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O dolo ou culpa na desapropriação confiscatória:

uma interpretação à luz da razoabilidade

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17/05/2014 às 16:41
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O Estado, que tem o dever de garantir segurança, não proporciona condições suficientes para os proprietários, principalmente os mais carentes e idosos, de defesa contra grupos violentos e armados que se utilizam de sua força para o cultivo de plantas ilegais em terras de terceiros.

Resumo:O direito de propriedade tem garantia constitucional e é condicionado ao cumprimento da sua função social, não sendo mais ilimitado, tendo em vista a consagração do interesse público sobre o privado. Nesse contexto se insere o instituto da desapropriação, intervenção supressiva na propriedade. O artigo 243 da Constituição Federal de 1988 estatui a desapropriação confiscatória. A Constituição é silente no que diz respeito à análise do dolo ou culpa do proprietário que não tem conhecimento do cultivo de ilícitos em sua propriedade, motivo de divergência na doutrina e jurisprudência, sendo o objeto do presente trabalho. A razoabilidade, enquanto parâmetro hermenêutico, afasta uma interpretação baseada apenas na lógica formal, e busca uma relação com o espírito do sistema jurídico.


1.A PROPRIEDADE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL LIMITADO

1.1.Evolução histórica do direito fundamental de propriedade

A evolução histórica da propriedade é de extrema importância para analisar o contexto atual que a propriedade se insere e suas limitações. A história da propriedade encontra-se intimamente relacionada com a organização política das sociedades. Existe uma nítida influência do regime político sobre o modelamento da tipicidade dominial. Por conseguinte, a propriedade individual é vista como padrão de direito subjetivo nos regimes capitalistas, e contrapondo-se a ela existe a propriedade coletiva, predominantemente vigente em regimes socialistas.

A Revolução Francesa trouxe à baila o ideal romano de domínio individual e absoluto da res. A expressão romana dominium ex iuri quiritium designava adesão à propriedade de forma plena e exclusiva, sendo uma prerrogativa de forma absoluta e ilimitada1. Com o surgimento do capitalismo e o início das revoluções industriais, a concepção individualista da propriedade chega ao seu auge.

O capitalismo se sustentava em dois pilares: o da propriedade e o da liberdade. Uma nova ideologia surgira: o liberalismo, baseado na igualdade formal das pessoas perante a lei, e pautado num Estado não intervencionista.2 Importava apenas a aquisição de bens por parte do particular, sem contar com a participação da coletividade, sendo justificada pela intensificação da produtividade e lucros, com respaldo na exacerbada autonomia privada.

Politicamente, o Estado Liberal foi concebido como uma estrutura de poder absenteísta na qual não existe espaço par qualquer intervenção do poder público na atividade econômica, ou seja, a existência de um estado mínimo cuja função principal é assistir de longe o desenvolvimento da dinâmica social. Do ponto de vista econômico, o modelo liberal clássico consagra as regras de auto regulação do mercado compreendida a partir da metáfora da mão invisível.

Com a crise do Estado Liberal surgiu o denominado Estado Providência. Surge a necessidade de um Estado Social, com prestações positivas por parte do Estado, capaz de amparar e proporcionar melhorias para os hipossuficientes, privados de acesso a bens mínimos de sobrevivência. Vem à tona o Estado Social, também conhecido como Estado Providência ou o Welfare State, o Estado do bem-estar social. A realização dos direitos depende, assim, de uma superação do absenteísmo liberal e a consagração de uma forte intervenção na atividade econômica. É nesse contexto que se insere o Constitucionalismo Social.

A partir desse momento, a propriedade deixa de ser ilimitada e passa a ser compatibilizada com o interesse social, ou seja, da coletividade, tendo o Estado o papel de garantidor. O individualismo exacerbado, portanto, perde a sua força e surge o sentido social da propriedade.

Inicialmente, trata-se o direito de propriedade como um direito individual, sendo assegurado ao seu titular diversos poderes de natureza privada, dentre os quais se podem destacar: usar, usufruir, dispor, gozar e reaver um bem de maneira absoluta, exclusiva e perpétua. O direito de propriedade caracteriza-se como o direito mais amplo e complexo dentre os direitos subjetivos, por ser um feixe de poderes nas mãos do titular.

Trata-se de uma relação jurídica complexa formada entre o titular do bem, o proprietário, e a coletividade. O artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988 afirma ser a propriedade um direito fundamental, ao lado da vida, liberdade, igualdade e a segurança. A propriedade como um direito fundamental existe como função à proteção pessoal do titular, já que existe uma garantia da autonomia privada em caráter erga omnes, ou seja, a satisfação da propriedade exercida pelo seu titular exige um comportamento abstencionista por parte da coletividade.

Clóvis Beviláqua conceitua a propriedade como sendo o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida física e moral.3

O caráter absoluto da propriedade garante ao proprietário o direito de dispor da coisa como ele bem entender. O absolutismo do direito de propriedade não é integral, visto que, até mesmo os direitos que integram, tradicionalmente, o rol de absolutos vem se tornando mais relativos. Deste modo, o direito de propriedade está sujeito à algumas limitações impostas pelo direito público, bem como pelo direito de propriedade das outras pessoas. 4

É também de caráter exclusivo, uma vez que é exercido de forma individual, não podendo pertencer com exclusividade por mais de uma pessoa. O direito de propriedade proíbe que terceiros, não proprietários, exerçam o direito de senhoria sobre o bem. No mesmo lapso temporal, duas ou mais pessoas não podem exercer com exclusividade o direito de propriedade sobre a coisa, tendo o proprietário direito de ação reivindicatória caso haja interferência na sua propriedade. O direito de propriedade existe independentemente do seu exercício, enquanto não houver causas que o modifique ou extinga, sendo transmitida por direito hereditário. 5

Por isso, a doutrina tradicional classifica-o como um direito perpétuo. Neste sentido, o direito de propriedade apenas se extingue pela vontade do dono, ou por disposição expressa legal, nos casos de perecimento da coisa, desapropriação ou usucapião.

1.2.Limites à propriedade privada: entre o cumprimento da função social e a supremacia do interesse público sobre o privado

O direito de propriedade tem garantia constitucional, conforme dicção do artigo 5º, XXII da Constituição Federal. Entretanto, a própria Carta Maior exige, em contraponto, que a propriedade atenda a função social, como estabelece o inciso XXIII do artigo 5º. O atual contexto da propriedade, portanto, se insere em um direito fundamental condicionado, limitado pela própria Constituição que o garante, devendo cumprir com a sua função social.

Destarte, depreende-se que o direito de propriedade não pode ser visto, hodiernamente, como um direito absoluto. Impende destacar que nenhum direito fundamental é absoluto, embora o ilustre filósofo Noberto Bobbio afirme que o qualificativo de absoluto cabe a pouquíssimos direitos, como a vedação à escravidão e à tortura. 6 Os direitos fundamentais são limitados pelos demais direitos presentes na Constituição e também pelas normas infraconstitucionais que limitam o seu sentido.

Dentro da perspectiva de limitação a direitos fundamentais, principalmente no que tange à propriedade, destaca-se o principal vetor para a sua restrição: o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello7, o direito administrativo se delineia em função da consagração de dois princípios: o da supremacia do interesse público sobre o privado, e o da indisponibilidade, pela administração dos bens públicos. O primeiro se refere à superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados nos seus direitos e bens. O segundo parte do pressuposto de que a Administração possui poderes-deveres, ou seja, lhe são concedidos determinados poderes como meios para o alcance de uma finalidade previamente estabelecida, que é defesa do interesse público, e não da entidade governamental em mesma consideradas.

Dirley da Cunha Jr. destaca que:

Na doutrina italiana é corrente a distinção entre interesses públicos primários, que são os interesses da coletividade como um todo e interesse públicos secundários, que são os interesses do estado como sujeito de direitos, independentemente de sua qualidade se servidor de interesses de terceiros. 8

Ocorre que o princípio ora referido, da supremacia do interesse público sobre o privado, somente se aplica aos públicos primários, uma vez que são os únicos que podem ser tratados como verdadeiros interesses públicos. Estes correspondem ao conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente possuem quando considerados em sua qualidade como membros da sociedade.

Na lição de Celso Antonio Bandeira de Melo “os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da sociedade”. 9

Deste modo, os interesses públicos secundários apenas serão compreendidos como interesse público quando corresponderem aos interesses primários.

O direito de propriedade sempre foi contemplado em todas as Constituições do Brasil. A Constituição do Império foi inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude, trazendo um caráter eminentemente individualista. Apenas em 1967, apareceu textualmente a função social, como princípio de ordem econômica. Assim afirma Carlos Roberto Gonçalves:

O princípio da função social tem controvertida origem. Teria sido, segundo alguns, formulado por Augusto Comte e postulado por Léon Duguit, no começo do século. Em virtude da influência que a sua obra exerceu nos autores latinos, Duguit é considerado o precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para o qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto á gestão dos seus bens, como um funcionário.10

A expressão função social deriva do latim functio que significa cumprir algo ou desempenhar um dever ou uma atividade. O direito à propriedade, portanto, encontra-se condicionado ao cumprimento da sua função social, que surgiu com as mudanças ocorridas no conceito de propriedade, deixando de ser um direito absoluto, inviolável, para atender às necessidades coletivas11. Sobre o tema, são as palavras de Orlando Gomes:

Estabelecidas essas premissas, pode-se concluir que pela necessidade de abandonar a concepção romana da propriedade, para compatibiliza-la com as finalidades sociais da sociedade contemporânea, adotando-se, como preconiza Andre Piettre, uma concepção finalista, a cuja luz se definam as funções sociais desse direito. No mundo moderno, o direito individual sobre as coisas impõe deveres em proveito da sociedade e ate mesmo no interesse de não proprietário. Quanto tem por objeto bens de produção, sua finalidade social determina a modificação conceitual do próprio direito, que não se confunde com a política de limitações específicas ao seu uso. A despeito, porém, de ser um conceito geral, sua utilização varia conforme a vocação social do bem no qual recai o direito – conforme a intensidade do interesse geral que o delimita e conforme a sua natureza na principal rerum devido tradicional. A propriedade deve ser entendida como função social tanto em relação aos bens imóveis como em relação aos bens móveis. 12

É mister salientar que a função social diz respeito à própria estrutura da propriedade, não sendo apenas um limite ao direito do proprietário. Pelo princípio da predominância do interesse público sobre o interesse privado, deve o particular utilizar a propriedade de maneira racional em prol do bem-estar da sociedade.

Nesse sentido, José Afonso da Silva afirma que:

  O princípio da função social traduz um novo regime jurídico à propriedade, pois incide no próprio conteúdo deste direito como elemento que determina a aquisição, o gozo e utilização; logo, ela só é considerada legítima enquanto considerada propriedade função.13

Caso o proprietário não venha a proceder de forma a cumprir com a função social, compete ao Poder Público exercer a tutela dos interesses públicos maiores envolvidos, ainda que em prejuízo do interesse individual do particular14. Destarte, pode vir o proprietário a perder a sua propriedade, através da intervenção do Estado.


2.A DESAPROPRIAÇÃO COMO LIMITE AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE PROPRIEDADE

2.1.Intervenção na propriedade privada: o instituto da desapropriação na Constituição de 1988

A propriedade, consagrada no direito pátrio como um direito subjetivo, não é mais um direito absoluto e excessivamente individual, uma vez que passou a ser concebida como um direito com dimensão social. Saindo da era do individualismo exacerbado, e com o advento do Welfare State ou também chamado de Estado de bem estar social, a função social autoriza ao Poder Público intervir, sempre que necessário, na propriedade privada a fim de adequar o seu uso ao interesse público.

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A intervenção na propriedade é toda e qualquer atividade do Estado que, obedecendo ao princípio da legalidade, tenha por finalidade ajustar a propriedade à função social a qual ela está atrelada ou condicioná-la ao cumprimento da finalidade de interesse da coletividade. Retira-se a propriedade do particular compulsoriamente ou restringe os seus direitos, tendo em visto um interesse maior: o público.

Assim, segundo Marcelo Beserra:

Quando o direito de propriedade é exercido pelo seu titular de forma egoística e deletéria, trazendo prejuízos a outrem e à sociedade, a propriedade passa a ser uma célula doente na estrutura fundiária ou urbana, o que justifica a intervenção do poder público para fazer o bem convalescer de sua doença e voltar a cumprir sua função social, para atender o bem comum. 15

O direito de propriedade é, portanto, limitado, pois se trata de uma prerrogativa individual que encontra limites nos direitos alheios, com a finalidade de compatibilizar coexistência de ambos, sempre tendo em vista o respeito ao interesse da coletividade. Ademais, o exercício do direito de propriedade de acordo com a função social é um dever para com a sociedade. A sua inobservância enseja a intervenção do Estado, com o escopo de modo a sanar tal enfermidade.

Como assevera José dos Santos Carvalho Filho, “o Estado passa a desempenhar sua função primordial, qual seja, a de atuar conforme os reclamos de interesse público”16. Saliente-se que, em regra, o Estado não intervirá na propriedade do particular, senão nas hipóteses autorizadas pelo ordenamento jurídico.

Diversas são as modalidades de intervenção na propriedade privada. A doutrina moderna as separam em dois grupos: de um lado, a intervenção restritiva, aquela na qual o Estado impõe restrições e condiciona o uso da propriedade, contudo não a retira de seu dono. Nesse grupo, podem-se elencar como exemplos a limitação administrativa, a servidão administrativa, a requisição, bem como a ocupação temporária e o tombamento; de outro lado, a intervenção supressiva, na qual o Estado transfere para si a propriedade de determinado particular, tendo em vista sempre os fundamentos da lei. Tem-se aqui a forma mais drástica de intervenção do Estado, ou seja, aquela que provoca a perda da propriedade.

Nesse sentindo, Kiyoshi Harada afirma que:

No confronto de interesses público e privado, prevalece o primeiro. É o princípio da supremacia do interesse público. O aspecto da perda da propriedade diferencia a desapropriação das limitações ao uso de propriedades, estabelecidas por normas de direito civil (direito de vizinhança) ou por normas de direito público (urbanísticas e administrativas), bem como das requisições de moveis ou imóveis necessárias as forças aramas e a defesa passiva da população. A desapropriação atinge, pois, o caráter perpétuo do direito de propriedade, que fica substituído pela justa indenização, salvo no caso de desapropriação de gleba nociva em que não haverá indenização de espécie alguma. 17

Portanto, a desapropriação, modalidade de intervenção supressiva na propriedade, retrata um conflito máximo entre o Estado e o particular, proprietário, sempre tendo em vista o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

A desapropriação é um instituto do direito público, através do qual o Estado interfere na esfera privada, a ponto de retirar a garantia constitucional da propriedade. Como bem consagra Jose Cretella Junior:

Em sentido genérico, “latíssimo sensu”, desapropriação é complexo de direito público, pelo qual o Estado, fundamentado na necessidade pública, na utilidade pública ou no interesse social, obriga o titular de bem, móvel ou imóvel, a desfazer-se, por transferência, desse bem, mediante recebimento de justa indenização. 18

O autor Celso Antonio Bandeira de Mello conceitua desapropriação como sendo “o procedimento através do qual o Poder Público, compulsoriamente, despoja alguém de uma propriedade e adquire, mediante indenização, fundado em um interesse público”. 19

Trata-se de um procedimento de direito público que, por conseguinte, deve obedecer a uma sequência de atos desenvolvidos na esfera administrativa e judicial. O Estado transfere para si a propriedade de um particular, por motivos de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social. Impende destacar que a desapropriação é um ato unilateral, não dependendo da vontade do particular, uma vez que o Poder Público, compulsoriamente, retira alguém de sua propriedade, normalmente mediante indenização prévia, justa e em dinheiro.

Por sua vez, Marçal Justen Filho define desapropriação como “ato estatal unilateral que produz a extinção da propriedade sobre um bem ou direito e a aquisição do domínio sobre ele pela entidade expropriante, mediante indenização justa”. 20

A competência para legislar sobre desapropriação é privativa da União, como dispõe o artigo 22, II da Constituição Federal. Somente a União possui competência para criar regras jurídicas inovadoras em matéria de desapropriação. O parágrafo único do citado artigo admite que lei complementar venha a autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas em matérias sujeitas à competência privativa da União.

A desapropriação é um ato de duplo efeito, haja vista que causa a extinção do domínio do proprietário e a aquisição de domínio pela entidade expropriante, ou seja, pelo Estado. É uma forma originária de aquisição da propriedade, uma vez que não se origina de nenhum título anterior. Ocorrerá a irreversibilidade da transferência e a extinção dos direitos reais de terceiros sobre a coisa.

Existe um procedimento que a desapropriação deve obedecer, podendo ser efetivada na via administrativa ou na via judicial. Raras são as vezes em que o procedimento se finaliza amigavelmente, quando ocorre um acordo entre o Poder Público e o particular. Na grande maioria das vezes, havendo desacordo, inicia-se a fase judicial, através de ação movida pelo ente público. 21

Na denominada desapropriação comum ou ordinária, a indenização deverá ser realizada antes da consumação da transferência do bem e em dinheiro, devendo ser também justa, ou seja, cujo valor indenizado corresponda ao valor do bem expropriado.

José dos Santos Carvalho Filho destaca que são pressupostos para a desapropriação a utilidade pública, nesta se incluindo a necessidade pública, e o interesse social. A utilidade pública existe quando se verifica a conveniência da transferência do bem para o Estado. Por outro lado, a necessidade pública decorre de situações de emergência. 22

Para o doutrinador administrativista, a noção de necessidade pública já está inserida na de utilidade pública. Arremata afirmando que “esta é mais abrangente que aquela, de modo que se pode dizer que tudo que for necessário será fatalmente útil” 23. Entretanto, existirão desapropriações que serão úteis, mas não necessárias. O artigo 5º de Decreto-Lei 3.365/41 elenca hipóteses de desapropriação por utilidade pública, entre outras: a segurança nacional, a defesa do Estado, o socorro público em caso de calamidade, a salubridade pública, a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência, o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica, etc.

Antonio de Pádua Ferraz Nogueira assevera que:

Realmente, a utilidade (do latim utilitas) pública é de ser retratada, no direito expropriatório, sempre, com a característica de indispensável conveniência, emergente do bem em relação ao uso a lhe ser dado pela administração pública. E a necessidade pública há de decorrer da indispensabilidade, ou da imprescindibilidade do bem a ser aproveitado urgentemente em beneficio da sociedade. 24

A desapropriação por interesse social tem suas hipóteses listadas na Lei 4.132/62 que se destacam a conveniência social da desapropriação e que se evidencia a função social da propriedade. Tem por escopo auxiliar as camadas que vivem à margem da sociedade, com o intuito de melhorar a qualidade de vida e atenuar as desigualdades sociais. A administração pública não tem como objetivo ficar com os bens, mas distribuí-los ou até mesmo vendê-los a particulares que possam promover a função social da propriedade. O exemplo clássico é a reforma agrária e o assentamento de colonos.

No caso de desapropriação para reforma agrária, a competência é exclusiva da União e o proprietário será indenizado mediante títulos de dívida agrária com prazo de até 20 anos, tal como consta no artigo 184 da Carta Maior.

Importante salientar que a desapropriação comum ou ordinária não tem natureza jurídica de penalidade, como ocorre com a desapropriação sancionatória, que também pode decorrer do não cumprimento da função social. Na desapropriação comum, o particular receberá indenização prévia, justa e em dinheiro como assegura a Constituição Federal. Já na desapropriação sancionatória por desrespeito a função social, a indenização ocorrerá através de títulos.

Existem situações nas quais a desapropriação não é possível, a exemplo da propriedade produtiva para fins de reforma agrária que é insuscetível de desapropriação, conforme o artigo 185, II da Constituição Federal. Não se trata de um direito absoluto, uma vez que a desapropriação está impossibilitada para fins de reforma agrária; contudo, o ente público pode se utilizar de outro fundamento para efetivar a desapropriação.

2.3.A desapropriação confiscatória prevista no artigo 243 da Constituição Federal

Dentre as desapropriações sancionatórias, destaca-se a modalidade de desapropriação confiscatória, inovação da Constituição de 1988, visto que as Cartas anteriores não tratavam dessa modalidade que, diferentemente das demais hipóteses de desapropriação não enseja indenização, nem a quaisquer valores que decorram da extinção do direito de propriedade.25 Não há o que se falar em direito à indenização, ao pagamento de juros, correção monetária, honorários advocatícios e benfeitorias. Não versando a espécie sobre desapropriação-confisco e constatado o ato expropriatório dissociado da justa indenização, é de se reconhecer ao particular o direito de recebê-la, cuja composição deve abranger o valor da área desapropriada, juros compensatórios e moratórios, correção monetária e honorários advocatícios.

A desapropriação confiscatória tem previsão no artigo 243 da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe:

As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. 26

Destarte, tal modalidade de expropriação não gera qualquer indenização ao particular proprietário, nem quaisquer valores que decorram da extinção do direito de propriedade.

Para Diógenes Gasparini, a desapropriação confiscatória não é uma modalidade de desapropriação, mas uma penalidade ou confisco imposta ao proprietário que praticou a atividade nociva de cultivar ilegalmente plantas psicotrópicas, tratando-se de um confisco.27

Mesmo com as peculiaridades dessa forma de desapropriação, o Poder Público deverá cumprir com atos consecutivos a fim de concluir a desapropriação, havendo uma restrição ao direito de propriedade que é chamada de desapropriação.

A Lei nº 8.257/1991 regulamentou o dispositivo constitucional e dispõe sobre a expropriação das glebas nas quais se localizem culturas ilegais de plantas psicotrópicas e dá outras providências, trazendo o procedimento judicial aplicável a transferência do imóvel, com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil. Tem também como ato regulamentador o Decreto nº 577/92, que atribui ao INCRA e a Polícia Federal as providências para execução da lei.

O artigo 2º da Lei nº 8.257/91 traz o conceito de plantas psicotrópicas para efeito da desapropriação-confisco: “plantas psicotrópicas são aquelas que permitem a obtenção de substância entorpecente proscritas, plantas estas elencadas no rol emitido pelo órgão sanitário competente do Ministério da Saúde”. O cultivo de plantas psicotrópicas depende de autorização de tal órgão, atendendo exclusivamente as finalidades terapêuticas e cientificas. O artigo 3º da mesma lei dispõe que: “A cultura das plantas psicotrópicas caracteriza-se pelo preparo da terra destinada a semeadura, ou plantio, ou colheita”. Ressalte-se que o caráter ilícito do cultivo de psicotrópicos implicará também em sanções penais.

O cultivo de plantas psicotrópicas não será considerado ilegal quando for autorizado previamente, através de licença, do órgão sanitário do Ministério da Saúde (Serviço Nacional de Fiscalização e Farmácia do Ministério da Saúde), que só permitirá quando a finalidade for terapêutica ou científica. Deste modo, não ocorrerá a expropriação das terras cujo cultivo dessas plantas tenha permissão prévia do Ministério da Saúde e cumpra com os preceitos legais e regulamentares.

O processo da desapropriação confisco é sui generis, pois a primeira fase, chamada de declaratória, comporta característica importante dessa modalidade de desapropriação: a não necessidade de expedição de decreto declaratório prévio, requisito obrigatório para as desapropriações comuns ou ordinárias. Sendo assim, a primeira fase, será limitada a formalização das atividades gerais e as de polícia com a finalidade de preparar a ação de desapropriação. A declaração de utilidade, necessidade pública ou interesse social não encontra guarida na desapropriação confiscatória. Com a localização do cultivo ilegal, a Polícia Federal, depois de efetuar o inquérito policial e o recolhimento de dados necessários, comunicará ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e ao representante judicial a União, para que se promova a ação judicial de expropriação.

Nas demais espécies de desapropriação, o ato declaratório de desapropriação deverá conter a destinação que será dada ao imóvel. Na desapropriação confisco, por não haver ato declaratório, a sua destinação já está prevista no texto da Constituição Federal de 1988, na Lei 8.257/91, bem como no Decreto nº 577/92, que regulam a matéria, ou seja, trata-se de uma destinação vinculada, sem margem de escolha para o administrador público. A destinação será para o assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos.

Impende destacar que o instituto da retrocessão ocorre quando o expropriante não cumpre o fim da desapropriação, cessando seus efeitos pelo desaparecimento da causa do ato jurídico, motivo pelo qual tudo deve retornar ao statu quo ante.28Quando o proprietário reivindica o imóvel expropriado por não ter ido dado a destinação determinada no ato expropriatório ou outra de fim público. A retrocessão não é aplicada na desapropriação confisco, uma vez que a própria Lei 8.257 afirma que se a gleba expropriada não puder ter, dentro de cento e vinte dias, após o transito em julgado da sentença, a destinação específica prevista na lei, o imóvel ficará incorporado ao patrimônio da União, reservado, até que sobrevenham as condições necessárias àquela utilização.

A desapropriação ora em comento tem natureza jurídica de direito real, visto que incide sobre bens imóveis. É uma forma de confisco ou sanção, tendo natureza jurídica de pena, com o escopo de sancionar o uso da propriedade de forma ilegal. É uma desapropriação originária, pois o juiz ao declarar a desapropriação estudada não analisará, em nenhum momento, a existência de justo título ou não, se é de boa fé ou má fé.

O juiz competente para apreciar a matéria será o da Justiça Federal do foro da localidade do imóvel. O sujeito ativo da ação de expropriação será sempre a União, representada pela Advocacia Geral da União. O polo passivo será composto pelo possuidor, posseiro ou ocupante por qualquer título que cultive ilegalmente plantas psicotrópicas. O objeto será o imóvel utilizado para o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas.

O juiz, ao receber a petição inicial, determinará a citação dos expropriados no prazo de cinco dias. Deverá nomear perito para que esse, em oito dias, entregue seu laudo em cartório e poderá intimar o INCRA para que, em nome da União, imitir-se na posse do imóvel. O expropriado terá o prazo de dez dias para contestação e indicação de assistentes técnicos, a contar da data da juntada do mandado de citação aos autos. A defesa não comporta restrição quanto à matéria, tendo em vista o silêncio da lei.

Por fim, o juiz determinará audiência de instrução e julgamento para dentro de quinze dias, a contar da data da contestação29, sendo vedado o adiamento da audiência, salvo por motivo de força maior. Na audiência de instrução e julgamento cada parte poderá indicar até cinco testemunhas, além da prova pericial. Uma vez encerrada a instrução, o juiz prolatará a sentença em cinco dias, cabendo os recursos na forma da lei processual cível.

Esta ação também permite a imissão provisória na posse, que será concedida liminarmente, uma vez observado o contraditório para realização de audiência de justificação. Os ônus reais e obrigacionais, que recaem sobre a gleba expropriada, são extinguidos com a desapropriação, conforme afirma o artigo 17 da Lei nº 8.257/91: “A expropriação de que trata esta lei prevalecerá sobre direitos reais de garantia, não se admitindo embargos de terceiro, fundados em dívida hipotecária, anticrética ou pignoratícia”. Sendo assim, nenhum direito de terceiro pode ser oposto ao expropriante, nem existe qualquer possibilidade de discussão a respeito da reivindicação ou de proliferação desses direitos após o processo expropriatório.

Para José dos Santos Carvalho Filho30, a participação do Ministério Público deverá ser obrigatória, mesmo sendo a lei que regulamenta a matéria omissa nesse aspecto. Destaca o doutrinador que é indiscutível o interesse público na matéria de desapropriação.

A desapropriação confiscatória é inaplicável no tocante aos bens públicos. Por conseguinte, não incide o artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/41 já comentado. Não poderá a União desapropriar bens do Estado, do Distrito Federal e Municípios, nem de autarquias e fundações autárquicas. Em primeiro lugar, uma vez que o referido decreto lei é uma norma de caráter geral, sendo a Lei nº 8.257/91 que regulamenta a desapropriação-confisco uma lei especial, que não traz essa possibilidade no que tange aos bens públicos. Além desse aspecto formal, não é possível que o pressuposto para essa modalidade de desapropriação, qual seja o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, provenha de atividade estatal. Seria inconcebível esperar tal atitude de um ente público.

O recurso cabível à sentença de desapropriação confiscatória será a apelação, nos termos do artigo 513 do Código de Processo Civil. Mesmo com a ausência de apelação os autos serão enviados ao Tribunal de segundo grau para serem apreciados. É a chamada remessa de ofício.

A expropriação de terras tem a natureza jurídica de pena, com o objetivo de sancionar o uso da propriedade, devido ao cultivo de plantas psicotrópicas. Conforme se pode verificar no seguinte julgado: “A expropriação de terras previstas no artigo 243 da Constituição Federal tem natureza jurídica de pena, visando sancionar o uso da propriedade para o cultivo de plantas ilícitas”.31 A desapropriação confisco possui duas finalidades: imediata e mediata. A finalidade imediata se verifica na destinação das terras ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, como prevê o próprio caput do artigo 243, dando função social à propriedade. Já o escopo mediato caracteriza-se na repressão ao cultivo de plantas ilícitas e o combate ao tráfico ilícito de entorpecentes. Ocorrerá também o apreendimento dos bens decorrentes dos tráficos, que serão confiscados e revertidos para o tratamento e recuperação de viciados, assim como para o aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle prevenção e repressão desse crime.

Saliente-se que tanto a Constituição Federal quanto a Lei nº 8.257/91 referiram-se “às glebas de qualquer região do país”, sem fazer qualquer alusão à área total ou parcial. Consequentemente, surge o questionamento se a expropriação alcançará toda a área ou apenas a parte em que há o cultivo de plantas psicotrópicas.

No Recurso Extraordinário nº 543.974 de Minas Gerais, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o proprietário tem o dever de vigilância sobre sua propriedade, reformando por completo o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que havia, em sentindo contrário, decidido pela desapropriação parcial, por entender que, pela literalidade do preceito, que fala em gleba, porção de terra não urbanizada, destinada à agricultura, bem como por razão ao artigo 5º, LIV da Constituição Federal que consagra o devido processo legal, o qual seria violado, caso toda a propriedade fosse confiscada sem indenização devido ao fato de, numa de suas glebas, terem sido localizadas culturas ilegais. Por fim, também alegou o Tribunal Regional Federal da 1ª Região que o confisco da totalidade do imóvel vai de encontro ao princípio da proporcionalidade, pois atingiria de forma desastrada a família do acusado, em violação ao princípio de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado.

Neste sentindo, é oportuno colacionar a ementa da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre referido recurso:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EXPROPRIAÇÃO. GLEBAS. CULTURAS ILEGAIS. PLANTAS PSICOTRÓPICAS. ARTIGO 243 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO. LINGUAGEM DO DIREITO. LINGUAGEM JURÍDICA. ARTIGO 5º, LIV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O CHAMADO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. 1. Gleba, no artigo 243 da Constituição do Brasil, só pode ser entendida como a propriedade na qual sejam localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. O preceito não refere áreas em que sejam cultivadas plantas psicotrópicas, mas as glebas, no seu todo. 2. A gleba expropriada será destinada ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 3. A linguagem jurídica corresponde à linguagem natural, de modo que é nesta, linguagem natural, que se há de buscar o significado das palavras e expressões que se compõem naquela. Cada vocábulo nela assume significado no contexto no qual inserido. O sentido de cada palavra há de ser discernido em cada caso. No seu contexto e em face das circunstâncias do caso. Não se pode atribuir à palavra qualquer sentido distinto do que ela tem em estado de dicionário, ainda que não baste a consulta aos dicionários, ignorando-se o contexto no qual ela é usada, para que esse sentido seja em cada caso discernido. A interpretação/aplicação do direito se faz não apenas a partir de elementos colhidos do texto normativo [mundo do dever-ser], mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de dados da realidade [mundo do ser]. 4. O direito, qual ensinou CARLOS MAXIMILIANO, deve ser interpretado "inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis". 5. O entendimento sufragado no acórdão recorrido não pode ser acolhido, conduzindo ao absurdo de expropriar-se 150 m2 de terra rural para nesses mesmos 150 m2 assentar-se colonos, tendo em vista o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 6. Não violação do preceito veiculado pelo artigo 5º, LIV da Constituição do Brasil e do chamado "princípio" da proporcionalidade. Ausência de "desvio de poder legislativo" Recurso extraordinário a que se dá provimento32.

Destarte, o Supremo Tribunal Federal interpretou que a palavra gleba, prevista no artigo 243 da Constituição Federal, deve ser entendida como propriedade como um todo e não como a área em que sejam cultivados os psicotrópicos. O preceito, deste modo, não refere áreas em que sejam cultivadas culturas ilegais, mas as glebas, no seu todo. Afirmou também que não há que se falar em violação ao princípio do devido processo legal, pois este foi corretamente obervado no caso em apreço, muito menos violação ao princípio da proporcionalidade. Este, na visão do Supremo Tribunal Federal, não se consagra violado, pois fora uma escolha do Poder Constituinte, não cabendo ao Poder Judiciário formular que a expropriação da totalidade da gleba onde for localizado o cultivo ilegal seja desproporcional.

Portanto, extrai-se do julgado ora comentado o entendimento de que desapropriação confisco caracteriza-se como uma repressão ao cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, causadoras de grandes males a sociedade, o que acarreta a desapropriação de toda a propriedade, ultrapassando uma ideia apenas de descumprimento da função social, mas também de combate com o tráfico ilícito de entorpecente, tratando-se de um confisco constitucionalmente assegurado.

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Sobre a autora
Clarissa Pereira Borges

Aluna do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Clarissa Pereira. O dolo ou culpa na desapropriação confiscatória:: uma interpretação à luz da razoabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3972, 17 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28540. Acesso em: 22 dez. 2024.

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