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O dolo ou culpa na desapropriação confiscatória

uma interpretação à luz da razoabilidade

O dolo ou culpa na desapropriação confiscatória: uma interpretação à luz da razoabilidade

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O Estado, que tem o dever de garantir segurança, não proporciona condições suficientes para os proprietários, principalmente os mais carentes e idosos, de defesa contra grupos violentos e armados que se utilizam de sua força para o cultivo de plantas ilegais em terras de terceiros.

Resumo:O direito de propriedade tem garantia constitucional e é condicionado ao cumprimento da sua função social, não sendo mais ilimitado, tendo em vista a consagração do interesse público sobre o privado. Nesse contexto se insere o instituto da desapropriação, intervenção supressiva na propriedade. O artigo 243 da Constituição Federal de 1988 estatui a desapropriação confiscatória. A Constituição é silente no que diz respeito à análise do dolo ou culpa do proprietário que não tem conhecimento do cultivo de ilícitos em sua propriedade, motivo de divergência na doutrina e jurisprudência, sendo o objeto do presente trabalho. A razoabilidade, enquanto parâmetro hermenêutico, afasta uma interpretação baseada apenas na lógica formal, e busca uma relação com o espírito do sistema jurídico.


1.A PROPRIEDADE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL LIMITADO

1.1.Evolução histórica do direito fundamental de propriedade

A evolução histórica da propriedade é de extrema importância para analisar o contexto atual que a propriedade se insere e suas limitações. A história da propriedade encontra-se intimamente relacionada com a organização política das sociedades. Existe uma nítida influência do regime político sobre o modelamento da tipicidade dominial. Por conseguinte, a propriedade individual é vista como padrão de direito subjetivo nos regimes capitalistas, e contrapondo-se a ela existe a propriedade coletiva, predominantemente vigente em regimes socialistas.

A Revolução Francesa trouxe à baila o ideal romano de domínio individual e absoluto da res. A expressão romana dominium ex iuri quiritium designava adesão à propriedade de forma plena e exclusiva, sendo uma prerrogativa de forma absoluta e ilimitada1. Com o surgimento do capitalismo e o início das revoluções industriais, a concepção individualista da propriedade chega ao seu auge.

O capitalismo se sustentava em dois pilares: o da propriedade e o da liberdade. Uma nova ideologia surgira: o liberalismo, baseado na igualdade formal das pessoas perante a lei, e pautado num Estado não intervencionista.2 Importava apenas a aquisição de bens por parte do particular, sem contar com a participação da coletividade, sendo justificada pela intensificação da produtividade e lucros, com respaldo na exacerbada autonomia privada.

Politicamente, o Estado Liberal foi concebido como uma estrutura de poder absenteísta na qual não existe espaço par qualquer intervenção do poder público na atividade econômica, ou seja, a existência de um estado mínimo cuja função principal é assistir de longe o desenvolvimento da dinâmica social. Do ponto de vista econômico, o modelo liberal clássico consagra as regras de auto regulação do mercado compreendida a partir da metáfora da mão invisível.

Com a crise do Estado Liberal surgiu o denominado Estado Providência. Surge a necessidade de um Estado Social, com prestações positivas por parte do Estado, capaz de amparar e proporcionar melhorias para os hipossuficientes, privados de acesso a bens mínimos de sobrevivência. Vem à tona o Estado Social, também conhecido como Estado Providência ou o Welfare State, o Estado do bem-estar social. A realização dos direitos depende, assim, de uma superação do absenteísmo liberal e a consagração de uma forte intervenção na atividade econômica. É nesse contexto que se insere o Constitucionalismo Social.

A partir desse momento, a propriedade deixa de ser ilimitada e passa a ser compatibilizada com o interesse social, ou seja, da coletividade, tendo o Estado o papel de garantidor. O individualismo exacerbado, portanto, perde a sua força e surge o sentido social da propriedade.

Inicialmente, trata-se o direito de propriedade como um direito individual, sendo assegurado ao seu titular diversos poderes de natureza privada, dentre os quais se podem destacar: usar, usufruir, dispor, gozar e reaver um bem de maneira absoluta, exclusiva e perpétua. O direito de propriedade caracteriza-se como o direito mais amplo e complexo dentre os direitos subjetivos, por ser um feixe de poderes nas mãos do titular.

Trata-se de uma relação jurídica complexa formada entre o titular do bem, o proprietário, e a coletividade. O artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988 afirma ser a propriedade um direito fundamental, ao lado da vida, liberdade, igualdade e a segurança. A propriedade como um direito fundamental existe como função à proteção pessoal do titular, já que existe uma garantia da autonomia privada em caráter erga omnes, ou seja, a satisfação da propriedade exercida pelo seu titular exige um comportamento abstencionista por parte da coletividade.

Clóvis Beviláqua conceitua a propriedade como sendo o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida física e moral.3

O caráter absoluto da propriedade garante ao proprietário o direito de dispor da coisa como ele bem entender. O absolutismo do direito de propriedade não é integral, visto que, até mesmo os direitos que integram, tradicionalmente, o rol de absolutos vem se tornando mais relativos. Deste modo, o direito de propriedade está sujeito à algumas limitações impostas pelo direito público, bem como pelo direito de propriedade das outras pessoas. 4

É também de caráter exclusivo, uma vez que é exercido de forma individual, não podendo pertencer com exclusividade por mais de uma pessoa. O direito de propriedade proíbe que terceiros, não proprietários, exerçam o direito de senhoria sobre o bem. No mesmo lapso temporal, duas ou mais pessoas não podem exercer com exclusividade o direito de propriedade sobre a coisa, tendo o proprietário direito de ação reivindicatória caso haja interferência na sua propriedade. O direito de propriedade existe independentemente do seu exercício, enquanto não houver causas que o modifique ou extinga, sendo transmitida por direito hereditário. 5

Por isso, a doutrina tradicional classifica-o como um direito perpétuo. Neste sentido, o direito de propriedade apenas se extingue pela vontade do dono, ou por disposição expressa legal, nos casos de perecimento da coisa, desapropriação ou usucapião.

1.2.Limites à propriedade privada: entre o cumprimento da função social e a supremacia do interesse público sobre o privado

O direito de propriedade tem garantia constitucional, conforme dicção do artigo 5º, XXII da Constituição Federal. Entretanto, a própria Carta Maior exige, em contraponto, que a propriedade atenda a função social, como estabelece o inciso XXIII do artigo 5º. O atual contexto da propriedade, portanto, se insere em um direito fundamental condicionado, limitado pela própria Constituição que o garante, devendo cumprir com a sua função social.

Destarte, depreende-se que o direito de propriedade não pode ser visto, hodiernamente, como um direito absoluto. Impende destacar que nenhum direito fundamental é absoluto, embora o ilustre filósofo Noberto Bobbio afirme que o qualificativo de absoluto cabe a pouquíssimos direitos, como a vedação à escravidão e à tortura. 6 Os direitos fundamentais são limitados pelos demais direitos presentes na Constituição e também pelas normas infraconstitucionais que limitam o seu sentido.

Dentro da perspectiva de limitação a direitos fundamentais, principalmente no que tange à propriedade, destaca-se o principal vetor para a sua restrição: o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello7, o direito administrativo se delineia em função da consagração de dois princípios: o da supremacia do interesse público sobre o privado, e o da indisponibilidade, pela administração dos bens públicos. O primeiro se refere à superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados nos seus direitos e bens. O segundo parte do pressuposto de que a Administração possui poderes-deveres, ou seja, lhe são concedidos determinados poderes como meios para o alcance de uma finalidade previamente estabelecida, que é defesa do interesse público, e não da entidade governamental em mesma consideradas.

Dirley da Cunha Jr. destaca que:

Na doutrina italiana é corrente a distinção entre interesses públicos primários, que são os interesses da coletividade como um todo e interesse públicos secundários, que são os interesses do estado como sujeito de direitos, independentemente de sua qualidade se servidor de interesses de terceiros. 8

Ocorre que o princípio ora referido, da supremacia do interesse público sobre o privado, somente se aplica aos públicos primários, uma vez que são os únicos que podem ser tratados como verdadeiros interesses públicos. Estes correspondem ao conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente possuem quando considerados em sua qualidade como membros da sociedade.

Na lição de Celso Antonio Bandeira de Melo “os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da sociedade”. 9

Deste modo, os interesses públicos secundários apenas serão compreendidos como interesse público quando corresponderem aos interesses primários.

O direito de propriedade sempre foi contemplado em todas as Constituições do Brasil. A Constituição do Império foi inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude, trazendo um caráter eminentemente individualista. Apenas em 1967, apareceu textualmente a função social, como princípio de ordem econômica. Assim afirma Carlos Roberto Gonçalves:

O princípio da função social tem controvertida origem. Teria sido, segundo alguns, formulado por Augusto Comte e postulado por Léon Duguit, no começo do século. Em virtude da influência que a sua obra exerceu nos autores latinos, Duguit é considerado o precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para o qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto á gestão dos seus bens, como um funcionário.10

A expressão função social deriva do latim functio que significa cumprir algo ou desempenhar um dever ou uma atividade. O direito à propriedade, portanto, encontra-se condicionado ao cumprimento da sua função social, que surgiu com as mudanças ocorridas no conceito de propriedade, deixando de ser um direito absoluto, inviolável, para atender às necessidades coletivas11. Sobre o tema, são as palavras de Orlando Gomes:

Estabelecidas essas premissas, pode-se concluir que pela necessidade de abandonar a concepção romana da propriedade, para compatibiliza-la com as finalidades sociais da sociedade contemporânea, adotando-se, como preconiza Andre Piettre, uma concepção finalista, a cuja luz se definam as funções sociais desse direito. No mundo moderno, o direito individual sobre as coisas impõe deveres em proveito da sociedade e ate mesmo no interesse de não proprietário. Quanto tem por objeto bens de produção, sua finalidade social determina a modificação conceitual do próprio direito, que não se confunde com a política de limitações específicas ao seu uso. A despeito, porém, de ser um conceito geral, sua utilização varia conforme a vocação social do bem no qual recai o direito – conforme a intensidade do interesse geral que o delimita e conforme a sua natureza na principal rerum devido tradicional. A propriedade deve ser entendida como função social tanto em relação aos bens imóveis como em relação aos bens móveis. 12

É mister salientar que a função social diz respeito à própria estrutura da propriedade, não sendo apenas um limite ao direito do proprietário. Pelo princípio da predominância do interesse público sobre o interesse privado, deve o particular utilizar a propriedade de maneira racional em prol do bem-estar da sociedade.

Nesse sentido, José Afonso da Silva afirma que:

  O princípio da função social traduz um novo regime jurídico à propriedade, pois incide no próprio conteúdo deste direito como elemento que determina a aquisição, o gozo e utilização; logo, ela só é considerada legítima enquanto considerada propriedade função. 13

Caso o proprietário não venha a proceder de forma a cumprir com a função social, compete ao Poder Público exercer a tutela dos interesses públicos maiores envolvidos, ainda que em prejuízo do interesse individual do particular14. Destarte, pode vir o proprietário a perder a sua propriedade, através da intervenção do Estado.


2.A DESAPROPRIAÇÃO COMO LIMITE AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE PROPRIEDADE

2.1.Intervenção na propriedade privada: o instituto da desapropriação na Constituição de 1988

A propriedade, consagrada no direito pátrio como um direito subjetivo, não é mais um direito absoluto e excessivamente individual, uma vez que passou a ser concebida como um direito com dimensão social. Saindo da era do individualismo exacerbado, e com o advento do Welfare State ou também chamado de Estado de bem estar social, a função social autoriza ao Poder Público intervir, sempre que necessário, na propriedade privada a fim de adequar o seu uso ao interesse público.

A intervenção na propriedade é toda e qualquer atividade do Estado que, obedecendo ao princípio da legalidade, tenha por finalidade ajustar a propriedade à função social a qual ela está atrelada ou condicioná-la ao cumprimento da finalidade de interesse da coletividade. Retira-se a propriedade do particular compulsoriamente ou restringe os seus direitos, tendo em visto um interesse maior: o público.

Assim, segundo Marcelo Beserra:

Quando o direito de propriedade é exercido pelo seu titular de forma egoística e deletéria, trazendo prejuízos a outrem e à sociedade, a propriedade passa a ser uma célula doente na estrutura fundiária ou urbana, o que justifica a intervenção do poder público para fazer o bem convalescer de sua doença e voltar a cumprir sua função social, para atender o bem comum. 15

O direito de propriedade é, portanto, limitado, pois se trata de uma prerrogativa individual que encontra limites nos direitos alheios, com a finalidade de compatibilizar coexistência de ambos, sempre tendo em vista o respeito ao interesse da coletividade. Ademais, o exercício do direito de propriedade de acordo com a função social é um dever para com a sociedade. A sua inobservância enseja a intervenção do Estado, com o escopo de modo a sanar tal enfermidade.

Como assevera José dos Santos Carvalho Filho, “o Estado passa a desempenhar sua função primordial, qual seja, a de atuar conforme os reclamos de interesse público”16. Saliente-se que, em regra, o Estado não intervirá na propriedade do particular, senão nas hipóteses autorizadas pelo ordenamento jurídico.

Diversas são as modalidades de intervenção na propriedade privada. A doutrina moderna as separam em dois grupos: de um lado, a intervenção restritiva, aquela na qual o Estado impõe restrições e condiciona o uso da propriedade, contudo não a retira de seu dono. Nesse grupo, podem-se elencar como exemplos a limitação administrativa, a servidão administrativa, a requisição, bem como a ocupação temporária e o tombamento; de outro lado, a intervenção supressiva, na qual o Estado transfere para si a propriedade de determinado particular, tendo em vista sempre os fundamentos da lei. Tem-se aqui a forma mais drástica de intervenção do Estado, ou seja, aquela que provoca a perda da propriedade.

Nesse sentindo, Kiyoshi Harada afirma que:

No confronto de interesses público e privado, prevalece o primeiro. É o princípio da supremacia do interesse público. O aspecto da perda da propriedade diferencia a desapropriação das limitações ao uso de propriedades, estabelecidas por normas de direito civil (direito de vizinhança) ou por normas de direito público (urbanísticas e administrativas), bem como das requisições de moveis ou imóveis necessárias as forças aramas e a defesa passiva da população. A desapropriação atinge, pois, o caráter perpétuo do direito de propriedade, que fica substituído pela justa indenização, salvo no caso de desapropriação de gleba nociva em que não haverá indenização de espécie alguma. 17

Portanto, a desapropriação, modalidade de intervenção supressiva na propriedade, retrata um conflito máximo entre o Estado e o particular, proprietário, sempre tendo em vista o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

A desapropriação é um instituto do direito público, através do qual o Estado interfere na esfera privada, a ponto de retirar a garantia constitucional da propriedade. Como bem consagra Jose Cretella Junior:

Em sentido genérico, “latíssimo sensu”, desapropriação é complexo de direito público, pelo qual o Estado, fundamentado na necessidade pública, na utilidade pública ou no interesse social, obriga o titular de bem, móvel ou imóvel, a desfazer-se, por transferência, desse bem, mediante recebimento de justa indenização. 18

O autor Celso Antonio Bandeira de Mello conceitua desapropriação como sendo “o procedimento através do qual o Poder Público, compulsoriamente, despoja alguém de uma propriedade e adquire, mediante indenização, fundado em um interesse público”. 19

Trata-se de um procedimento de direito público que, por conseguinte, deve obedecer a uma sequência de atos desenvolvidos na esfera administrativa e judicial. O Estado transfere para si a propriedade de um particular, por motivos de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social. Impende destacar que a desapropriação é um ato unilateral, não dependendo da vontade do particular, uma vez que o Poder Público, compulsoriamente, retira alguém de sua propriedade, normalmente mediante indenização prévia, justa e em dinheiro.

Por sua vez, Marçal Justen Filho define desapropriação como “ato estatal unilateral que produz a extinção da propriedade sobre um bem ou direito e a aquisição do domínio sobre ele pela entidade expropriante, mediante indenização justa”. 20

A competência para legislar sobre desapropriação é privativa da União, como dispõe o artigo 22, II da Constituição Federal. Somente a União possui competência para criar regras jurídicas inovadoras em matéria de desapropriação. O parágrafo único do citado artigo admite que lei complementar venha a autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas em matérias sujeitas à competência privativa da União.

A desapropriação é um ato de duplo efeito, haja vista que causa a extinção do domínio do proprietário e a aquisição de domínio pela entidade expropriante, ou seja, pelo Estado. É uma forma originária de aquisição da propriedade, uma vez que não se origina de nenhum título anterior. Ocorrerá a irreversibilidade da transferência e a extinção dos direitos reais de terceiros sobre a coisa.

Existe um procedimento que a desapropriação deve obedecer, podendo ser efetivada na via administrativa ou na via judicial. Raras são as vezes em que o procedimento se finaliza amigavelmente, quando ocorre um acordo entre o Poder Público e o particular. Na grande maioria das vezes, havendo desacordo, inicia-se a fase judicial, através de ação movida pelo ente público. 21

Na denominada desapropriação comum ou ordinária, a indenização deverá ser realizada antes da consumação da transferência do bem e em dinheiro, devendo ser também justa, ou seja, cujo valor indenizado corresponda ao valor do bem expropriado.

José dos Santos Carvalho Filho destaca que são pressupostos para a desapropriação a utilidade pública, nesta se incluindo a necessidade pública, e o interesse social. A utilidade pública existe quando se verifica a conveniência da transferência do bem para o Estado. Por outro lado, a necessidade pública decorre de situações de emergência. 22

Para o doutrinador administrativista, a noção de necessidade pública já está inserida na de utilidade pública. Arremata afirmando que “esta é mais abrangente que aquela, de modo que se pode dizer que tudo que for necessário será fatalmente útil” 23. Entretanto, existirão desapropriações que serão úteis, mas não necessárias. O artigo 5º de Decreto-Lei 3.365/41 elenca hipóteses de desapropriação por utilidade pública, entre outras: a segurança nacional, a defesa do Estado, o socorro público em caso de calamidade, a salubridade pública, a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência, o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica, etc.

Antonio de Pádua Ferraz Nogueira assevera que:

Realmente, a utilidade (do latim utilitas) pública é de ser retratada, no direito expropriatório, sempre, com a característica de indispensável conveniência, emergente do bem em relação ao uso a lhe ser dado pela administração pública. E a necessidade pública há de decorrer da indispensabilidade, ou da imprescindibilidade do bem a ser aproveitado urgentemente em beneficio da sociedade. 24

A desapropriação por interesse social tem suas hipóteses listadas na Lei 4.132/62 que se destacam a conveniência social da desapropriação e que se evidencia a função social da propriedade. Tem por escopo auxiliar as camadas que vivem à margem da sociedade, com o intuito de melhorar a qualidade de vida e atenuar as desigualdades sociais. A administração pública não tem como objetivo ficar com os bens, mas distribuí-los ou até mesmo vendê-los a particulares que possam promover a função social da propriedade. O exemplo clássico é a reforma agrária e o assentamento de colonos.

No caso de desapropriação para reforma agrária, a competência é exclusiva da União e o proprietário será indenizado mediante títulos de dívida agrária com prazo de até 20 anos, tal como consta no artigo 184 da Carta Maior.

Importante salientar que a desapropriação comum ou ordinária não tem natureza jurídica de penalidade, como ocorre com a desapropriação sancionatória, que também pode decorrer do não cumprimento da função social. Na desapropriação comum, o particular receberá indenização prévia, justa e em dinheiro como assegura a Constituição Federal. Já na desapropriação sancionatória por desrespeito a função social, a indenização ocorrerá através de títulos.

Existem situações nas quais a desapropriação não é possível, a exemplo da propriedade produtiva para fins de reforma agrária que é insuscetível de desapropriação, conforme o artigo 185, II da Constituição Federal. Não se trata de um direito absoluto, uma vez que a desapropriação está impossibilitada para fins de reforma agrária; contudo, o ente público pode se utilizar de outro fundamento para efetivar a desapropriação.

2.3.A desapropriação confiscatória prevista no artigo 243 da Constituição Federal

Dentre as desapropriações sancionatórias, destaca-se a modalidade de desapropriação confiscatória, inovação da Constituição de 1988, visto que as Cartas anteriores não tratavam dessa modalidade que, diferentemente das demais hipóteses de desapropriação não enseja indenização, nem a quaisquer valores que decorram da extinção do direito de propriedade.25 Não há o que se falar em direito à indenização, ao pagamento de juros, correção monetária, honorários advocatícios e benfeitorias. Não versando a espécie sobre desapropriação-confisco e constatado o ato expropriatório dissociado da justa indenização, é de se reconhecer ao particular o direito de recebê-la, cuja composição deve abranger o valor da área desapropriada, juros compensatórios e moratórios, correção monetária e honorários advocatícios.

A desapropriação confiscatória tem previsão no artigo 243 da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe:

As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. 26

Destarte, tal modalidade de expropriação não gera qualquer indenização ao particular proprietário, nem quaisquer valores que decorram da extinção do direito de propriedade.

Para Diógenes Gasparini, a desapropriação confiscatória não é uma modalidade de desapropriação, mas uma penalidade ou confisco imposta ao proprietário que praticou a atividade nociva de cultivar ilegalmente plantas psicotrópicas, tratando-se de um confisco.27

Mesmo com as peculiaridades dessa forma de desapropriação, o Poder Público deverá cumprir com atos consecutivos a fim de concluir a desapropriação, havendo uma restrição ao direito de propriedade que é chamada de desapropriação.

A Lei nº 8.257/1991 regulamentou o dispositivo constitucional e dispõe sobre a expropriação das glebas nas quais se localizem culturas ilegais de plantas psicotrópicas e dá outras providências, trazendo o procedimento judicial aplicável a transferência do imóvel, com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil. Tem também como ato regulamentador o Decreto nº 577/92, que atribui ao INCRA e a Polícia Federal as providências para execução da lei.

O artigo 2º da Lei nº 8.257/91 traz o conceito de plantas psicotrópicas para efeito da desapropriação-confisco: “plantas psicotrópicas são aquelas que permitem a obtenção de substância entorpecente proscritas, plantas estas elencadas no rol emitido pelo órgão sanitário competente do Ministério da Saúde”. O cultivo de plantas psicotrópicas depende de autorização de tal órgão, atendendo exclusivamente as finalidades terapêuticas e cientificas. O artigo 3º da mesma lei dispõe que: “A cultura das plantas psicotrópicas caracteriza-se pelo preparo da terra destinada a semeadura, ou plantio, ou colheita”. Ressalte-se que o caráter ilícito do cultivo de psicotrópicos implicará também em sanções penais.

O cultivo de plantas psicotrópicas não será considerado ilegal quando for autorizado previamente, através de licença, do órgão sanitário do Ministério da Saúde (Serviço Nacional de Fiscalização e Farmácia do Ministério da Saúde), que só permitirá quando a finalidade for terapêutica ou científica. Deste modo, não ocorrerá a expropriação das terras cujo cultivo dessas plantas tenha permissão prévia do Ministério da Saúde e cumpra com os preceitos legais e regulamentares.

O processo da desapropriação confisco é sui generis, pois a primeira fase, chamada de declaratória, comporta característica importante dessa modalidade de desapropriação: a não necessidade de expedição de decreto declaratório prévio, requisito obrigatório para as desapropriações comuns ou ordinárias. Sendo assim, a primeira fase, será limitada a formalização das atividades gerais e as de polícia com a finalidade de preparar a ação de desapropriação. A declaração de utilidade, necessidade pública ou interesse social não encontra guarida na desapropriação confiscatória. Com a localização do cultivo ilegal, a Polícia Federal, depois de efetuar o inquérito policial e o recolhimento de dados necessários, comunicará ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e ao representante judicial a União, para que se promova a ação judicial de expropriação.

Nas demais espécies de desapropriação, o ato declaratório de desapropriação deverá conter a destinação que será dada ao imóvel. Na desapropriação confisco, por não haver ato declaratório, a sua destinação já está prevista no texto da Constituição Federal de 1988, na Lei 8.257/91, bem como no Decreto nº 577/92, que regulam a matéria, ou seja, trata-se de uma destinação vinculada, sem margem de escolha para o administrador público. A destinação será para o assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos.

Impende destacar que o instituto da retrocessão ocorre quando o expropriante não cumpre o fim da desapropriação, cessando seus efeitos pelo desaparecimento da causa do ato jurídico, motivo pelo qual tudo deve retornar ao statu quo ante.28Quando o proprietário reivindica o imóvel expropriado por não ter ido dado a destinação determinada no ato expropriatório ou outra de fim público. A retrocessão não é aplicada na desapropriação confisco, uma vez que a própria Lei 8.257 afirma que se a gleba expropriada não puder ter, dentro de cento e vinte dias, após o transito em julgado da sentença, a destinação específica prevista na lei, o imóvel ficará incorporado ao patrimônio da União, reservado, até que sobrevenham as condições necessárias àquela utilização.

A desapropriação ora em comento tem natureza jurídica de direito real, visto que incide sobre bens imóveis. É uma forma de confisco ou sanção, tendo natureza jurídica de pena, com o escopo de sancionar o uso da propriedade de forma ilegal. É uma desapropriação originária, pois o juiz ao declarar a desapropriação estudada não analisará, em nenhum momento, a existência de justo título ou não, se é de boa fé ou má fé.

O juiz competente para apreciar a matéria será o da Justiça Federal do foro da localidade do imóvel. O sujeito ativo da ação de expropriação será sempre a União, representada pela Advocacia Geral da União. O polo passivo será composto pelo possuidor, posseiro ou ocupante por qualquer título que cultive ilegalmente plantas psicotrópicas. O objeto será o imóvel utilizado para o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas.

O juiz, ao receber a petição inicial, determinará a citação dos expropriados no prazo de cinco dias. Deverá nomear perito para que esse, em oito dias, entregue seu laudo em cartório e poderá intimar o INCRA para que, em nome da União, imitir-se na posse do imóvel. O expropriado terá o prazo de dez dias para contestação e indicação de assistentes técnicos, a contar da data da juntada do mandado de citação aos autos. A defesa não comporta restrição quanto à matéria, tendo em vista o silêncio da lei.

Por fim, o juiz determinará audiência de instrução e julgamento para dentro de quinze dias, a contar da data da contestação29, sendo vedado o adiamento da audiência, salvo por motivo de força maior. Na audiência de instrução e julgamento cada parte poderá indicar até cinco testemunhas, além da prova pericial. Uma vez encerrada a instrução, o juiz prolatará a sentença em cinco dias, cabendo os recursos na forma da lei processual cível.

Esta ação também permite a imissão provisória na posse, que será concedida liminarmente, uma vez observado o contraditório para realização de audiência de justificação. Os ônus reais e obrigacionais, que recaem sobre a gleba expropriada, são extinguidos com a desapropriação, conforme afirma o artigo 17 da Lei nº 8.257/91: “A expropriação de que trata esta lei prevalecerá sobre direitos reais de garantia, não se admitindo embargos de terceiro, fundados em dívida hipotecária, anticrética ou pignoratícia”. Sendo assim, nenhum direito de terceiro pode ser oposto ao expropriante, nem existe qualquer possibilidade de discussão a respeito da reivindicação ou de proliferação desses direitos após o processo expropriatório.

Para José dos Santos Carvalho Filho30, a participação do Ministério Público deverá ser obrigatória, mesmo sendo a lei que regulamenta a matéria omissa nesse aspecto. Destaca o doutrinador que é indiscutível o interesse público na matéria de desapropriação.

A desapropriação confiscatória é inaplicável no tocante aos bens públicos. Por conseguinte, não incide o artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/41 já comentado. Não poderá a União desapropriar bens do Estado, do Distrito Federal e Municípios, nem de autarquias e fundações autárquicas. Em primeiro lugar, uma vez que o referido decreto lei é uma norma de caráter geral, sendo a Lei nº 8.257/91 que regulamenta a desapropriação-confisco uma lei especial, que não traz essa possibilidade no que tange aos bens públicos. Além desse aspecto formal, não é possível que o pressuposto para essa modalidade de desapropriação, qual seja o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, provenha de atividade estatal. Seria inconcebível esperar tal atitude de um ente público.

O recurso cabível à sentença de desapropriação confiscatória será a apelação, nos termos do artigo 513 do Código de Processo Civil. Mesmo com a ausência de apelação os autos serão enviados ao Tribunal de segundo grau para serem apreciados. É a chamada remessa de ofício.

A expropriação de terras tem a natureza jurídica de pena, com o objetivo de sancionar o uso da propriedade, devido ao cultivo de plantas psicotrópicas. Conforme se pode verificar no seguinte julgado: “A expropriação de terras previstas no artigo 243 da Constituição Federal tem natureza jurídica de pena, visando sancionar o uso da propriedade para o cultivo de plantas ilícitas”.31 A desapropriação confisco possui duas finalidades: imediata e mediata. A finalidade imediata se verifica na destinação das terras ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, como prevê o próprio caput do artigo 243, dando função social à propriedade. Já o escopo mediato caracteriza-se na repressão ao cultivo de plantas ilícitas e o combate ao tráfico ilícito de entorpecentes. Ocorrerá também o apreendimento dos bens decorrentes dos tráficos, que serão confiscados e revertidos para o tratamento e recuperação de viciados, assim como para o aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle prevenção e repressão desse crime.

Saliente-se que tanto a Constituição Federal quanto a Lei nº 8.257/91 referiram-se “às glebas de qualquer região do país”, sem fazer qualquer alusão à área total ou parcial. Consequentemente, surge o questionamento se a expropriação alcançará toda a área ou apenas a parte em que há o cultivo de plantas psicotrópicas.

No Recurso Extraordinário nº 543.974 de Minas Gerais, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o proprietário tem o dever de vigilância sobre sua propriedade, reformando por completo o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que havia, em sentindo contrário, decidido pela desapropriação parcial, por entender que, pela literalidade do preceito, que fala em gleba, porção de terra não urbanizada, destinada à agricultura, bem como por razão ao artigo 5º, LIV da Constituição Federal que consagra o devido processo legal, o qual seria violado, caso toda a propriedade fosse confiscada sem indenização devido ao fato de, numa de suas glebas, terem sido localizadas culturas ilegais. Por fim, também alegou o Tribunal Regional Federal da 1ª Região que o confisco da totalidade do imóvel vai de encontro ao princípio da proporcionalidade, pois atingiria de forma desastrada a família do acusado, em violação ao princípio de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado.

Neste sentindo, é oportuno colacionar a ementa da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre referido recurso:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EXPROPRIAÇÃO. GLEBAS. CULTURAS ILEGAIS. PLANTAS PSICOTRÓPICAS. ARTIGO 243 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO. LINGUAGEM DO DIREITO. LINGUAGEM JURÍDICA. ARTIGO 5º, LIV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O CHAMADO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. 1. Gleba, no artigo 243 da Constituição do Brasil, só pode ser entendida como a propriedade na qual sejam localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. O preceito não refere áreas em que sejam cultivadas plantas psicotrópicas, mas as glebas, no seu todo. 2. A gleba expropriada será destinada ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 3. A linguagem jurídica corresponde à linguagem natural, de modo que é nesta, linguagem natural, que se há de buscar o significado das palavras e expressões que se compõem naquela. Cada vocábulo nela assume significado no contexto no qual inserido. O sentido de cada palavra há de ser discernido em cada caso. No seu contexto e em face das circunstâncias do caso. Não se pode atribuir à palavra qualquer sentido distinto do que ela tem em estado de dicionário, ainda que não baste a consulta aos dicionários, ignorando-se o contexto no qual ela é usada, para que esse sentido seja em cada caso discernido. A interpretação/aplicação do direito se faz não apenas a partir de elementos colhidos do texto normativo [mundo do dever-ser], mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de dados da realidade [mundo do ser]. 4. O direito, qual ensinou CARLOS MAXIMILIANO, deve ser interpretado "inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis". 5. O entendimento sufragado no acórdão recorrido não pode ser acolhido, conduzindo ao absurdo de expropriar-se 150 m2 de terra rural para nesses mesmos 150 m2 assentar-se colonos, tendo em vista o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 6. Não violação do preceito veiculado pelo artigo 5º, LIV da Constituição do Brasil e do chamado "princípio" da proporcionalidade. Ausência de "desvio de poder legislativo" Recurso extraordinário a que se dá provimento32.

Destarte, o Supremo Tribunal Federal interpretou que a palavra gleba, prevista no artigo 243 da Constituição Federal, deve ser entendida como propriedade como um todo e não como a área em que sejam cultivados os psicotrópicos. O preceito, deste modo, não refere áreas em que sejam cultivadas culturas ilegais, mas as glebas, no seu todo. Afirmou também que não há que se falar em violação ao princípio do devido processo legal, pois este foi corretamente obervado no caso em apreço, muito menos violação ao princípio da proporcionalidade. Este, na visão do Supremo Tribunal Federal, não se consagra violado, pois fora uma escolha do Poder Constituinte, não cabendo ao Poder Judiciário formular que a expropriação da totalidade da gleba onde for localizado o cultivo ilegal seja desproporcional.

Portanto, extrai-se do julgado ora comentado o entendimento de que desapropriação confisco caracteriza-se como uma repressão ao cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, causadoras de grandes males a sociedade, o que acarreta a desapropriação de toda a propriedade, ultrapassando uma ideia apenas de descumprimento da função social, mas também de combate com o tráfico ilícito de entorpecente, tratando-se de um confisco constitucionalmente assegurado.


3.A DESAPROPRIAÇÃO CONFISCATÓRIA E A ANÁLISE DO REQUISITO SUBJETIVO À LUZ DA RAZOABILIDADE

3.1.Responsabilidade subjetiva ou objetiva do proprietário

A modalidade de desapropriação confiscatória, prevista no artigo 243 da Constituição Federal, apresenta a peculiaridade de haver a indenização prevista, por se tratar de uma sanção aplicada a particular. Ocorre que, quando o proprietário alega e comprova que o cultivo é processado por terceiros, sem o seu conhecimento, ou seja, a sua revelia surge o questionamento: qual seria a medida razoável a ser tomada pelo Poder Público? Desapropriar a totalidade da terra e não indenizar os proprietários que não tiveram dolo ou culpa na plantação de psicotrópicos ou seria cabível a desapropriação tendo em vista a efetividade da Constituição Federal e o não cabimento de análise de requisito subjetivo, uma vez que a desapropriação, nesse caso, configura-se como uma sanção a ser suportada?

O Informativo 587 de maio de 2010 do Supremo Tribunal Federal traz à baila o início do julgamento de dois recursos extraordinários em que se discute se questões de índole subjetiva devem ser consideradas na aplicação do artigo 243 da Constituição Federal.33 Nos referidos recursos extraordinários, a União, não satisfeita com os acórdãos proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que ao julgar os casos, afastara a incidência do referido artigo da Lei Maior, uma vez que no caso concreto os proprietários eram pessoas idosas que não tinha como se defender do plantio ilícito de plantas psicotrópicas em suas terras e que estava sendo promovido por terceiro que tinham fama de serem violentos e andarem armados.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região ainda afirmou que a área em que havia sido realizado o cultivo seria de difícil acesso e que o Estado não oferecia condições para que os moradores, agricultores, pudessem sem sofrer risco comunicar as autoridades sobre o cultivo ilegal de maconha.34 O Min. Dias Toffoli, relator, proveu os recursos para decretar a expropriação dos imóveis em tela. Asseverou que a efetividade da Constituição se imporia. Tendo em conta que a expropriação prevista no artigo 243 da CF seria uma sanção, entendeu que não se exigiria nenhum tipo de análise de caráter subjetivo sobre o proprietário, recaindo a sanção sobre a propriedade. Concluiu pela inviabilidade de se partir para a apreciação subjetiva da conduta do proprietário ou do possuidor da terra — sua culpabilidade —, bastando para a expropriação à existência, no imóvel, de cultura ilegal de plantas psicotrópicas. Os processos encontram-se, atualmente, com a Ministra Carmem Lúcia que pediu vista. 35

A vigilância da propriedade consiste em um dos deveres do proprietário com relação à res. A vigilância está no sentindo de que o proprietário deve tomar conta, atentar, espreitar e velar pela sua propriedade.

Do mesmo modo, justifica-se a imposição da sanção devido ao descumprimento com a função social da propriedade, uma vez que o legislador constituinte considerou mais gravosa a conduta omissiva (ou comissiva) do proprietário que, em se tratando de glebas de terra, permite que no interior do imóvel seja desenvolvida atividade de plantação de culturas de plantas psicotrópicas.

O artigo 243 da Constituição Federal configura-se como uma exceção à garantia fundamental da propriedade privada, um dos pilares da sistemática econômica mundial, baseada na livre iniciativa. O reconhecimento de uma responsabilidade objetiva, sem qualquer exceção devido às circunstancias do caso concreto, no que tange ao conhecimento ou não do cultivo, tem um grande impacto sobre o direito de propriedade. A norma em exame merece uma análise baseada da ponderação de valores, a fim de que se ache a interpretação mais adequada ao caso concreto36.

O dever de vigilância, diante dos casos apresentados, deve sofrer mitigação, tendo em vista que os proprietários idosos, não tinham como se defender do cultivo em suas terras, promovido por terceiros que tinham fama de serem violentos e andarem armados. Do mesmo modo Estado, o próprio Estado não oferecia condições para que os proprietários pudessem sem sofrer risco comunicar as autoridades sobre o cultivo ilegal.

No caso exposto acima, a função social da propriedade estava sendo cumprida pelos proprietários, que não utilizavam a terra com objetivos discrepantes com a sua função social. Ocorre que, à revelia dos proprietários, estava sendo cultivadas, em parte de sua propriedade, plantas psicotrópicas o que, consequentemente, não atua em conformidade com a função social da propriedade e está em sintonia com a criminalidade.

A norma constitucional que tutela a desapropriação confiscatória, através de uma interpretação teleológica, possui a finalidade de punir o criminoso, ou seja, aquele que tinha a intenção de praticar a ilegalidade, mas não aquele que estava de boa-fé. A desapropriação das terras, nessas situações, sem nenhuma indenização, fomenta injustiças.

A intenção do constituinte, quando da elaboração do artigo 243 da Constituição Federal não seria a de determinar a perda de algo utilizado para a realização de um determinado crime, preservando-se os direitos dos terceiros de boa fé? O confisco deve recair somente em objeto pertencente a quem participa da prática do delito, já p lesado ou o terceiro de boa-fé não podem ser prejudicados pelo confisco. Deverá haver a destruição da cultura ilegal e o processamento dos respectivos responsáveis pelo cultivo ilegal de plantas psicotrópicas na esfera penal.

Impende destacar a opinião de um dos grandes administrativistas brasileiros. José dos Santos Carvalho Filho apontando que:

Para nós, a hipótese só vai comportar solução diversa no caso de o proprietário comprovar que o cultivo é processado por terceiros a sua revelia, mas aqui o ônus da prova desse fato se inverte e cabe ao proprietário. Neste caso, parece-nos não se consumar os pressupostos que inspirou essa forma de expropriação. 37

A norma, portanto, dado o seu silêncio e através de uma interpretação sistemática, traz a responsabilidade subjetiva do proprietário como a melhor solução, sendo um requisito básico para a desapropriação-confisco.

Diante da controvérsia acerca da natureza jurídica da responsabilidade do proprietário do imóvel onde foi plantado o vegetal psicotrópico, em 13 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu como repercussão geral o Recurso Extraordinário nº 635.336, que versa sobre a desapropriação confiscatória e a responsabilidade subjetiva do proprietário de terras com cultivo ilegal de plantas psicotrópicas. Foi interposto o recurso contra acórdão do Tribunal Regional da Quinta Região cuja ementa merece reprodução:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. EXPROPRIAÇÃO DE GLABAS. CULTIVO ILEGAL DE PLANTAS PSICOTROPICA S(MACONHA). ART. 243, DA CF/88. LEI Nº 8257/91. DECRETO 577/92. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PROPRIETÁRIO38.

O acórdão julgou procedente a ação de desapropriação proposta pela União, afirmando que a responsabilidade do proprietário deverá ser objetiva, ou seja, independentemente de prova de dolo ou culpa. O recorrente, Ministério Público Federal, alega que a desapropriação confisco exige a demonstração de dolo ou culpa do proprietário, sendo a responsabilidade subjetiva, não sendo objetiva como decidiu o acórdão ora referido.

O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o recurso, na relatoria do Ministro Cezar Peluso, reconheceu a repercussão geral da matéria, uma vez que transcende os limites subjetivos da causa, tendo em vista que se discute a natureza da responsabilidade de proprietário de terras para efeito da expropriação prevista no artigo 243 da Constituição Federal, matéria que envolve o direito fundamental de propriedade, bem como o instituto da expropriação por cultivo de plantas psicotrópicas, de modo que o tema se reveste de inevitável repercussão de ordem geral. Possui a questão, assim, um impacto social e jurídico diante do silêncio da legislação constitucional. Em 16.09.2011 o processo foi distribuído, sendo o atual relator o Ministro Gilmar Mendes.

A União, recorrida no recurso em análise, alegou que o recurso não era revestido de repercussão geral, posto que não ultrapassava os interesses subjetivos envolvidos na causa. Ora, a questão transcende os limites subjetivos, uma vez que se discute a responsabilidade do proprietário para efeito da desapropriação do artigo 243 da Constituição, matéria esta que envolve valores constitucionais importantes: direito fundamental de propriedade e a sua função social. Destarte, foi reconhecida a repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal.

O Ministério Público Federal, parte recorrente no referido Recurso Extraordinário, afirmou que a interpretação dada ao preceito do artigo 243 da Constituição Federal não é a mais adequada, pois traz “em si um grande risco para uma garantia fundamental, como é o caso do direito de propriedade”39. E continuou afirmando que:

Ao estabelecer a perda do direito de propriedade em situações tais, tem a Constituição Federal o claro objetivo de punir pessoas que estão utilizando a terra com objetivos que, além de discrepantes com sua função social, estão em sintonia com a criminalidade que mais prejuízos traz para a população mundial.40

A União alega, em sede de contrarrazões ao recurso extraordinário, que a expropriação das citadas glebas prescinde da demonstração de culpa do proprietário, uma vez que esse tem o dever de tornar sua terra produtiva, cabendo-lhe exercer o dever de vigilância. O Recurso Extraordinário ora em comento encontra-se para ser julgado na Corte.

3.2.A desapropriação confiscatória: uma interpretação razoável

A Constituição goza de um status de supremacia, ou seja, suas normas jurídicas se sobrepõem sobre os demais atos normativos emanados do Estado. Logo, todo o ordenamento jurídico está subordinado a Lex Mater que é composta de normas com um maior grau de abstração. A interpretação constitucional, uma interpretação jurídica, decorre da força normativa da constituição.41

Critérios tradicionais de interpretação são aplicados na solução de eventuais conflitos normativos, são eles: critério hierárquico, temporal e especial. O hierárquico revela que a norma superior prevalece sobre a norma inferior; o temporal traduz a ideia de que a lei posterior prevalece sobre a anterior; o especial significa que a lei especial prevalece sobre a geral. A norma tem a função de oferecer determinada solução para um caso concreto e o juiz deverá identificar, no sistema jurídico, a norma que será aplicável a situação jurídica em análise. O intérprete tem apenas a função técnica de conhecimento e aplicador do direito ao caso concreto, através da subsunção.

É no âmbito do plano teórico do Neoconstitucionalismo que se incorpora uma nova interpretação constitucional.42 Embora os critérios tradicionais resolvam boa parte das questões jurídicas, o que leva a concluir que tal interpretação não foi superada, os operadores do direito perceberam, com o avanço do direito constitucional, que inúmeros problemas jurídicos não são resolvidos a partir desses critérios, comportando uma nova interpretação constitucional, a partir de uma participação maior do intérprete do direito na aplicação da norma ao caso concreto, ao perceber que, nem sempre a solução se encontra na norma jurídica, devendo se fazer valorações com o escopo de encontrar a melhor solução possível.

É no contexto de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais que se insere a razoabilidade. Conforme afirma Luis Roberto Barroso, a razoabilidade tem sua origem ligada à garantia do devido processo legal, instituto do direito anglo-saxão e a Magna Charta de 1215.43 Esse decreto foi formado através de um pacto entre o Rei João e os barões, que revelava a submissão do rei inglês à cláusula Law of land. A consagração da razoabilidade ocorreu com as emendas 5ª e 14ª à Constituição Norte Americana. A 5ª emenda traz o enunciado: “ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal”; a 14ª afirma que: “Nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal”. Destarte, o devido processo legal é uma das fontes de maior expressão na jurisprudência Norte Americana. 44

No direito americano, o devido processo legal se revelou em duas grandes fases que não são sucessivas ou excludentes, mas complementares. A primeira, revestida de um caráter eminentemente processual, rejeitava qualquer conotação substantiva, não permitindo que o Poder Judiciário examinasse o caráter injusto ou não do ato estatal. Bastava uma regularidade processual, composto pelas exigências formais do processo: direito ao contraditório, a ampla defesa, a um processo com duração razoável, dentre outros. Já a segunda fase, de cunho substantivo, desenvolveu um devido processo legal substancial, sendo aquele que não se observam apenas as exigências formais, mas que gera decisões jurídicas substancialmente devidas. Com essa versão de devido processo legal, os direitos fundamentais foram acobertados de um manto protetivo, que ensejava o controle do arbítrio e a discricionariedade do Legislativo.

Diante da perspectiva de um processo substancialmente divido, a noção de discricionariedade é redefinida, abrindo espaço para o exame de mérito dos atos do Estado. No Brasil, assim como já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, a razoabilidade encontra fundamento máximo no devido processo legal45, gerando a necessidade de equilíbrio entre o exercício do poder e a preservação dos direitos fundamentais inerentes a todos os cidadãos. A razoabilidade encontra-se implícita na Constituição de 1988, mas é expressa, como princípio na Lei nº 9.784/99, que define as regras sobre processos administrativos.

Saliente-se que tanto a doutrina, quanto a jurisprudência igualmente ressalta a proporcionalidade, assim como a razoabilidade como exigência do devido processo substancial. Tanto a proporcionalidade, quanto a razoabilidade não se encontram expressas na Constituição Federal de 1988, mas se apresentam como instrumentos essenciais para uma nova interpretação, pautada principalmente na defesa e aplicabilidade dos direitos fundamentais.

Para Barroso, “o princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça”.46 Para o referido autor as noções de razoabilidade e proporcionalidade são substancialmente idênticas, visto que a proporcionalidade, desenvolvida no direito alemão se revela na necessidade de adequação entre meio e fim, na avaliação da necessidade prática do ato e na aferição de seu custo benefício.

Em posicionamento contrário, o autor Virgilio Afonso da Silva afirma que a razoabilidade e proporcionalidade, mesmo que tenham objetivos semelhantes, não são consideradas noções sinônimas. 47

Virgilio Afonso da Silva entende que:

A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direito fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e não é uma simples pauta que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoáveis, nem uma simples analise da relação meio-fim. Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela uma estrutura racionalmente definida, com sub elementos independentes – a analise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade e individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade. 48

Deste modo, para o referido autor, o postulado da proporcionalidade, no entanto, diferencia-se da razoabilidade não apenas na sua origem, como também devido à sua estrutura e forma de aplicação49. A razoabilidade corresponde à primeira das regras da proporcionalidade, isto é, apenas a exigência de adequação. A análise da proporcionalidade não se esgota na compatibilidade entre os meios e os fins, sendo uma análise mais ampla, visto que é necessário analisar a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Para Humberto Ávila, a razoabilidade se caracteriza não como um princípio, mas como um postulado normativo aplicativo, ou seja, como metanormas ou normas de segundo grau, que estruturam a aplicação e prescrevem modos de raciocínio e de argumentação em relação a princípios e regras.50 Os postulados normativos são dirigidos aos aplicadores e intérpretes do direito e se situam no campo da argumentação jurídica, ou seja, não estabelecem um comportamento a ser seguido, como assim faz as regras, nem promovem um ideal das coisas, como os princípios, mas desenvolvem o modo de como deve ser realizado, sendo normas sobre aplicação de normas.

Os dispositivos constitucionais são pontos de partida para a interpretação, não tendo o intérprete apenas a função técnica de aplicador do direito, descrevendo seus significados, mas exercendo um papel de coparticipante do processo de criação do direito, a partir da reconstrução dos sentidos que os dispositivos fornecem, concretizando o ordenamento, na busca da interpretação mais adequada ao caso concreto. Humberto Ávila destaca que os postulados normativos:

[...] estabelecem diretrizes metódicas, em tudo e por tudo exigindo uma aplicação mais complexa que uma operação inicial ou final de subsunção. Se os princípios forem definidos como normas que estabelecem um dever-ser ideal, que podem ser cumpridas em vários graus e, no caso de conflito, podem ter uma dimensão de peso maior ou menos, os postulares não são princípios: eles não estabelecem um dever-ser ideal, não são cumpridos de maneira gradual e, muito menos, possuem peso móvel e circunstancial. Em vez disso, estabelecem diretrizes metódicas, com aplicação estruturante e constante relativamente a outras variáveis. 51

Destarte, o postulado normativo da razoabilidade apresenta-se como utilização necessária à compreensão do ordenamento jurídico, afastando-se uma interpretação pautada apenas na mera lógica formal em busca de soluções que se apresentem como razoáveis com o espírito do sistema jurídico, em decorrência do princípio da justiça. 52

Para Ávila, as noções de razoabilidade e proporcionalidade também são distintas. Diferentemente do autor Virgilio Afonso da Silva, Ávila não trata a razoabilidade como uma relação de causalidade entre meio e fim, afirmando que essa relação cabe ao postulado da proporcionalidade. Para o autor, a razoabilidade é tratada como um dever de harmonização do geral com o individual, noção que trata como equidade; a harmonização do Direito com suas condições externas, afirmando ser um dever de congruência; por ultimo, a noção de razoabilidade como exigência de congruência entre duas grandezas, dever de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona. A proporcionalidade que atua na escolha de fins, meios adequados, necessários e proporcionais. 53

A interpretação do artigo 243 da Constituição Federal, em relação à análise do requisito subjetivo, dolo ou culpa, é de grande relevância considerados os valores constitucionais que estão em jogo: o da propriedade e o da destinação social desta. Diante de uma perspectiva Neoconstitucionalista, na qual os direitos fundamentais não são absolutos e vivem em rota de colisão com os demais direitos, na chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, percebe-se que o direito de propriedade, nestes casos, se prepondera em detrimento do direito que o Estado possui em desapropriar, com fundamento na razoabilidade que deve nortear a interpretação jurisdicional de todas as normas e princípios jurídicos. 54

A razoabilidade como forma de interpretação, desenvolvida a partir de uma nova dogmática de interpretação constitucional, da desapropriação confiscatória revela-se de extrema importância, a fim de que não gere grandes injustiças em muitos casos concretos que a análise do requisito subjetivo do proprietário torna-se imprescindível para a decretação ou não do confisco. Justificativas como a dificuldade de prova do elemento subjetivo do proprietário não podem ser levadas em consideração diante de um bem maior, qual seja o direito a um devido processo legal formal e substancial. O reconhecimento de uma responsabilidade objetiva, sem qualquer situação que a excepcionalize tem um grande impacto sobre o direito de propriedade.

A natureza jurídica da responsabilidade civil do proprietário da gleba no qual foi localizada a cultura ilegal de psicotrópicos não é disposta expressamente na Constituição Federal, o que, consequentemente, acarreta discussão sobre a responsabilização daqueles que não tinham o dolo ou culpa do plantio indevido. Outrossim, a finalidade da norma constitucional revela-se em punir o criminoso, ou seja, aquele que tinha a intenção do cultivo dos psicotrópicos e, por conseguinte, a perda do bem, preservando-se sempre o direito dos terceiros de boa fé. A desapropriação confisco, diante de uma análise objetiva da responsabilidade, fomenta injustiças.

Questiona-se: é razoável penalizar o proprietário, sem que se demonstre culpa ou dolo de sua parte? Sem que se dê oportunidade para um devido processo formal e substancial. A análise da razoabilidade, como parte do devido processo substancial, se faz necessária. É necessário um processo que não apenas observe as exigências formais, mas que, principalmente, gere decisões substancialmente devidas, razoáveis, equilibradas entre o exercício do poder e a garantia dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal.

A razoabilidade supõe o equilíbrio, uma moderação, uma harmonia, sendo fácil de ser sentido diante da análise do caso concreto. Quando analisa sob a forma de que as condições pessoais e individuais dos agentes envolvidos no caso concreto sejam consideradas pela decisão. Ora, diante dos casos relatados, as condições individuais revelam-se como anormais diante da realidade regulada pela lei. A Constituição trata da desapropriação confiscatória com o intuito de punir o criminoso, aquele que tem a intenção de cultivar plantas ilegais ou deixa, por omissão, que o cultivo se estabeleça, sendo as circunstancias de fato consideradas dentro da normalidade. Ocorre que, a análise do requisito subjetivo do proprietário se faz necessária diante da anormalidade de diversos casos concretos, a fim de que haja uma harmonização na norma geral com o caso individual.

A razoabilidade analisada sob o aspecto da adequação entre os meios considerados adequados quando forem aptos a alcançar um resultado pretendido, é de toda forma perceptível que a expropriação como meio de punição não encontra guarida no fim pretendido pela norma constitucional, quando se está diante do cultivo á revelia do proprietário de boa fé. Não é adequado o Estado adotar o meio de expropriar a gleba do proprietário que não teve participação, nem mesmo o conhecimento do cultivo indevido, visto que a finalidade da lei, neste caso, não é alcançada.

Resta claro ainda que o Estado, que tem o dever de garantir segurança, não proporciona condições suficientes para os proprietários, principalmente os mais carentes e idosos, de defesa contra grupos violentos e armados que se utilizam de sua força para o cultivo de plantas ilegais em terras de terceiros, quando estes não têm a intenção, nem mesmo como se defender. Do mesmo modo, muitos casos decorrentes de arrendamento mercantil, admitidos pela lei civil, podem ensejar a plantação indevida, com o desconhecimento do proprietário de boa fé. O Estado que não dá a segurança necessária, nem fiscaliza de forma eficaz a ação de grupos violentos é o mesmo Estado que desapropria, sem indenização, terras de pequenas famílias, de proprietários de boa fé, fomentando injustiças das mais gravíssimas, quando, na verdade, a finalidade da lei é clara: punir aquele que tem o dolo e culpa no cultivo dos psicotrópicos.

Decisões que violem a razoabilidade caracterizam-se como ilegais e ilegítimas. Diante de uma interpretação razoável, a responsabilidade subjetiva é a melhor alternativa, com o escopo de garantir o direito de propriedade e penalizar o criminoso ou o proprietário que anui pelo crime em comento.


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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

SILVA, Jose Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, a. 91, v. 798, abr. 2002, p. 25-50.


Notas

1 “Embora substancialmente os Romanos vissem na proprietas um direito ilimitado, em que se incorporava a liberdade de fazer o dominus o que quisesse, os romanistas ressalvam que tal faculdade podia encontrar limitações provindas de princípios especiais. E efetivamente as limitações existiam. No campo dos conflitos de vizinhança, na instituição de servidões, ou em termo gerais, levantadas aquelas sob a inspiração de um interesse público ou de conveniências particulares”. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil, Vol. IV. 21. ed. Rio de janeiro: Forense, 2012, p. 85,86.

2 “O termo liberalismo engloba o liberalismo político, ao qual estão associadas as doutrinas dos direitos humanos e da divisão dos poderes, e o liberalismo econômico, centrado sobre uma economia de mercado livre (capitalista). Se a sociedade burguesa fornecia o substrato sociológico ao estado constitucional, este, por sua vez, criava condições políticas favoráveis ao desenvolvimento do liberalismo econômico”. (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 109).

3 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das coisas. Coleção história do direito brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2003, v.1, p 127.

4 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Direito das Coisas. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, . v. IV, p. 116.

5 Idem, Ibidem.

6 “Entendo por valor absoluto o estatuto que cabe a pouquíssimos direitos do homem, válidos em todas as situações e para todos os homens sem distinção. Trata-se de um estatuto privilegiado, que depende de uma situação na qual existem direitos fundamentais que não estão em concorrência com outros direitos igualmente fundamentais. É preciso partir da afirmação obvia de que se pode instituir um direito de outras categorias de pessoas. O direito a não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos, assim como do direito de torturar. Esses dois direitos podem ser considerados absolutos, já que a ação que é considerada de sua instituição e proteção é universalmente condenada.” (BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 16. Tir. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 42).

7 MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 47.

8 DIRLEY JÚNIOR, da Cunha. Curso de direito administrativo. 10. ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 37.

9 MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p 55.

10 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Volume V: Direito das Coisas. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 222.

11 “(...) a função social da propriedade não é senão o concreto modo de funcionar a propriedade, seja como exercício, direta ou indiretamente, por meio de imposição de obrigações, encargos, limitações, restrições, estímulos ou ameaças, para a satisfação de uma necessidade social, temporal e especialmente considerada”. (MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 111).

12 GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Atualizador: Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 129.

13 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 249.

14 “Portanto, ao mesmo tempo em que a propriedade é regulamentada como direito individual fundamental, revela-se o interesse público de sua utilização e de seu aproveitamento adequados aos anseios sociais”. (MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 96).

15 BESERRA, Marcelo. Desapropriação no direito brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.11.

16 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 807.

17 HARADA, Kiyoshi. Desapropriação. Doutrina e Prática. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 34.

18 CRETELLA JUNIOR, Jose. Comentários a lei de desapropriação. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 10.

19 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 872.

20 FILHO, Marçal Justen. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 599.

21 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 885.

22 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.809.

23 Ibidem.

24 NOGUEIRA, Antonio de Pádua Ferraz. Desapropriação e urbanismo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981, p. 16.

25 “Trata-se de desapropriação-sanção. No caso, a propriedade, além de não cumprir a função social, que integra a própria estrutura do direito de propriedade, como vimos, está sendo utilizada de forma nociva à sociedade. Tamanha a gravidade da infração, decorrente desse tipo de disfunção social da propriedade, que o legislador constituinte, não satisfeito com a tipificação criminal, impôs ao proprietário a perda dessa propriedade sem direito a qualquer indenização”. (HARADA, Kiyoshi. Desapropriação. Doutrina e Prática. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 66).

26 A Constituição ainda prevê no artigo 243, parágrafo único que: “Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias”.

27 GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 909.

28 “Retrocessão é o ato pelo qual o bem expropriado é reincorporado, mediante devolução da indenização paga na expropriação, ao patrimônio do ex-proprietário, em virtude de não haver sido utilizado na finalidade para a qual fora desapropriado”. (SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 810).

29 Jose dos Santos Carvalho Filho entende que a data da contestação “não tem relevância processual e, por isso, nada prova”. Afirma que deverá ser dada outra interpretação ao dispositivo, no sentido de que “o início do prazo há de ocorrer na data da protocolização formal da contestação no órgão jurisdicional competente. Essa sim tem relevância jurídica, pois que indica o momento formal em que o réu exerceu o contraditório”. (CARVALHO FILHO, Jose dos Santos. Manual de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 891).

30 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 891.

31 BRASIL. Tribunal Regional Federal, 5ª Região, AC n. 171053-PE, 2ª Turma, Rel. Desembargador Araken Mariz, Machado, D.J, 07.04.1995.

32 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE 543.974-MG, Rel. Min. Eros Grau, D.J. 26.03.2009.

33 BRASIL. Superior Tribunal Federal - STF, RE 402839-PE, Rel. Min. Dias Toffoli, D.J. 18.5.2010; STF, RE 436806-PE, Rel. Min. Dias Toffoli, D.J. 18.5.2010.

34 ______.Tribunal Regional Federal – TRF. 5ª Região, AC nº 192900-PE, 2ª Turma, Rel. Desembargador Araken Mariz, D.J. 16.08.2002.

35 BRASIL. Superior Tribunal Federal - STF, RE 402839-PE, Rel. Min. Dias Toffoli, D.J. 18.5.2010; STF, RE 436806-PE, Rel. Min. Dias Toffoli, D.J. 18.5.2010.

36 “O significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente se seu uso e interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir ao texto legal”. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 34).

37 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 890.

38 BRASIL. Tribunal Regional Federal - TRF 5ª Região, AC Nº 442212-PE, Rel. Desembargadora Federal Margarida Cantarelli, 4ª Turma, D.J. 24.03.2010.

39 BRASIL. Supremo Tribunal Federal - STF, RE 635.366-SC. Rel. Min. Cezar Peluso, 27.04.2011, p. 152.

40 BRASIL. Superior Tribunal Federal – STF, RE 635.366-SC. Rel. Min. Cezar Peluso, D.J. 27.04.2011, p. 152.

41 "A hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do direito. A interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto. A aplicação de uma norma jurídica é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato”. (BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 103).

42 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). In: A constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. São Paulo: Lúmen Juris, 2007, p. 209.

43 “De fato sua matriz remonta à clausula Law of land, inscrita na Magna Charta, de 1215, documento que é reconhecido como um dos grandes antecedentes do constitucionalismo” (BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 213).

44 Idem, ibidem.

45 “Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due process of law" (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (BRASIL. RTJ 160/140-141 - RTJ 178/22-24, v.g.):"O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal - STF, RE nº 374.981, Rel. Min. Celso de Mello, D.J. 28.03.2005).

46 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 219.

47 Idem, ibidem.

48 DA SILVA, Luís Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, a. 91, v. 798, abr. 2002, p. 30.

49 “Em primeiro lugar, visto que ambos os conceitos – razoabilidade e proporcionalidade – não se confundem, não há que se falar em proporcionalidade na Magna Carta de 1215. Além disso, é de se questionar até mesmo a afirmação de que a regra da razoabilidade tenha origem nesse documento. Como bem salienta Willis Santiago Guerra Filho, na Inglaterra fala-se em princípio da irrazoabilidade e não em princípio da razoabilidade. E a origem concreta do princípio da irrazoabilidade, na forma como aplicada na Inglaterra, não se encontra no longínquo ano de 1215, nem em nenhum outro documento legislativo posterior, mas em decisão judicial proferida em 1948. E esse teste da irrazoabilidade, conhecido também como teste Wednesbury, implica tão somente rejeitar atos que sejam excepcionalmente irrazoáveis. Na forma clássica da decisão Wednesbury: ‘se uma decisão [...] é de tal forma irrazoável, que nenhuma autoridade razoável a tomaria, então pode a corte intervir’. Percebe-se, portanto, que o teste sobre a irrazoabilidade é muito menos intenso do que os testes que a regra da proporcionalidade exige, destinando-se meramente a afastar atos absurdamente irrazoáveis”. (SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, a. 91, v. 798, abr. 2002, p.29).

50“Os postulados normativos aplicativos são normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação. Assim, qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas, isto é, como metanormas. Daí se dizer que se qualificam como normas de segundo grau. Nesse sentido, sempre que se está diante de um postulado normativo, há uma diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de outras normas. Por trás dos postulados, há sempre outras normas que estão sendo aplicadas”. (ÁVILA, Humberto. Teoria geral dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 243).

51 “Relativamente à razoabilidade, dentre tantas acepções, três se destacam. Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individuais do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referencia, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre dias grandezas”. (Idem, ibidem, p.173).

52

53 ÁVILA, Humberto. Teoria geral dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 180, 181.

54 “(...) o interprete deve interpretar os dispositivos constitucionais de modo a explicitar suas versões de significado de acordo com os fins e os valores entremostrados na linguagem constitucional”. (ÁVILA, Humberto. Teoria geral dos princípios. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 38).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Clarissa Pereira. O dolo ou culpa na desapropriação confiscatória: uma interpretação à luz da razoabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3972, 17 maio 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28540. Acesso em: 25 abr. 2024.