompetência absoluta, o processo é atingido por nulidade, mas esta somente se restringe aos atos decisórios.

No entanto, parte da doutrina e jurisprudência, como se verá adiante, tem entendido que nem todos os atos praticados pelo juiz absolutamente incompetente são nulos.

Insta ressaltar que da leitura do art. 122, do CPC depreende-se que o tribunal vai apreciar os atos já praticados e pode convalidar um ato decisório, até porque não há rol elencando especificamente quais atos o tribunal declarará nulos.

A discussão toma contornos relevantes quando se analisa a possibilidade de concessão de tutela antecipada, que é tutela de urgência, por juiz absolutamente incompetente. Antes, todavia, cumpre analisar em apertada síntese o instituto da tutela antecipada, o que será feito no capítulo subsequente.


4 TUTELA ANTECIPADA

À luz dos valores e das necessidades contemporâneas, entende-se que o direito à prestação jurisdicional (garantido pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto na Constituição da República de 1988) é o direito a uma proteção efetiva e eficaz, que tanto poderá ser concedida por meio de sentença transitada em julgado, quanto por outro tipo de decisão judicial, desde que apta e capaz de dar rendimento efetivo à norma constitucional. (ALMEIDA; TALAMINI; WAMBIER, 2007).

Relembre-se que do referido princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional que decorre o direito à prestação da tutela jurisdicional. Assim, a antecipação da tutela pretendida pela parte (que, em princípio, somente ao final, com a sentença, é que seria deferida) consiste em fenômeno processual de raízes nitidamente constitucionais, já que, para que seja plenamente aplicado o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional é necessário que a tutela prestada seja efetiva e eficaz. (ALMEIDA; TALAMINI; WAMBIER, 2007).

A função da antecipação da tutela é a de permitir que a proteção jurisdicional seja oportuna, adequada e efetiva. Garantir a efetividade de suas decisões é a contrapartida que o estado tem que conferir à proibição da autotutela. (ALMEIDA; TALAMINI; WAMBIER, 2007).

Na clássica definição de Chiovenda, tem-se que o processo será efetivo se for capaz de proporcionar ao credor a satisfação da obrigação, como se ela tivesse sido cumprida espontaneamente e, assim, dar-se ao credor tudo aquilo a que ele tem direito. (ALMEIDA; TALAMINI; WAMBIER, 2007).

As alterações introduzidas no Código de Processo Civil pela reforma de 1994 – contexto em que foi inserida no sistema processual brasileiro a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela – envolveram, sem dúvida, certa dose de risco. Mas, segundo Almeida, Talamini e Wambier (2007), era um risco que precisava ser corrido, em prol de um processo apto a gerar resultados mais adequados. Reputou-se ser maior o risco de injustiças derivadas de uma resposta jurisdicional intempestiva do que o risco de injustiças advindo da incorreta antecipação de tutela. Ademais, para diminuir esse segundo risco, estabeleceram-se precisos pressupostos e condições para a antecipação da tutela.

Marinoni e Arenhart (2008) aduz, ainda, que é necessário que o juiz compreenda que não pode haver efetividade sem riscos. A tutela antecipatória permite perceber que não só a ação (o agir, a antecipação) que pode causar prejuízo, mas também a omissão. O juiz que se omite é tão nocivo quanto o juiz que julga mal. E arremata, lecionando que o remédio surgiu para eliminar um mal que já está instalado, uma vez que o tempo do processo sempre prejudicou o autor que tem razão.

Verifica-se uma considerável valorização da efetividade, atribuindo-se ao juiz o poder de deferir medidas tipicamente executivas no curso do processo de conhecimento. Antecipam-se providências executórias que decorreriam da futura sentença de procedência, mediante atos tipicamente executivos. (ZAVASCKI, 2005). Têm-se, assim, ações sincréticas, mesclando cognição e execução em uma mesma demanda, mitigando a segmentação total que havia entre processo de conhecimento e processo de execução, em que, primeiro haveria de se esgotar a atividade cognitiva para, somente após, adentrar às providências executivas. (PAIM, 2012).

Paim (2012) relembra, ainda, que a antecipação de tutela, por ser uma tutela provisória, deve ser utilizada de forma excepcional, adequada, em observância às normas constitucionais, não podendo se constituir na panaceia de todos os males, sob pena de grave violação a garantias tão ou mais caras que a efetividade. De toda sorte, a sua correta utilização constitui ferramenta de ótima valia para a concretização do valor efetividade no processo civil.

A possibilidade de antecipação da tutela jurisdicional pretendida pelo autor está prevista no artigo 273 do Código de Processo Civil. E, em que pese a matéria ser ampla e rica, não se pretende esgotar o tema neste trabalho, mas trazer as linhas mestras do instituto para a compreensão do tema posto em debate.

4.1 Fundamento constitucional

A tutela antecipada gera um conflito entre garantias constitucionais, visto que acarreta uma limitação do contraditório, da ampla defesa e da própria segurança jurídica, mas garante a efetividade. Dessa forma, somente seria admissível a antecipação da tutela, com a consequente mitigação de um direito constitucional, caso necessário para a salvaguarda de outra garantia constitucional, tão ou mais relevante no caso concreto. Haverá, pois, um conflito entre garantias constitucionais quando da análise, pelo julgador, do deferimento ou não do pedido de tutela antecipada. Assim, esse conflito de interesses deve ser resolvido com uma necessária ponderação, a fim de proteger um direito superior no caso concreto. (PAIM, 2012).

Em regra, com a antecipação da tutela, estar-se-á garantindo o direito constitucional à efetividade, que é o direito atribuído ao jurisdicionado, impedido de fazer justiça de mão própria, de que seja garantida a utilidade da sentença, assegurando, em caso de vitória, a efetiva e prática concretização da tutela. Trata-se de um direito à ordem jurídica justa, compreendendo o direito de provocar o estado, mas também e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma decisão justa e com potencial de atuar eficazmente no plano dos fatos. (PAIM, 2012).

Nesse sentido, aduz Marinoni e Mitidiero (2010) que o direito de acesso à justiça, albergado no art. 5º, inciso XXXV, da CR/88, não quer dizer apenas que todos têm direito a recorrer ao poder judiciário, mas também quer significar que todos têm direito à tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva.

Dessa forma, a decisão que concede a antecipação de tutela deverá possuir uma fundamentação constitucional, a justificar a violação à ampla defesa, ao contraditório e à segurança jurídica. Por óbvio que a decisão de conceder ou não a tutela deverá sempre ser motivada, seja por força do dispositivo constitucional positivado no art. 93, inciso IX, seja em razão do § 1º do art. 273 do CPC. Mencionada motivação deve repousar em elementos constitucionais, tendo em vista o conflito de garantias fundamentais que deve se estabelecer. (PAIM, 2012).

Em apertada síntese, a solução para o conflito de garantias constitucionais é a regra da proporcionalidade, ou seja, a decisão deverá sacrificar o mínimo necessário da garantia violada, utilizando-se a antecipação de tutela com observância da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito, em busca da menor restrição possível e a salvaguarda do núcleo essencial da garantia mitigada no caso concreto. (PAIM, 2012).

Além da motivação constitucional, existem requisitos que deverão estar presentes para que se utilize da antecipação dos efeitos da tutela.

4.2 Requisitos

Preleciona Paim (2012) que para a concessão da antecipação da tutela, mister é a configuração de dois requisitos indispensáveis, quais sejam, a prova inequívoca e a verossimilhança. Ademais, é necessária a presença da urgência ou da evidência. A tutela antecipada estribada na urgência tem como fundamentos o perigo de dano e o perigo de ilícito, seja pelo fundamento do receio de dano irreparável ou de difícil reparação, seja pelo justificado receio de ineficácia do provimento final. A tutela de evidência justifica-se pelo abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, ou pela existência de parte incontroversa da demanda. Além dos requisitos necessários e de um dos requisitos alternativos, existe um requisito negativo, não podendo, em regra, haver antecipação de tutela quando os efeitos práticos antecipados forem irreversíveis.

A urgência pode decorrer tanto do perigo de dano (arts. 273, inciso I, e 461, § 3º, do CPC), quando do perigo de ilícito (art. 461, § 3º, do CPC). Já a tutela de evidência pode decorrer do abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu (art. 273, inciso II, do CPC), bem como da existência da parte incontroversa da demanda (art. 273, § 6º, do CPC). (PAIM, 2012).

Para a concessão da antecipação dos efeitos da tutela, o caput do art. 273 do CPC exige a presença de dois requisitos cumulativos: a prova inequívoca que convença o julgador da verossimilhança da alegação.

Além dos dois requisitos indispensáveis – prova inequívoca e verossimilhança -, para que se conceda a tutela antecipada, faz-se mister a urgência ou a evidência. Assim, deve estar presente, também, um dos requisitos alternativos relativos ao perigo, tanto de dano quanto de ilícito, ou à evidência, seja em razão do abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, seja quando presente o fundamento do § 6º do art. 273 do CPC, introduzido pela Lei nº. 10.444/2002, que trata do pedido incontroverso.

Por fim, além da presença dos requisitos da prova inequívoca e da verossimilhança da alegação, agregados a um dos requisitos alternativos dentre o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu e o pedido incontroverso, o art. 273, § 2º do CPC dispõe que “não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado”. (PAIM, 2012).


5 A concessão de tutela de urgência POR JUIZ ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTE – POSSIBILIDADE?

Percorridos os princípios constitucionais processuais e os institutos da competência e da tutela antecipada, passa-se ao debate sobre o tema dessa monografia, qual seja, a possibilidade (ou não) de concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente e a necessidade de se conferir um novo enfoque sobre as regras de competência.

5.1 Posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais

Renomada doutrina[4] processualista brasileira entende que os atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente são nulos.

Nesse sentido, ensina Fux

(...) o desvio na incompetência absoluta é tão grave que o próprio juiz de ofício e, portanto, independentemente de provocação da parte, pode denunciar a sua incompetência absoluta, devendo a parte alegá-la na primeira oportunidade em que se manifesta nos autos, mercê de o vício poder ser suscitado em qualquer tempo e grau de jurisdição antes de transitar em julgado a decisão. Transitada esta, o vício ainda pode figurar como causa petendi de ação rescisória; por isso, os atos decisórios do juízo absolutamente incompetente são nulos (art. 113, § 2º c.c art. 485, inciso II, do CPC), como, v.g., o que defere a liminar antecipatória. (BRASIL, 2009). Grifamos.

Em sentido contrário, Alvim (1994) esclarece que as medidas urgentes podem ser ordenadas por qualquer juiz, podendo-se passar por cima, aliás, de regras de competência absoluta.

Na mesma linha Lacerda (2006) pontifica que a liminar dada por juiz incompetente deve prevalecer até que o juiz competente se pronuncie a respeito, de acordo com o princípio quando est periculum in mora incompetência non aftenditur. E acrescenta que o que vale para a exceção de incompetência relativa também se aplica à arguição de incompetência absoluta por igual a imediata suspensão do feito.

Embora a incompetência absoluta cause a nulidade do ato decisório, e não a mera anulabilidade como ocorre na relativa, certo é que o vício deve ser judicialmente declarado, nos termos o art. 113, § 2º, do CPC, pois nosso direito repele a desconstituição espontânea e automática do ato nulo. Por isso, os efeitos já produzidos permanecem até que o juiz competente se pronuncie para manter ou revogar a cautelar inicial. Não seria justo que a tutela do direito ou do interesse da parte ficasse sufocada pelo tecnicismo legal ou jurisprudencial, na busca do acerto sobre competência, muitas vezes sugerido só após laborioso conflito.

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema:

PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA JULGADO ORIGINARIAMENTE POR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DECISÃO DENEGATÓRIA. RECURSO ESPECIAL. ERRO GROSSEIRO. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF.

1. Em obséquio ao art. 105, II, "b", da Carta Magna, a interposição de recurso especial pelo impetrante contra acórdão denegatório de mandado de segurança julgado originariamente por Tribunal de Justiça constitui erro grosseiro, não sendo aplicável o princípio da fungibilidade. Precedentes.

2. O art. 113, § 2º, do CPC, não tem carga normativa suficiente para infirmar as razões alinhavadas pelo aresto recorrido, que reconheceu a incompetência absoluta do juízo, mas manteve o deferimento de liminar em face da urgência até manifestação do juiz competente. Incidência da Súmula 284/STF.

3. O dispositivo não trata, e também não impossibilita o juiz, ainda que absolutamente incompetente, de deferir medidas de urgência. A norma em destaque, por força dos princípios da economia processual, da instrumentalidade das formas e do aproveitamento dos atos processuais, somente determina que, reconhecendo-se a incompetência do juízo, os atos decisórios serão nulos, devendo ser aproveitado todo e qualquer ato de conteúdo não decisório, evitando-se com isso a necessidade de repetição. Precedente: AgREsp 1.022.375/PR, de minha relatoria, DJe 01º.07.11.

4. Recurso especial do particular não conhecido. Recurso especial do Estado do Espírito Santo conhecido em parte e, nesta parte, provido tão somente para afastar a multa aplicada com base no art. 538, parágrafo único, do CPC. (BRASIL, 2011). Grifamos.

O relator do citado julgado, Ministro Castro Meira, esclareceu em seu voto que o dispositivo não trata e também não impede, a possibilidade de o juiz, ainda que absolutamente incompetente, deferir medidas de urgência. A norma em destaque, por força dos princípios da economia processual, da instrumentalidade das formas e do aproveitamento dos atos processuais, apenas determina que, reconhecendo-se a incompetência do juízo, os atos decisórios serão nulos, devendo ser aproveitado todo e qualquer ato de conteúdo não decisório, evitando-se com isso a necessidade de repetição.

Aduz, ainda, que o art. 113, § 2º, do CPC é uma manifestação legislativa do princípio da economia processual, pois impõe que apenas os atos decisórios sejam anulados quando reconhecida a incompetência do juízo. Mas não impede o juízo, ainda que incompetente, de deferir medidas de urgência, com o objetivo de evitar o perecimento do direito controvertido.

É esse também o entendimento do Tribunal de Justiça do Espírito Santo:

Em se tratando de tutela de urgência, a doutrina admite a possibilidade de o juiz incompetente (mesmo ciente desse vício) conceder medida liminar e, em seguida, remeter os autos ao órgão judiciário competente (art. 113, § 2º, CPC), a fim de salvaguardar o direito material subjacente, em nome da efetividade da tutela jurisdicional. Cabe ao Estado assegurar, através dos recursos que se fizerem necessários ao tratamento da moléstia de que padece a parte, o direito à vida, permitindo aliviar o sofrimento e a dor de enfermidade reversível ou irreversível, garantindo ao cidadão o direito à sobrevivência (ESPÍRITO SANTO, 2009). Grifamos.

Ainda, relembra Medina (2011), que o processo fica vinculado às garantias mínimas decorrentes do princípio do devido processo legal, mesmo que se desenvolva perante um juízo incompetente. Assim, se é certo que a lei não pode excluir da apreciação do poder judiciário a ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV, da CR/88), deve ser considerada contrária a este princípio orientação tendente a impedir que juízo incompetente conceda liminar para coibir o ocorrência de lesão a direito.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu que

(...) embora caiba a concessão de liminar por juízo absolutamente incompetente, tal ocorre somente em caráter excepcional, apenas quando material e juridicamente irremediável e irreversível o dano, cujas proporções sejam relevantes, de modo a justificar a proteção como forma de impedir o perecimento do direito. (SÃO PAULO, 2005). Grifamos.

Medina (2011) prossegue aduzindo que o juiz, ao se deparar com tal situação, deve, presentes os requisitos necessários à concessão da liminar, outorgar a medida, remetendo em seguida, os autos ao juízo competente.

O jurista avança dizendo que considerando que as hipóteses de incompetência absoluta devem ser reconhecidas de ofício pelo juiz, não podem as partes ser punidas nos casos em que o vício não é corrigido antes de proferida a decisão. De qualquer forma, terá havido prestação jurisdicional, ainda que prestada por órgão incompetente. Note-se que as regras relativas à atribuição de competência aos órgãos jurisdicionais existem para se aperfeiçoar a prestação do serviço jurisdicional, e os requisitos processuais existem para propiciar a obtenção, do melhor modo possível, da solução da lide.

De acordo com o art. 113, § 2º, do CPC, reconhecida a incompetência absoluta, os atos decisórios serão nulos. Para Medina (2011) não parece correto entender, com fundamento nessa regra processual, que, reconhecida a nulidade, devem ser automaticamente cassados os efeitos da decisão judicial. Nos casos em que o vício resume-se à incompetência do juízo do qual emanou a decisão judicial, devem os efeitos (substanciais e processuais) ser conservados, até que outra decisão seja proferida pelo juízo competente.

Dinamarco (2005) destaca que a declaração de incompetência não determina a extinção do processo, mas sua transferência ao órgão concretamente competente, que pertença à mesma justiça ou a outra, quer se situe no mesmo ou diferente grau de jurisdição, quer se trata de incompetência absoluta ou relativa (art. 113, § 2º e art. 311, do CPC). Como o juiz exerce a jurisdição mesmo nos casos em que seja incompetente, a declaração de sua incompetência por ele mesmo (de ofício ou por provocação) ou pelo órgão superior (recurso, conflito de competência) não invalida os atos não decisórios que haja realizado (provas etc.) nem o procedimento como um todo (art. 113, § 2º, do CPC).

5.2 O instituto da translatio iudicii e o novo projeto de CPC

Como visto, a incompetência absoluta, posto fundada em causas de interesse público, textualmente, quando acolhida, nulifica os atos decisórios (art. 113, § 2º, do CPC). No entanto, o sistema de nulidades do Código de Processo Civil, informado pelos princípios da legalidade, instrumentalidade e prejuízo, impede a decretação da nulificação do processo sem que haja cominação expressa.

Com efeito, à luz do princípio da efetividade, a doutrina moderna preconiza a aplicação do princípio da translatio iudicii com o aproveitamento dos atos de definição e satisfação de direitos, quer provenham de órgãos judiciais incompetentes, quer provenham do contencioso administrativo nos países que o adotam. (BRASIL. STJ. EDcl no REsp. 355.099/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, 2008).

Sobre a translatio iudicii, destaca Greco (2008), que o instituto poderia ser definido como a continuidade do processo iniciado no juízo incompetente (ou sem jurisdição, para os italianos) perante o juízo próprio, com a conservação de todos os efeitos produzidos pelos atos processuais praticados na primeira fase.

O citado jurista preleciona que a doutrina italiana concluiu que a incompetência da justiça comum em face da justiça administrativa ou desta em relação àquela não deve mais determinar a extinção dos processos devidamente instaurados perante uma delas, mas a sua remessa e continuação perante a outra, numa mesma relação processual, preservados os efeitos substanciais e processuais produzidos perante o juízo originário, que veio a ser declarado incompetente.

O avanço dado pelos tribunais italianos somente tornou-se possível devido à compreensão que conferiram ao direito de acesso à justiça, universalmente reconhecido. E, por isso, integrando ele também o rol dos direitos fundamentais proclamados solenemente pela Constituição da República de 1988 (art. 5º, inciso XXXV), as razões desenvolvidas podem auxiliar o processualista brasileiro no estudo e no aperfeiçoamento de situações em que, à falta de um pressuposto processual – incompetência ou outro – o nosso sistema prevê a continuidade do processo no novo juízo, sem definir, entretanto, com clareza o que se preserva e o que se despreza do processo original, ora simplesmente determina a extinção do processo, sujeitando o autor aos riscos de uma nova demanda originária que pode estar definitivamente impossibilitada, ou na qual todos os atos anteriores deverão ser renovados, com perda de tempo, repetição de despesas e resultados nem sempre equivalentes aos já alcançados no processo primitivo. (GRECO, 2008)

A continuação do processo, após a declaração de incompetência, perante o novo juiz, foi adotada no código italiano através do instituto da “reassunção da causa” (artigo 50 do Código de Processo Civil), havendo norma expressa que impedia a sua utilização na concorrência entre a jurisdição comum e a administrativa. No direito brasileiro, nessa hipótese, também há norma expressa de preservação dos atos do processo, exceto os de caráter decisório (CPC, art. 113, § 2º). Essas regras são consequências da unidade da jurisdição. (GRECO, 2008)

Greco (2008) relembra que um dos efeitos mais nefastos da extinção do processo por inadequação do procedimento, e não a sua continuidade através do novo procedimento, é a caducidade das liminares ou cautelares (art. 808, inciso III, do CPC).

Dessa forma, adotando-se a reassunção do processo, esse problema ficará resolvido. Para Greco, no caso de alteração do procedimento perante o mesmo juízo, a eficácia da tutela da urgência estará preservada até que sobrevenha decisão final da causa ou até que ela seja revista no curso do novo procedimento. (GRECO, 2008)

Já no caso da translatio iudicii, cumpre distinguir, de um lado, se se trata de medida de urgência que tutele apenas o processo ou diretamente o próprio direito material e se a competência absoluta violada diz respeito apenas à apreciação da relação jurídica de direito material. Na cautelar puramente processual, não satisfativa, se a incompetência do juízo de origem era restrita ao direito material controvertido, a continuidade será automática, em decorrência da preservação dos efeitos processuais da primeira fase do processo, sem prejuízo da possibilidade de seu reexame pelo novo juízo. Igualmente, se a cautelar meramente processual foi concedida em procedimento posteriormente considerado inadequado ou em juízo incompetente para esse procedimento, preservará os seus efeitos na reassunção do processo, salvo se com esta for manifestamente incompatível e se comprovada a má-fé do uso abusivo do procedimento inadequado ou da postulação perante juízo incompetente. (GRECO, 2008)

Na hipótese de tutela de urgência satisfativa, cautelar ou antecipatória, concedida por juiz incompetente apenas quanto ao direito material, a nulidade atingirá também essa decisão e, ainda que ratificada no novo juízo, os seus efeitos válidos somente poderão produzir-se a partir desse momento. (GRECO, 2008)

Portanto, a nulidade dos atos decisórios, a que se alude o § 2º do art. 113 do CPC, se refere apenas aos atos decisórios para os quais o juízo de origem era incompetente. Se a incompetência se restringia apenas à apreciação da matéria objeto da relação jurídica substancial, somente os atos decisórios provisórios ou definitivos que versaram sobre essa matéria é que serão nulos e deverão ser renovados no juízo competente. Em princípio, todas as decisões sobre questões processuais e sobre matéria probatória serão preservadas, salvo se a incompetência atingir o próprio procedimento e os atos já praticados não puderem ser aproveitados no procedimento adequado, por serem com ele incompatíveis. No despacho em que determinar a continuidade do processo, em obediência ao art. 249, do CPC, o juiz declarará os atos atingidos pela inicial incompetência ou inadequação do procedimento. (GRECO, 2008)

A continuidade do processo, no caso de incompetência, deverá ser determinada de ofício pelo juízo competente, por força do princípio do impulso processual oficial, declarando nesse momento os atos que devam ser renovados em razão dessa nulidade. (GRECO, 2008)

A preservação dos efeitos processuais e substanciais do processo primitivo implica em projeção ao processo subsequente dos efeitos das preclusões já consumadas e dos direitos subjetivos processuais anteriormente adquiridos, bem como resguarda na fase sucessiva as faculdades decorrentes de atos ou fases do processo primitivo, ainda que não previstas no procedimento adequado, que deverá respeitá-las. Mas essa proteção do direito adquirido ou da confiança legítima é decorrente da presunção de boa-fé de que o erro da competência ou de procedimento seja escusável. (GRECO, 2008)

Portanto, com a reassunção do processo, em qualquer caso, não mais ocorrerá a caducidade de liminares e cautelares preconizada no art. 808, inciso III, do CPC, salvo se diretamente contaminadas pelo vício do processo primitivo e obtidas através do recurso abusivo ao juízo incompetente ou ao procedimento inadequado. (GRECO, 2008)

Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. ART. 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. EFEITOS PROCESSUAIS. APROVEITAMENTO DOS ATOS. TRANSLATIO IUDICII.

1. A incompetência territorial do juízo não implica a anulação dos atos decisórios, porquanto ditada por interesse particular, evidenciado quando há pacto de foro de eleição.

2. A incompetência absoluta, posto fundada em causas de interesse público, textualmente, quando acolhida, nulifica os atos decisórios (artigo 113, § 2.º do Código de Processo Civil).

3. Deveras, o sistema de nulidades do Código de Processo Civil, informado pelos princípios da legalidade, instrumentalidade e prejuízo, impede a decretação da nulificação do processo sem que haja cominação expressa.

4. Deveras, à luz do princípio da efetividade, a doutrina hodierna preconiza a aplicação do princípio da translatio iudicii com o aproveitamento dos atos de definição e satisfação de direitos, quer provenham de órgão judiciais incompetentes, quer provenham do contencioso administrativo nos países que o adotam.

5. À luz dos princípios da efetividade, e da duração razoável dos processos dever ser interpretada a cláusula de remessa ao juízo competente, quando acolhida a exceção, somente nas hipóteses em que ainda não se exauriu a tutela jurisdicional.

6. In casu, há julgamento de única instância, reconhecendo a manutenção dos autos onde se encontram, em prestígio à análise pós-positivista e principiológica da regra do artigo 114 do CPC.

7. Embargos de declaração acolhidos, acompanhando a divergência.

(BRASIL, 2008). Grifamos.

Ademais, nos casos em que o vício se resume à incompetência do juízo do qual emanou a decisão judicial, devem os efeitos (substanciais e processuais) ser conservados, até que outra decisão seja proferida pelo juiz competente. Nesse sentido, o Projeto de Lei nº. 166/2010 (novo CPC) dispõe que, reconhecida a incompetência absoluta, “conservar-se-ão os efeitos das decisões proferidas pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juiz competente”. (art. 64, § 3º, do Projeto de Lei nº. 166/2010). (MEDINA, 2011).

Greco (2008) conclui aduzindo que a inexistência das regras específicas disciplinadoras dessas situações não é óbice à busca desses novos caminhos, que encontra suporte em princípios e valores fundamentais do estado de direito contemporâneo e do ordenamento jurídico brasileiro que se respaldam em regras de direito positivo, que impede sejam interpretadas à luz desses princípios.


6 CONCLUSÃO

O princípio do devido processo legal, que fundamenta todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais, assegura que todo julgamento seja realizado com observância das regras procedimentais previamente estabelecidas. No mesmo sentido, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional tem como corolário o direito à tutela jurisdicional adequada, preceituando que deve ser considerada inconstitucional qualquer norma que impeça o judiciário de tutelar de forma efetiva os direitos lesados ou ameaçados que a ele são levados em busca de proteção.

Igualmente, o princípio do juiz natural, compreendido como o juiz devido, estatui que os processos tramitem perante o juízo competente, cuja competência constitucional é preestabelecida.

A competência é definida como a quantidade de jurisdição por meio do qual o exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos. Se a competência for determinada segundo o interesse público (competência de jurisdição, hierárquica, de juízo e interna), será considerada absoluta, inadmitindo modificações nos critérios estabelecidos.

Assim, preceitua o art. 113, § 2º, do CPC que são nulos todos os atos decisórios atinentes à matéria ou hierarquia, de modo que, consequentemente isso importará na remessa dos autos ao juízo competente.

Não seria, segundo a interpretação literal ou gramatical do dispositivo mencionado, possível a concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente.

Ocorre que tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátria entende que o art. 113, § 2º do CPC é uma manifestação legislativa do princípio da economia processual, conquanto impõe que apenas os atos decisórios serão anulados quando reconhecida a incompetência do juízo. Todavia, não impede o juízo, ainda que incompetente, de deferir medidas de urgência, visando evitar o perecimento do direito controvertido.

O Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil, ao instituir em seu art. 64, § 3º que reconhecida a incompetência absoluta, conservar-se-ão os efeitos das decisões proferidas pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juiz competente, adotou o princípio da translatio iudicii ou reassunção do processo, com o aproveitamento dos atos de definição e satisfação de direitos que provenham de juízos incompetentes.

Ao se admitir a concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente é flagrante a ofensa ao princípio do juiz natural. Destarte, não parece possível que o legislador preveja todos os casos possíveis ao elaborar as leis, como também não parece possível instituir fórmula pré-definida para o julgamento de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente.

Releve-se, outrossim, se um juiz incompetente em razão da matéria teria condições jurídicas para analisar devidamente um pedido de tutela satisfativa e prolatar uma decisão justa e fundamentada.

Mas se por um lado está o princípio do juiz natural e as regras de competência, por outro estão os princípios da economia processual, instrumentalidade das formas, aproveitamento dos atos processuais, efetividade e duração razoável do processo.

Considerando as múltiplas variáveis do caso concreto e a impossibilidade de prevê-las em lei, é premente a necessidade de se conferir um novo enfoque à regra de competência, em busca do entendimento da finalidade para a qual a norma foi editada, mediante uma interpretação teleológica e não gramatical.

Não se olvide que a solução para o conflito de garantias constitucionais encontra assento na regra da proporcionalidade, é dizer, a decisão deverá sacrificar o mínimo necessário da garantia violada, utilizando-se a tutela de urgência com observância da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito, em busca da menor restrição possível e a salvaguarda do núcleo essencial da garantia mitigada no caso concreto.

Deve, então, o aplicador do direito analisar o caso concreto segundo a regra da proporcionalidade e, ponderando os princípios em conflito, apreciar ou não o pedido de tutela de urgência, ainda que absolutamente incompetente e remeter os autos ao juízo competente para prosseguimento.


REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Art. 64, § 3º.

[2] Sobre a regra da proporcionalidade, conferir artigo de minha autoria em <http://jus.com.br/revista/texto/22687/a-utilizacao-da-regra-da-proporcionalidade-como-forma-de-concretizacao-do-principio-da-supremacia-do-interesse-publico-quando-em-conflito-com-o-interesse-privado/>.

[3] Com efeito, rezava o art. 105, 2ª alínea da Constituição de Weimar, que "ninguém poderá ser subtraído ao seu juízo legal". Nessa senda, dispunha o §95, da Constituição de Würtemberg, que: "O recurso aos juízes não se pode fechar aos cidadãos que se creem lesados em direito privado, que assente em título particular, por ato do Poder Público".

[4]  A exemplo de Patrícia Miranda Pizzol, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart.


Autor

  • Natália Hallit Moyses

    Natália Hallit Moyses

    Procuradora Federal. Chefe do Serviço de Orientação e Análise em Demandas de Controle da PFE-INSS. Especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOYSES, Natália Hallit. Concessão de tutela de urgência por juiz absolutamente incompetente e a necessidade de um novo enfoque sobre a regra de competência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3447, 8 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23193. Acesso em: 27 abr. 2024.