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Proto-filtros-conceituais para leitura do NCPC/2015 (Parte 3)

Proto-filtros-conceituais para leitura do NCPC/2015 (Parte 3)

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Digressões para um horizonte hermenêutico na leitura do NCPC2015

Parte III

(…) as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa. (…) a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia). (…) É esse gosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo.  Roland Barthes[1]

(…) no mundo não há nada duradouro, e por isso a alegria no minuto seguinte já não é tão viva como no primeiro; no terceiro minuto ela se torna ainda mais fraca, e por fim se funde imperceptivelmente com o estado habitual da alma, como o círculo formado na água pela queda de uma pedra acaba se fundindo com a superfície plana.(…) Nilolai Gógol.[2]

Terminamos a “Parte II” destas digressões falando do direito de ação no estado constitucional.

Trataremos agora, na terceira e última parte destas digressões, da jurisdição e do processo.

A jurisdição em sua concepção clássica (seja na visão de Chiovenda que se resumia na aplicação da lei ao caso concreto pelo modelo subsuntivo, onde a lei genérica e abstrata não considerava a realidade, as desigualdades sociais e o pluralismo, numa típica visão do estado liberal; seja na visão de Carnelutti onde o juiz criava norma individual para regular o caso concreto com fundamento na norma geral) não basta para que possamos compreendê-la na acepção do estado constitucional.

Devemos ter por certo que o estado constitucional preza pelo respeito incondicional aos direitos fundamentais como corolário direto do princípio da dignidade da pessoa humana, deste modo, há um reenquadramento das funções típicas estatais (executiva, legislativa e jurisdicional) aos preceitos constitucionais (seja não contrariando a constituição, seja procurando interpretar todo o ordenamento sob o filtro constitucional.)[3] [4]

Não que a lei tenha perdido seu valor ou sua importância no estado constitucional tenha se tornada diminuta, na verdade, apenas mudou-se de paradigma[5] com o fito de adequar a aplicação do ordenamento à realidade social e suas necessidades, sob a ótica, repito, da dignidade humana, ou de um mínimo existencial à vida do homem em sociedade.

Cabe ao juiz, então, depois de perceber as peculiaridades do caso concreto e apreendê-lo sob a prescrição da legislação ordinária, procurar o significado desta norma[6] [7] à luz da constituição e atribuir-lhe significado constitucional sempre embebecido pelo ideal de justiça e pelos direitos fundamentais, logo, antes de objetivar atribuir significado aos preceitos da constituição, a interpretação visa conferir significado ao direito material.

A jurisdição também deve ser vista e estudada a partir da perspectiva do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Corroborando com o que explanamos na “parte II” sobre o direito de ação, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide também sobre o legislador e o juiz, adequando, adaptando o procedimento e consequentemente o processo.

As técnicas processuais incidirão sobre as particularidades do caso concreto identificando as tutelas e conduzindo a melhor forma de proteger o direito material, onde a omissão do legislador não legitima a omissão do juiz.

Assim, a identificação das necessidades do caso concreto e a escolha da técnica processual apropriada para lhe dar resguardo devem ser justificadas mediante argumentação racional capaz de convencer, ou seja, mais do que definir as necessidades do caso e explicar o motivo pelo qual escolheu a técnica processual utilizada, o juiz deve estabelecer uma relação racional entre as necessidades do caso concreto, o significado da tutela jurisdicional no plano substancial (que nada mais é do que a expressão da tutela prometida pelo direito material) e a técnica processual.[8]

José Carlos Barbosa Moreira[9] aponta cinco requisitos para que o processo possa atender as condições de efetividade: (i) o processo deve dispor de instrumentos de tutela adequados a todos os direitos assegurados pela ordem jurídica, inclusive aos direitos fundamentais positivados na forma de princípios e aos direitos fundamentais adstritos (implícitos); (ii) estes instrumentos de tutela devem ser praticamente utilizáveis por todos os titulares de direitos, indiscriminadamente, sejam eles sujeitos individuais ou uma coletividade (direitos difusos e coletivos); (iii) deve-se assegurar o direito à ampla produção de provas capazes de influir no convencimento do julgador, bem como o juiz deve adotar uma postura ativa na atividade instrutória; (iv) o resultado do processo deve assegurar à parte vitoriosa o gozo efetivo do bem da vida a que tem direito – essa perspectiva remete à clássica formulação chiovendiana “Il processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha um diritto tutto quello e Proprio quello ch’egli ha diritto di conseguire” – e, por fim, (v) o processo deve atingir o melhor resultado possível com o mínimo dispêndio de tempo e energia.[10]

Pois bem, necessário ainda não deixarmos de destacar a importância da legitimação da atuação jurisdicional através do procedimento sob a ótica dos direitos fundamentais.

O procedimento enquanto exteriorização material do processo é importante instituto do direito processual que legitima a decisão do juiz pela participação das partes. Ao juiz não se permite a inércia mental em não sorver do caso sob apreciação a condição propicia para aplicação do conteúdo material dos direitos fundamentais. A participação no procedimento em nenhuma hipótese deve se contrapor à proteção do conteúdo substancial dos direitos fundamentais como critério de legitimidade da decisão judicial, afinal, esse processo participativo não é capaz de permitir que se deixe de lado o poder-dever (rectius: dever-poder)[11] de o juiz apontar para o conteúdo substancial dos direitos fundamentais para dar tutela jurisdicional aos direitos.

A mera observância do procedimento ou a simples participação não são suficientes para conferir legitimidade à decisão. É preciso que a jurisdição tenha o poder de apontar para o fundamento material do direito fundamental para poder negar a lei que com ele se choca, ou para comungar numa sistêmica interpretação do ordenamento.

Percuciente, por todos, são as palavras de Aroldo Plínio Gonçalves ao lecionar que o processo tem por finalidade proteger os direitos substanciais; que a instrumentalidade técnica do processo requer mais do que a garantia de participação das partes, requer que essa participação se dê em contraditório, com igualdade de oportunidades; e que o processo, como procedimento realizado em contraditório entre as partes, cumpre sua finalidade garantindo a emanação de uma sentença participada, onde seus destinatários já não precisam recear pelas preferências ideológicas dos juízes, porque, participando do iter da formação do ato final, terão sua dignidade e sua liberdade reconhecidas e poderão compreender que um direito é assegurado, uma condenação é imposta, ou um pretenso direito é negado não em nome de quaisquer nomes, mas apenas em nome do direito, construído pela própria sociedade ou que tenha sua existência por ela consentida.[12]

Por tudo que foi exposto nestas digressões é de relevante importância o olhar que se imporá sobre o devir. O amanhã não deverá ser visto com o olhar do ontem ainda que na retina traga suas impressões…

O Hermeneuta verá sempre além; seja suprimindo os encrostamentos que inviabilizam uma clareza efetiva quanto aos horizontes de inquirição originários dos problemas; seja articulando com a ontologia histórica responsável pela constituição da conceptualidade estruturadora desses horizontes.[13]

Despeço-me com a advertência do compositor cearense Belchior: Você pode até dizer que eu tô por fora, ou então que eu tô inventando… Mas é você que ama o passado e que não vê… É você que ama o passado e que não vê… Que o novo sempre vem! [14]


Notas e Referências:

[1] BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1987, p. 21.

[2] GÓGOL, Nikolai. O capote e outras histórias. 2ª ed. (3ª reimpressão). São Paulo: Editora 34. 2013. p. 94.

[3] “A força normativa dos direitos fundamentais, ao impor o dimensionamento do produto do legislador, faz com a Constituição deixe de ser encarada como algo que foi abandonado à maioria parlamentar. A vontade do legislador, agora, está submetida à vontade suprema do povo, ou melhor, à Constituição e aos direitos fundamentais. Nenhuma lei pode contrariar os princípios constitucionais e os direitos fundamentais e, por isso mesmo, quando as normas ordinárias não podem ser interpretadas “de acordo”, têm a sua constitucionalidade controlada a partir deles. A lei deve ser compreendida e aplicada de acordo com a Constituição. Isso significa que o juiz, após encontrar mais de uma solução a partir dos critérios clássicos de interpretação da lei, deve obrigatoriamente escolher aquela que outorgue a maior efetividade à Constituição. Trata-se, desse modo, de uma forma de filtrar as interpretações possíveis da lei, deixando passar apenas a que melhor se ajuste às normas constitucionais.” (MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no estado constitucional. Disponível em: www.marinoni.adv.br. Acesso em: 02 de maio de 2015, p. 66.)

[4] A imposição da força normativa constitucional promove a situação de estabilidade necessária para que o estado não se reconheça na ácida crítica de Erich Auerbach: “Os costumes, as instituições, os ordenamentos dos homens são todos igualmente tolos e extravagantes. Mudam conforme suas opiniões e não são estáveis nem verdadeiramente legítimos. Não possuem outro fundamento senão o próprio fato de sua vigência naquele dado momento, ou seja, o hábito. Quem tem consciência disso não se torna revolucionário, assim como não são revolucionárias as pessoas obtusas e sem discernimento, que aceitam os dados da realidade por pura contumácia…”. (In: Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica, São Paulo, Editora 34/Duas Cidades, 2007. apud MONTAIGNE, Michel, Os ensaios. São Paulo: Penguin Companhia. 2013. p. 23.

[5] “Enquanto as ciências explicativas buscam determinar as condições causais de um fenômeno através da observação e da quantificação, as ciências compreensivas visam à apreensão das significações intencionais das atividades históricas concretas do homem. Esse modelo de racionalização, retirado da interpretação de textos, no mesmo movimento que estabelece a apreensão do sentido como essência do método das ciências humanas, delimita o alcance da metodologia das ciências naturais, questionando, acima de tudo, o próprio conceito de objetividade científica. Isso se mostra nas determinantes específicas desse modelo: a inseparabilidade de sujeito e objeto, uma vez que a compreensão hermenêutica se dá pela inserção daquele que compreende no horizonte da história e da linguagem, as quais são aquilo mesmo que deve ser compreendido; o condicionamento de toda expressão do humano a um determinado horizonte linguístico, o que inclui também o resultado da compreensão, portanto, a própria ciência; a circularidade entre o todo e o particular, ou a mútua dependência constitutiva entre a parte e a totalidade, que impossibilita a compreensão por mera indução; e, por fim, a referência a um ponto de vista, ou pré-compreensão, a partir do qual se institui todo conhecimento, que estabelece a prioridade da pergunta sobre a resposta e problematiza a noção de dado empírico puro. (BRAIDA, Celso Reni. “Apresentação” in SCHLEIERMACHER, Friedrich D.E. Hermenêutica: arte e técnica de interpretação. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 8)

[6] “A interpretação de algo como algo, funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia.” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 9ª ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 211.)

[7] “No mais, importante é destacar que tudo é passível de interpretação, não existe situação consolidada no tempo e no espaço que seja incólume ao ato interpretativo, afinal, ser que pode ser compreendido é linguagem. Compreender é colocar algo dentro de palavras, ou melhor, formular a compreensão dentro de uma potencialidade linguística, evocando a importante objeção que nem tudo o que eu compreendo pode ser colocado em palavras. A necessária ideia é, para a noção gadameriana de interpretação e sua inerente linguisticidade, que o ouvinte é suprimido pelo que ele procura compreender e, assim, responde, interpreta, busca por palavras ou expressa. Portanto, compreender, no sentido gadameriano, é articular (um sentido, uma questão, um acontecimento) com palavras; “palavras que são sempre minhas, mas que ao mesmo tempo essas que eu luto para compreender”. (CRUZ, Danilo Nascimento. O art. 4.º da Res. TSE 21.841/2004 e um dos contos do major gorbiliov (primeira noite) de Mikhail Saltikov-Schedrin. Revista dos Tribunais | vol. 951/2015 | p. 209 – 223 | Jan / 2015 DTR\2014\20992)

[8] MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no estado constitucional. Disponível em: www.marinoni.adv.br. Acesso em: 02 de maio de 2015, p. 80-88.

[9] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Notas sobre o problema da ‘efetividade’ do processo. In: Temas de direito processual, 3ª Série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 33.

[10] A preocupação subjacente à doutrina da efetividade do processo consiste justamente em conceber um processo plenamente aderente à realidade sociojurídica e que sirva de instrumento à efetiva realização do direito material. Conferir: WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012, p.20-24.

[11] A ordenação normativa propõe uma série de finalidades a serem alcançadas, as quais se apresentam, para quaisquer agentes estatais, como obrigatórias. A busca destas finalidades tem o caráter de dever (antes do que “poder”), caracterizando uma função, em sentido jurídico. Em direito, esta voz função quer designar um tipo de situação jurídica em que existe, previamente assinalada por um comando normativo, uma finalidade a cumprir e que deve ser obrigatoriamente atendida por alguém, mas no interesse de outrem, sendo que, este sujeito – o obrigado – para desincumbir-se de tal dever, necessita manejar poderes indispensáveis à satisfação do interesse alheio que está a seu cargo prover. Daí, uma distinção clara entre função e a faculdade ou o direito que alguém exercita em seu prol. Na função o sujeito exercita um poder, porém o faz em proveito alheio, e o exercita não porque acaso queira ou não queira. Exercita-o porque é um dever. Então, pode-se perceber que o eixo metodológico do direito público não gira em torno da ideia e poder, mas gira em torno da ideia de dever. (MELLO. Celso Antônio Bandeira. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2ª ed. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 13-14.)

[12] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2ª ed. Belo Horizonte, MG: Del Rey. 2012. p. 151-173.

[13] Nesse sentido conferir: CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2012. p. 55.

[14] Música: Como nossos pais – Compositor: Belchior.


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