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O dolo ou culpa na desapropriação confiscatória:

uma interpretação à luz da razoabilidade

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17/05/2014 às 16:41
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3.A DESAPROPRIAÇÃO CONFISCATÓRIA E A ANÁLISE DO REQUISITO SUBJETIVO À LUZ DA RAZOABILIDADE

3.1.Responsabilidade subjetiva ou objetiva do proprietário

A modalidade de desapropriação confiscatória, prevista no artigo 243 da Constituição Federal, apresenta a peculiaridade de haver a indenização prevista, por se tratar de uma sanção aplicada a particular. Ocorre que, quando o proprietário alega e comprova que o cultivo é processado por terceiros, sem o seu conhecimento, ou seja, a sua revelia surge o questionamento: qual seria a medida razoável a ser tomada pelo Poder Público? Desapropriar a totalidade da terra e não indenizar os proprietários que não tiveram dolo ou culpa na plantação de psicotrópicos ou seria cabível a desapropriação tendo em vista a efetividade da Constituição Federal e o não cabimento de análise de requisito subjetivo, uma vez que a desapropriação, nesse caso, configura-se como uma sanção a ser suportada?

O Informativo 587 de maio de 2010 do Supremo Tribunal Federal traz à baila o início do julgamento de dois recursos extraordinários em que se discute se questões de índole subjetiva devem ser consideradas na aplicação do artigo 243 da Constituição Federal.33 Nos referidos recursos extraordinários, a União, não satisfeita com os acórdãos proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que ao julgar os casos, afastara a incidência do referido artigo da Lei Maior, uma vez que no caso concreto os proprietários eram pessoas idosas que não tinha como se defender do plantio ilícito de plantas psicotrópicas em suas terras e que estava sendo promovido por terceiro que tinham fama de serem violentos e andarem armados.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região ainda afirmou que a área em que havia sido realizado o cultivo seria de difícil acesso e que o Estado não oferecia condições para que os moradores, agricultores, pudessem sem sofrer risco comunicar as autoridades sobre o cultivo ilegal de maconha.34 O Min. Dias Toffoli, relator, proveu os recursos para decretar a expropriação dos imóveis em tela. Asseverou que a efetividade da Constituição se imporia. Tendo em conta que a expropriação prevista no artigo 243 da CF seria uma sanção, entendeu que não se exigiria nenhum tipo de análise de caráter subjetivo sobre o proprietário, recaindo a sanção sobre a propriedade. Concluiu pela inviabilidade de se partir para a apreciação subjetiva da conduta do proprietário ou do possuidor da terra — sua culpabilidade —, bastando para a expropriação à existência, no imóvel, de cultura ilegal de plantas psicotrópicas. Os processos encontram-se, atualmente, com a Ministra Carmem Lúcia que pediu vista. 35

A vigilância da propriedade consiste em um dos deveres do proprietário com relação à res. A vigilância está no sentindo de que o proprietário deve tomar conta, atentar, espreitar e velar pela sua propriedade.

Do mesmo modo, justifica-se a imposição da sanção devido ao descumprimento com a função social da propriedade, uma vez que o legislador constituinte considerou mais gravosa a conduta omissiva (ou comissiva) do proprietário que, em se tratando de glebas de terra, permite que no interior do imóvel seja desenvolvida atividade de plantação de culturas de plantas psicotrópicas.

O artigo 243 da Constituição Federal configura-se como uma exceção à garantia fundamental da propriedade privada, um dos pilares da sistemática econômica mundial, baseada na livre iniciativa. O reconhecimento de uma responsabilidade objetiva, sem qualquer exceção devido às circunstancias do caso concreto, no que tange ao conhecimento ou não do cultivo, tem um grande impacto sobre o direito de propriedade. A norma em exame merece uma análise baseada da ponderação de valores, a fim de que se ache a interpretação mais adequada ao caso concreto36.

O dever de vigilância, diante dos casos apresentados, deve sofrer mitigação, tendo em vista que os proprietários idosos, não tinham como se defender do cultivo em suas terras, promovido por terceiros que tinham fama de serem violentos e andarem armados. Do mesmo modo Estado, o próprio Estado não oferecia condições para que os proprietários pudessem sem sofrer risco comunicar as autoridades sobre o cultivo ilegal.

No caso exposto acima, a função social da propriedade estava sendo cumprida pelos proprietários, que não utilizavam a terra com objetivos discrepantes com a sua função social. Ocorre que, à revelia dos proprietários, estava sendo cultivadas, em parte de sua propriedade, plantas psicotrópicas o que, consequentemente, não atua em conformidade com a função social da propriedade e está em sintonia com a criminalidade.

A norma constitucional que tutela a desapropriação confiscatória, através de uma interpretação teleológica, possui a finalidade de punir o criminoso, ou seja, aquele que tinha a intenção de praticar a ilegalidade, mas não aquele que estava de boa-fé. A desapropriação das terras, nessas situações, sem nenhuma indenização, fomenta injustiças.

A intenção do constituinte, quando da elaboração do artigo 243 da Constituição Federal não seria a de determinar a perda de algo utilizado para a realização de um determinado crime, preservando-se os direitos dos terceiros de boa fé? O confisco deve recair somente em objeto pertencente a quem participa da prática do delito, já p lesado ou o terceiro de boa-fé não podem ser prejudicados pelo confisco. Deverá haver a destruição da cultura ilegal e o processamento dos respectivos responsáveis pelo cultivo ilegal de plantas psicotrópicas na esfera penal.

Impende destacar a opinião de um dos grandes administrativistas brasileiros. José dos Santos Carvalho Filho apontando que:

Para nós, a hipótese só vai comportar solução diversa no caso de o proprietário comprovar que o cultivo é processado por terceiros a sua revelia, mas aqui o ônus da prova desse fato se inverte e cabe ao proprietário. Neste caso, parece-nos não se consumar os pressupostos que inspirou essa forma de expropriação. 37

A norma, portanto, dado o seu silêncio e através de uma interpretação sistemática, traz a responsabilidade subjetiva do proprietário como a melhor solução, sendo um requisito básico para a desapropriação-confisco.

Diante da controvérsia acerca da natureza jurídica da responsabilidade do proprietário do imóvel onde foi plantado o vegetal psicotrópico, em 13 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu como repercussão geral o Recurso Extraordinário nº 635.336, que versa sobre a desapropriação confiscatória e a responsabilidade subjetiva do proprietário de terras com cultivo ilegal de plantas psicotrópicas. Foi interposto o recurso contra acórdão do Tribunal Regional da Quinta Região cuja ementa merece reprodução:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. EXPROPRIAÇÃO DE GLABAS. CULTIVO ILEGAL DE PLANTAS PSICOTROPICA S(MACONHA). ART. 243, DA CF/88. LEI Nº 8257/91. DECRETO 577/92. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PROPRIETÁRIO38.

O acórdão julgou procedente a ação de desapropriação proposta pela União, afirmando que a responsabilidade do proprietário deverá ser objetiva, ou seja, independentemente de prova de dolo ou culpa. O recorrente, Ministério Público Federal, alega que a desapropriação confisco exige a demonstração de dolo ou culpa do proprietário, sendo a responsabilidade subjetiva, não sendo objetiva como decidiu o acórdão ora referido.

O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o recurso, na relatoria do Ministro Cezar Peluso, reconheceu a repercussão geral da matéria, uma vez que transcende os limites subjetivos da causa, tendo em vista que se discute a natureza da responsabilidade de proprietário de terras para efeito da expropriação prevista no artigo 243 da Constituição Federal, matéria que envolve o direito fundamental de propriedade, bem como o instituto da expropriação por cultivo de plantas psicotrópicas, de modo que o tema se reveste de inevitável repercussão de ordem geral. Possui a questão, assim, um impacto social e jurídico diante do silêncio da legislação constitucional. Em 16.09.2011 o processo foi distribuído, sendo o atual relator o Ministro Gilmar Mendes.

A União, recorrida no recurso em análise, alegou que o recurso não era revestido de repercussão geral, posto que não ultrapassava os interesses subjetivos envolvidos na causa. Ora, a questão transcende os limites subjetivos, uma vez que se discute a responsabilidade do proprietário para efeito da desapropriação do artigo 243 da Constituição, matéria esta que envolve valores constitucionais importantes: direito fundamental de propriedade e a sua função social. Destarte, foi reconhecida a repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal.

O Ministério Público Federal, parte recorrente no referido Recurso Extraordinário, afirmou que a interpretação dada ao preceito do artigo 243 da Constituição Federal não é a mais adequada, pois traz “em si um grande risco para uma garantia fundamental, como é o caso do direito de propriedade”39. E continuou afirmando que:

Ao estabelecer a perda do direito de propriedade em situações tais, tem a Constituição Federal o claro objetivo de punir pessoas que estão utilizando a terra com objetivos que, além de discrepantes com sua função social, estão em sintonia com a criminalidade que mais prejuízos traz para a população mundial.40

A União alega, em sede de contrarrazões ao recurso extraordinário, que a expropriação das citadas glebas prescinde da demonstração de culpa do proprietário, uma vez que esse tem o dever de tornar sua terra produtiva, cabendo-lhe exercer o dever de vigilância. O Recurso Extraordinário ora em comento encontra-se para ser julgado na Corte.

3.2.A desapropriação confiscatória: uma interpretação razoável

A Constituição goza de um status de supremacia, ou seja, suas normas jurídicas se sobrepõem sobre os demais atos normativos emanados do Estado. Logo, todo o ordenamento jurídico está subordinado a Lex Mater que é composta de normas com um maior grau de abstração. A interpretação constitucional, uma interpretação jurídica, decorre da força normativa da constituição.41

Critérios tradicionais de interpretação são aplicados na solução de eventuais conflitos normativos, são eles: critério hierárquico, temporal e especial. O hierárquico revela que a norma superior prevalece sobre a norma inferior; o temporal traduz a ideia de que a lei posterior prevalece sobre a anterior; o especial significa que a lei especial prevalece sobre a geral. A norma tem a função de oferecer determinada solução para um caso concreto e o juiz deverá identificar, no sistema jurídico, a norma que será aplicável a situação jurídica em análise. O intérprete tem apenas a função técnica de conhecimento e aplicador do direito ao caso concreto, através da subsunção.

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É no âmbito do plano teórico do Neoconstitucionalismo que se incorpora uma nova interpretação constitucional.42 Embora os critérios tradicionais resolvam boa parte das questões jurídicas, o que leva a concluir que tal interpretação não foi superada, os operadores do direito perceberam, com o avanço do direito constitucional, que inúmeros problemas jurídicos não são resolvidos a partir desses critérios, comportando uma nova interpretação constitucional, a partir de uma participação maior do intérprete do direito na aplicação da norma ao caso concreto, ao perceber que, nem sempre a solução se encontra na norma jurídica, devendo se fazer valorações com o escopo de encontrar a melhor solução possível.

É no contexto de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais que se insere a razoabilidade. Conforme afirma Luis Roberto Barroso, a razoabilidade tem sua origem ligada à garantia do devido processo legal, instituto do direito anglo-saxão e a Magna Charta de 1215.43 Esse decreto foi formado através de um pacto entre o Rei João e os barões, que revelava a submissão do rei inglês à cláusula Law of land. A consagração da razoabilidade ocorreu com as emendas 5ª e 14ª à Constituição Norte Americana. A 5ª emenda traz o enunciado: “ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal”; a 14ª afirma que: “Nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal”. Destarte, o devido processo legal é uma das fontes de maior expressão na jurisprudência Norte Americana. 44

No direito americano, o devido processo legal se revelou em duas grandes fases que não são sucessivas ou excludentes, mas complementares. A primeira, revestida de um caráter eminentemente processual, rejeitava qualquer conotação substantiva, não permitindo que o Poder Judiciário examinasse o caráter injusto ou não do ato estatal. Bastava uma regularidade processual, composto pelas exigências formais do processo: direito ao contraditório, a ampla defesa, a um processo com duração razoável, dentre outros. Já a segunda fase, de cunho substantivo, desenvolveu um devido processo legal substancial, sendo aquele que não se observam apenas as exigências formais, mas que gera decisões jurídicas substancialmente devidas. Com essa versão de devido processo legal, os direitos fundamentais foram acobertados de um manto protetivo, que ensejava o controle do arbítrio e a discricionariedade do Legislativo.

Diante da perspectiva de um processo substancialmente divido, a noção de discricionariedade é redefinida, abrindo espaço para o exame de mérito dos atos do Estado. No Brasil, assim como já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, a razoabilidade encontra fundamento máximo no devido processo legal45, gerando a necessidade de equilíbrio entre o exercício do poder e a preservação dos direitos fundamentais inerentes a todos os cidadãos. A razoabilidade encontra-se implícita na Constituição de 1988, mas é expressa, como princípio na Lei nº 9.784/99, que define as regras sobre processos administrativos.

Saliente-se que tanto a doutrina, quanto a jurisprudência igualmente ressalta a proporcionalidade, assim como a razoabilidade como exigência do devido processo substancial. Tanto a proporcionalidade, quanto a razoabilidade não se encontram expressas na Constituição Federal de 1988, mas se apresentam como instrumentos essenciais para uma nova interpretação, pautada principalmente na defesa e aplicabilidade dos direitos fundamentais.

Para Barroso, “o princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça”.46 Para o referido autor as noções de razoabilidade e proporcionalidade são substancialmente idênticas, visto que a proporcionalidade, desenvolvida no direito alemão se revela na necessidade de adequação entre meio e fim, na avaliação da necessidade prática do ato e na aferição de seu custo benefício.

Em posicionamento contrário, o autor Virgilio Afonso da Silva afirma que a razoabilidade e proporcionalidade, mesmo que tenham objetivos semelhantes, não são consideradas noções sinônimas. 47

Virgilio Afonso da Silva entende que:

A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direito fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e não é uma simples pauta que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoáveis, nem uma simples analise da relação meio-fim. Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela uma estrutura racionalmente definida, com sub elementos independentes – a analise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade e individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade. 48

Deste modo, para o referido autor, o postulado da proporcionalidade, no entanto, diferencia-se da razoabilidade não apenas na sua origem, como também devido à sua estrutura e forma de aplicação49. A razoabilidade corresponde à primeira das regras da proporcionalidade, isto é, apenas a exigência de adequação. A análise da proporcionalidade não se esgota na compatibilidade entre os meios e os fins, sendo uma análise mais ampla, visto que é necessário analisar a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Para Humberto Ávila, a razoabilidade se caracteriza não como um princípio, mas como um postulado normativo aplicativo, ou seja, como metanormas ou normas de segundo grau, que estruturam a aplicação e prescrevem modos de raciocínio e de argumentação em relação a princípios e regras.50 Os postulados normativos são dirigidos aos aplicadores e intérpretes do direito e se situam no campo da argumentação jurídica, ou seja, não estabelecem um comportamento a ser seguido, como assim faz as regras, nem promovem um ideal das coisas, como os princípios, mas desenvolvem o modo de como deve ser realizado, sendo normas sobre aplicação de normas.

Os dispositivos constitucionais são pontos de partida para a interpretação, não tendo o intérprete apenas a função técnica de aplicador do direito, descrevendo seus significados, mas exercendo um papel de coparticipante do processo de criação do direito, a partir da reconstrução dos sentidos que os dispositivos fornecem, concretizando o ordenamento, na busca da interpretação mais adequada ao caso concreto. Humberto Ávila destaca que os postulados normativos:

[...] estabelecem diretrizes metódicas, em tudo e por tudo exigindo uma aplicação mais complexa que uma operação inicial ou final de subsunção. Se os princípios forem definidos como normas que estabelecem um dever-ser ideal, que podem ser cumpridas em vários graus e, no caso de conflito, podem ter uma dimensão de peso maior ou menos, os postulares não são princípios: eles não estabelecem um dever-ser ideal, não são cumpridos de maneira gradual e, muito menos, possuem peso móvel e circunstancial. Em vez disso, estabelecem diretrizes metódicas, com aplicação estruturante e constante relativamente a outras variáveis. 51

Destarte, o postulado normativo da razoabilidade apresenta-se como utilização necessária à compreensão do ordenamento jurídico, afastando-se uma interpretação pautada apenas na mera lógica formal em busca de soluções que se apresentem como razoáveis com o espírito do sistema jurídico, em decorrência do princípio da justiça. 52

Para Ávila, as noções de razoabilidade e proporcionalidade também são distintas. Diferentemente do autor Virgilio Afonso da Silva, Ávila não trata a razoabilidade como uma relação de causalidade entre meio e fim, afirmando que essa relação cabe ao postulado da proporcionalidade. Para o autor, a razoabilidade é tratada como um dever de harmonização do geral com o individual, noção que trata como equidade; a harmonização do Direito com suas condições externas, afirmando ser um dever de congruência; por ultimo, a noção de razoabilidade como exigência de congruência entre duas grandezas, dever de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona. A proporcionalidade que atua na escolha de fins, meios adequados, necessários e proporcionais. 53

A interpretação do artigo 243 da Constituição Federal, em relação à análise do requisito subjetivo, dolo ou culpa, é de grande relevância considerados os valores constitucionais que estão em jogo: o da propriedade e o da destinação social desta. Diante de uma perspectiva Neoconstitucionalista, na qual os direitos fundamentais não são absolutos e vivem em rota de colisão com os demais direitos, na chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, percebe-se que o direito de propriedade, nestes casos, se prepondera em detrimento do direito que o Estado possui em desapropriar, com fundamento na razoabilidade que deve nortear a interpretação jurisdicional de todas as normas e princípios jurídicos. 54

A razoabilidade como forma de interpretação, desenvolvida a partir de uma nova dogmática de interpretação constitucional, da desapropriação confiscatória revela-se de extrema importância, a fim de que não gere grandes injustiças em muitos casos concretos que a análise do requisito subjetivo do proprietário torna-se imprescindível para a decretação ou não do confisco. Justificativas como a dificuldade de prova do elemento subjetivo do proprietário não podem ser levadas em consideração diante de um bem maior, qual seja o direito a um devido processo legal formal e substancial. O reconhecimento de uma responsabilidade objetiva, sem qualquer situação que a excepcionalize tem um grande impacto sobre o direito de propriedade.

A natureza jurídica da responsabilidade civil do proprietário da gleba no qual foi localizada a cultura ilegal de psicotrópicos não é disposta expressamente na Constituição Federal, o que, consequentemente, acarreta discussão sobre a responsabilização daqueles que não tinham o dolo ou culpa do plantio indevido. Outrossim, a finalidade da norma constitucional revela-se em punir o criminoso, ou seja, aquele que tinha a intenção do cultivo dos psicotrópicos e, por conseguinte, a perda do bem, preservando-se sempre o direito dos terceiros de boa fé. A desapropriação confisco, diante de uma análise objetiva da responsabilidade, fomenta injustiças.

Questiona-se: é razoável penalizar o proprietário, sem que se demonstre culpa ou dolo de sua parte? Sem que se dê oportunidade para um devido processo formal e substancial. A análise da razoabilidade, como parte do devido processo substancial, se faz necessária. É necessário um processo que não apenas observe as exigências formais, mas que, principalmente, gere decisões substancialmente devidas, razoáveis, equilibradas entre o exercício do poder e a garantia dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal.

A razoabilidade supõe o equilíbrio, uma moderação, uma harmonia, sendo fácil de ser sentido diante da análise do caso concreto. Quando analisa sob a forma de que as condições pessoais e individuais dos agentes envolvidos no caso concreto sejam consideradas pela decisão. Ora, diante dos casos relatados, as condições individuais revelam-se como anormais diante da realidade regulada pela lei. A Constituição trata da desapropriação confiscatória com o intuito de punir o criminoso, aquele que tem a intenção de cultivar plantas ilegais ou deixa, por omissão, que o cultivo se estabeleça, sendo as circunstancias de fato consideradas dentro da normalidade. Ocorre que, a análise do requisito subjetivo do proprietário se faz necessária diante da anormalidade de diversos casos concretos, a fim de que haja uma harmonização na norma geral com o caso individual.

A razoabilidade analisada sob o aspecto da adequação entre os meios considerados adequados quando forem aptos a alcançar um resultado pretendido, é de toda forma perceptível que a expropriação como meio de punição não encontra guarida no fim pretendido pela norma constitucional, quando se está diante do cultivo á revelia do proprietário de boa fé. Não é adequado o Estado adotar o meio de expropriar a gleba do proprietário que não teve participação, nem mesmo o conhecimento do cultivo indevido, visto que a finalidade da lei, neste caso, não é alcançada.

Resta claro ainda que o Estado, que tem o dever de garantir segurança, não proporciona condições suficientes para os proprietários, principalmente os mais carentes e idosos, de defesa contra grupos violentos e armados que se utilizam de sua força para o cultivo de plantas ilegais em terras de terceiros, quando estes não têm a intenção, nem mesmo como se defender. Do mesmo modo, muitos casos decorrentes de arrendamento mercantil, admitidos pela lei civil, podem ensejar a plantação indevida, com o desconhecimento do proprietário de boa fé. O Estado que não dá a segurança necessária, nem fiscaliza de forma eficaz a ação de grupos violentos é o mesmo Estado que desapropria, sem indenização, terras de pequenas famílias, de proprietários de boa fé, fomentando injustiças das mais gravíssimas, quando, na verdade, a finalidade da lei é clara: punir aquele que tem o dolo e culpa no cultivo dos psicotrópicos.

Decisões que violem a razoabilidade caracterizam-se como ilegais e ilegítimas. Diante de uma interpretação razoável, a responsabilidade subjetiva é a melhor alternativa, com o escopo de garantir o direito de propriedade e penalizar o criminoso ou o proprietário que anui pelo crime em comento.

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Sobre a autora
Clarissa Pereira Borges

Aluna do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Clarissa Pereira. O dolo ou culpa na desapropriação confiscatória:: uma interpretação à luz da razoabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3972, 17 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28540. Acesso em: 5 nov. 2024.

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